José de Souza Martins* - O Estado de S.
Paulo
Já foi o tempo em que a educação fazia parte do cardápio de otimismos que se
costuma apresentar nas passagens de ano. No último meio século, a educação
pública e gratuita, que garantira a formação de grandes nomes e grandes
competências nas várias profissões, que assegurara o grande salto da sociedade
escravista à sociedade moderna, foi progressivamente diminuída e até
injustamente satanizada em nome de interesses que não são os do bem comum. O
estado de anomia em que se encontra a educação brasileira pede, sem dúvida, a
reflexão crítica dos especialistas, mas uma crítica que a situe na trama própria
de tendências problemáticas da modernidade sem rumo para que seja compreendida e
superada.
A educação brasileira foi atacada por três pragas que subverteram a
precedência do propriamente educativo na função da escola e do processo
educacional: o economismo, o corporativismo e o populismo. O economismo na
educação não distingue entre uma escola e uma fábrica de pregos. A pedagogia do
economismo confunde aluno com produto e trata a educação e o educador na
perspectiva da produtividade, da coisa sem vida, da linha de produção. Importam
as quantidades da relação custo-benefício. Não importa se da escola não sai a
pessoa propriamente formada, transformada. Importam os números, os índices, os
cifrões. Presenciei os efeitos dessa mentalidade na apresentação de um grupo de
militantes da causa das cotas raciais perante o conselho universitário de uma
das três universidades públicas de São Paulo, de que sou membro. Aliás, nenhum
deles propriamente negro: "Não queremos vagas em qualquer curso; queremos em
engenharia e medicina, cursos que dão dinheiro", frisaram.
Quer o governo que os royalties do pré-sal sejam destinados à educação e nem
temos certeza de que isso acontecerá. Os políticos têm outras prioridades,
especialmente a das urnas. Já estamos gastando o dinheiro que ainda não saiu do
fundo do mar. Mas não sabemos em que esse dinheiro fará o milagre de
transformar, expandir e melhorar a educação brasileira e de elevar
substancialmente o nível da formação cultural das novas gerações. Dinheiro não
educa. Quem educa, ainda hoje, é o educador. É inútil ter máquinas,
computadores, tecnologia, maravilhas eletrônicas na sala de aula se, por trás de
tudo isso, não houver um educador. Se não houver aquele ser humano especializado
que faz a ligação dinâmica entre as possibilidades biográficas do educando e os
valores e requisitos de um projeto de nação, a nossa comunidade de destino. Se
não houver, sobretudo, a interação viva entre quem educa e quem é educado, se
não houver a recíproca construção de quem ensina e de quem aprende. Se não
houver a poesia deste verso de Vinicius de Moraes: "E um fato novo se viu que a
todos admirava: o que o operário dizia, outro operário escutava".
O corporativismo transformou o professor de educador em militante de causa
própria porque a serviço da particularidade da classe social e não a serviço da
universalidade do homem. Não há dúvida de que o salário que valorize devidamente
o educador e a educação é uma das premissas da revolução educacional de que
carecemos. Do povoado do sertão ao câmpus universitário da metrópole, o educador
tem carências que não são as carências do Fome Zero. Educação não é farinha de
mandioca. "Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê", dizia Monteiro Lobato, em
relação a um item da cesta básica do educador. Fome de educador não é fome de
demagogo nem pode ser. Privá-lo dos meios para se educar, reeducar e poder
educar é desnutri-lo.
A partidarização de todos os âmbitos da sociedade brasileira, até da
religião, levou para dentro da educação os pressupostos da luta de classes. O
militante destruiu o educador, drenou da educação a seiva vital que lhe é
necessária para ser instrumento de socialização, de renovação e de criação
social. A educação só o é na perspectiva dos valores da universalidade do homem,
como instrumento de humanização e não como instrumento de segregação e de
polarização ideológica, instrumento do que separa e não instrumento do que
junta. Na escola, a ideologia desconstrói a escola em nome do que a escola não
é.
O populismo, por sua vez, transformou a educação em meio de barganha
política, instrumento de dominação, falsificação de direitos em nome de
privilégios. O direito que nega a universalidade do homem nega-se como direito.
Pela orientação populista, o importante não é que saiam da escola alunos bem
formados, capazes de superações, gente a serviço do País. Nas limitações desse
horizonte, o importante é que da escola saiam votos, obediências, o ser
carneiril das sujeições, e não o cidadão das decisões.
A escola vem sendo derrotada todos os dias, do jardim da infância à
universidade, pela educação difusa e extraescolar dos poderosos meios de
produção e difusão do conhecimento que já não estão nas mãos do educador. A
escola é cada vez mais resíduo de poderes e vontades que estão longe da sala de
aula.
* JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA USP,
AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL: LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)
FONTE: O ESTADO DE SÃO PAULO.