PAULO FREIRE
PEDAGOGIA DO OPRIMIDO
23ª Reimpressão
PAZ E TERRA
© Paulo Freire, 1970
Capa
Isabel Carballo Revisão
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Maria Luiza Simões e Jonas Pereira dos Santos Conselho Editorial
Antonio Candido
Fernando Gasparian
Fernand Henrique Cardoso (
1994
Freire, Paulo
F934p Pedagogia do oprimido, 17ª. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987.
(O mundo, hoje, v.21)
1. Alfabetização – Métodos 2. Alfabetização – Teoria I. Título II. Série
CDD-374.012
-371.332
77-0064 CDD-371.3:376.76
licenciado) Índice
Prefácio ..................................................................................................................................5
Primeiras palavras ...................................................................................................................12
1. Justificativa da «pedagogia do oprimido» .................................................................................16
A contradição opressores-oprimidos. Sua superação ..................................................................16
A situação concreta de opressão e os opressores.......................................................................25
A situação concreta de opressão e os oprimidos ........................................................................27
Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão............29
2. A concepção «bancária» da educação como instrumento da opressão. Seus pressupostos, sua crítica.33
A contradição problematizadora e libertadora da educação. Seus pressupostos...............................35
A concepção “bancária” e a contradição educador-educando........................................................36
Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados
pelo mundo .......................................................................................................................39
O homem como um ser inconcluso, consciente de sua inconclusão, e seu permanente movimento de
busca do ser mais ...............................................................................................................42
3. A dialogicidade – essência da educação como prática da liberdade................................................44
Educação dialógica e diálogo..................................................................................................45
O diálogo começa na busca do conteúdo programático...............................................................47
As relações homens-mundo, os temas geradores e o conteúdo programático desta educação............49
A investigação dos temas geradores e sua metodologia ..............................................................54
A significação conscientizadora da investigação dos temas geradores. Os vários momentos da
investigação ......................................................................................................................57
4. A teoria da ação antidialógica.................................................................................................70
A teoria da ação antidialógica e suas características: a conquista, dividir para manter a opressão, a
manipulação e a invasão cultural ...........................................................................................78
A teoria da ação dialógica e suas características: a co-laboração, a união, a organização e a síntese
cultural .............................................................................................................................96
Aprender a dizer a sua palavra
Professor Ernani Maria Fiori
Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa idéias, pensa a existência. E também
educador: existência seu pensamento numa pedagogia em que o esforço totalizador da “práxis” humana
busca, na interioridade desta, retotalizar-se como “prática da liberdade”. Em sociedades cuja dinâmica
estrutural conduz à dominação de consciências, “a pedagogia dominante é a pedagogia das classes
dominantes”. Os métodos da opressão não podem, contraditoriamente, servir à libertação do oprimido.
Nessas sociedades, governadas pelos interesses de grupos, classes e nações dominant es, a “educação
como prática da liberdade” postula, necessariamente, uma “pedagogia do oprimido”. Não pedagogia para
ele, mas dele. Os caminhos da liberação são os do oprimido que se libera: ele não é coisa que se resgata,
é sujeito que se deve autoconfìgurar responsavelmente. A educação liberadora é incompatível com uma
pedagogia que, de maneira consciente ou mistificada, tem sido prática de dominação. A prática da
liberdade só encontrará adequada expressão numa pedagogia em que o oprimido tenha condições de,
reflexivamente, descobrir-se e conquistar-se como sujeito de sua própria destinação histórica. Uma
cultura tecida com a trama da dominação, por mais generosos que sejam os propósitos de seus
educadores, é barreira cerrada às possibilidades educacionais dos que se situam nas subculturas dos
proletários e marginais. Ao contrário, uma nova pedagogia enraizada na vida dessas subculturas, a partir
delas e com elas, será um contínuo re-tomar reflexivo de seus próprios caminhos de liberação; não será
simples reflexo, senão reflexiva criação e recriação, um ir adiante nesses caminhos: “método”, “prática de
liberdade”, que, por ser tal, está intrinsecamente incapacitado para o exercício da dominação. A
pedagogia do oprimido é, pois, liberadora de ambos, do oprimido e do opressor. Hegelianamente,
diríamos: a verdade do opressor reside na consciência do oprimido.
Assim apreendemos a idéia-fonte de dois livros
sócio -pedagógico, sua grande e apaixonante experiência de educador. Experiência e saber que se
dialetam, densificando-se, alongando-se e dando, com nitidez cada vez maior, o contorno e o relevo de
sua profunda intuição central: a do educador de vocação humanista que, ao inventar suas técnicas
pedagógicas, redescobre através delas o processo histórico em que e por que se constitui a consciência
humana. Ou, aproveitando uma sugestão de Ortega, o processo em que a vida como biologia passa a ser
vida como biografa.
Talvez seja este o sentido mais exato da alfabetização: aprender a escrever a sua vida, como autor e
como testemunha de sua história, isto é, biografar-se, existenciar-se, historicizar-se. Por isto, a pedagogia
de Paulo Freire, sendo método de alfabetização, tem como idéia animadora toda a amplitude huma na da
“educação como prática da liberdade”, o que, em regime de dominação, só se pode produzir e
desenvolver na dinâmica de uma “pedagogia do oprimido”.
As técnicas do referido método acabam por ser a estilização pedagógica do processo em que o homem
const itui e conquista, historicamente, sua própria forma: a pedagogia faz-se antropologia. Esta conquista
não se pode comparar com o crescimento espontâneo dos vegetais: participa da ambigüidade da condição
humana e dialetiza-se nas contradições da aventura histórica, projeta-se na contínua recriação de um
mundo que, ao mesmo tempo, obstaculiza e provoca o esforço de superação liberadora da consciência
humana. A antropologia acaba por exigir e comandar uma política.
É o que pretendemos insinuar em três relances. Primeiro: o movimento interno que unifica os elementos
do método e ps excede em amplitude de humanismo pedagógico. Segundo: esse movimento re-produz e
manifesta o processo histórico em que o homem se re-conhece. Terceiro: os rumos possíveis desse
processo são possíveis projetos e, por conseguinte, a conscientização não é apenas conhecimento ou
reconhecimento, mas opção, decisão, compromisso.
Ás técnicas do método de alfabetização de Paulo Freire, embora em si valiosas, tomadas isoladamente não
dizem nada do método. Também não se ajuntaram ecleticamente segundo um critério de simples
eficiência técnico-pedagógica. Inventadas ou reinventadas numa só direção de pensamento, resultam da
* em que Paulo Freire traduz, em forma de lúcido saber *
unidade que transparece na linha axial do método e assinala o sentido e o alcance de seu humanismo:
alfabetizar é conscientizar.
Um mínimo de palavras, com a máxima polivalência fonêmica, é o ponto de partida para a conquista do
universo vocabular. Essas palavras, oriundas do próprio universo vocabular do alfabetizando, uma vez
transfiguradas pela crítica, a ele retornam em ação transformadora do mundo. Como saem de seu
universo e como a ele voltam?
Uma pesquisa prévia investiga o universo das palavras faladas, no meio cultural do alfabetizando. Daí são
extraídos os vocábulos de ma is ricas possibilidades fonêmicas e de maior carga semântica – os que não só
permitem rápido domínio do universo da palavra escrita, como também, o mais eficaz engajamento de
quem a pronuncia, com a força pragmática que instaura e transforma o mundo humano.
Estas palavras são chamadas geradoras porque, através da combinação de seus elementos básicos,
propiciam a formação de outras. Como palavras do universo vocabular do alfabetizando, são significações
constituídas ou re -constituídas em comportamentos seus, que configuram situações existenciais ou,
dentro delas, se configuram. Tais significações são plasticamente codificadas em quadros,
etc., representativos das respectivas situações, que, da experiência vivida do alfabetizando, passam para
o mundo dos objetos. O alfabetizando ganha distância para ver sua experiência: “ad-mirar”. Nesse
instante, começa a descodificar.
A descodificação é análise e conseqüente reconstituição da situação vivida: reflexo, reflexão e abertura de
possibilidades concretas de ultrapassagem. Mediada pela objetivação, a imediatez da experiência
lucidifica-se, interiormente, em reflexão de si mesma e crítica animadora de novos projetos existenciais. O
que antes era fechamento, pouco a pouco se vai abrindo; a consciência passa a escutar os apelos que a
convocam sempre mais além de seus limites: faz-se crítica.
Ao objetivar seu mundo, o alfabetizando nele reencontra-se com os outros e nos outros, companheiros de
seu pequeno “círculo de cultura”. Encontram-se e reencontram-se todos no mesmo mundo comum e, da
coincidência das intenções que o objetivam, ex-surge a comunicação, o diálogo que criticiza e promove os
participantes do círculo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu mundo: o que antes os absorvia, agora
podem ver ao revés. No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em “reciprocidade de
consciências”; não há professor, há um coordenador, que tem por função dar as informações solicitadas
pelos respectivos participantes e propiciar condições favoráveis à dinâmica do grupo, reduzindo ao mínimo
sua intervenção direta no curso do diálogo.
A “codificação” e a “descodificação” permitem ao alfabetizando integrar a significação das respectivas
palavras geradoras em seu contexto existencial – ele a redescobre num mundo expressado em seu
comportamento. Conscientiza a palavra como significação que se constitui em sua intenção significante,
coincidente com intenções de outros que significam o mesmo mundo. Este – o mundo – é o lugar do
encontro de cada um consigo mesmo e os demais.
A essa altura do processo, a respectiva palavra geradora pode ser, ela mesma, objetivada como
combinação de fonemas suscetíveis de representação gráfica. O alfabetizando já sabe que a língua
também é cultura, de que o homem é sujeito: sente-se desafiado a desvelar os segredos de sua
constituição, a partir da construção de suas palavras – também construção de seu mundo. Para esse
efeito, como também para a descodificação das situações significadas pelas palavras geradoras, a que nos
referimos, é de particular interesse a etapa preliminar do método, que não havíamos ainda mencionado.
Nessa etapa, são descodificadas pelo grupo, várias unidades básicas, codificações simples e sugestivas,
que, dialogicamente descodifìcadas, vão redescobrindo o homem como sujeito de todo o processo
histórico da cultura e, obviamente, também da cultura letrada. O que o homem fala e escreve e como fala
e escreve, é tudo expressão objetiva de seu espírito. Por isto, pode o espírito refazer o feito, neste
redescobrindo o processo que o faz e refaz.
Assim, ao objetivar uma palavra geradora – íntegra, primeiro, e depois decomposta em seus elementos
silábicos – o alfabetizando já está motivado para não só buscar o mecanismo de sua recomposição e da
composição de novas palavras, mas também para escrever seu pensamento. A palavra geradora, ainda
que objetivada em sua condição de simples vocábulo escrito, não pode mais libertar-se de seu dinamismo
semântico e de sua força pragmática, de que o alfabetizando já se fizera consciente na repetida
descodificação crítica.
Não se deixará, pois, aprisionar nos mecanismos de composição vocabular. E buscará novas palavras, não
para colecioná-las na memória, mas para dizer e escrever o seu mundo, o seu pensamento, para contar
sua história. Pensar o mundo é julgá-lo; e a experiência dos círculos de cultura mostra que o
alfabetizando, ao começar a escrever livremente, não copia palavras, mas expressa juízos. Estes, de certa
maneira, tentam reproduzir o movimento de srta própria experiência; o alfabetizando, ao dar-lhes forma
escrita, vai assumindo, gradualmente, a consciência de testemunha de uma história de que se sabe autor.
Na medida em que se apercebe como testemunha de sua história, sua consciência se faz reflexivamente
mais responsável dessa história.
O método Paulo Freire não ensina a repetir palavras, não se restringe a desenvolver a capacidade de
pensá-las segundo as exigências lógicas do discurso abstrato; simplesmente coloca o alfabetizando em
condições de poder re-existenciar criticamente as palavras de seu mundo, para, na oportunidade devida,
saber e poder dizer a sua palavra.
Eis porque, em uma cultura letrada, aprende a ler e escrever, mas a intenção última com que o faz, vai
além da alfabetização. Atravessa e anima toda a empresa educativa, que não é senão aprendizagem
permanente desse esforço de totalização – jamais acabada – através do qual o homem tenta abraçar-se
inteiramente na plenitude de sua forma. É a própria dialética em que se existência o homem. Mas, para
isto, para assumir responsavelmente sua missão de homem, há de aprender a dizer a sua palavra, pois,
com ela, constitui a si mesmo e a comunhão humana em que se constitui; instaura o mundo em que se
humaniza, humanizando-o.
Com a palavra, o homem se faz homem. A o dizer a sua palavra, pois, o homem assume conscientemente
sua essencial condição humana. E o método que lhe propicia essa aprendizagem comensura-se ao homem
todo, e seus princípios fundam toda pedagogia, desde a alfabetização até os mais altos níveis do labor
universitário.
A educação reproduz, assim, em seu plano próprio, a estrutura dinâmica e o movimento dialético do
processo histórico de produção do homem. Para o homem, produzir-se é conquistar-se, conquistar sua
forma humana. A pedagogia é antropologia.
Tudo foi resumido por uma mulher simples do povo, num círculo de cultura, diante de uma situação
representada em quadro: “Gosto de discutir sobre isto porque vivo assim. Enquanto vivo, porém, não
vejo. Agora sim, observo como vivo”.
A consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem de distanciar-se das coisas
para fazê-las presentes, imediatamente presentes. É a presença que tem o poder de presentifìcar: não é
representação, mas condição de apresentação. É um comportar-se do homem frente ao meio que o
envolve, transformando-o em mundo humano. Absorvido pelo meio natural, responde a estímulos; e o
coito de suas respostas mede-se por sua maior ou menor adaptação: naturaliza-se. Despegado de seu
meio vital, por virtude da consciência, enfrenta as coisas objetivando-as, e enfrenta-se com elas, que
deixam de ser simples estímulos, pura se tornarem desafios. O meio envolvente não o fecha, limita-o – o
que supõe a consciência do além-limite. Por isto, porque se projeta intencionalmente além do limite que
tenta encerrá-la, pode a consciência desprender-se dele, liberar-se e objetivar, transubstanciando o meio
físico em mundo humano.
A “hominização” não é adaptação: o homem não se naturaliza, humaniza o mundo. A “hominização” não é
só processo biológico, mas também história.
A intencionalidade da consciência humana não morre na espessura de um envoltório sem reverso. Ela tem
dimensão sempre maior do que os horizontes que a circundam. Perpassa além das coisas que alcança, e
porque as sobrepassa, pode enfrentá-las como objetos.
A objetividade dos objetos é constituída na intencionalidade da consciência, mas, paradoxalmente, esta
atinge, no objetivado, o .que ainda não se objetivou: o objetimável. Portanto, o objeto não é só objeto, é,
ao mesmo tempo, problema: o que está em frente, como obstáculo e interrogação. Na dialética
constituinte da consciência, em que esta se perfaz na medida em que faz o mundo, a interrogação nunca
é pergunta exclusivamente especulativa: no processo de totalização da consciência é sempre provocação
que a incita a totalizar-se. O mundo é espetáculo, mas sobretudo convocação. E, como a consciência se
constitui necessariamente como consciência do mundo, ela é, pois, simultânea e implicadamente,
apresentação e elaboração do mundo.
A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar indefinidamente seus horizontes e,
dentro deles, ultrapassar os momentos e as situações, que tentam retê-la e enclausurá -la. Liberta pela
força de seu impulso transcendentalizante pode volver reflexivamente sobre tais situações e momentos,
para julgá-los e julgar-se. Por isto é capaz de crítica. A reflexividade é a raiz da objetivação. Se a
consciência se distancia do mundo e o objetiva, é porque sua intencionalidade transcendental a faz
reflexiva. Desde o primeiro momento de sua constituição, ao objetivar seu mundo originário, já é
virtualmente reflexiva. É presença e distancia do mundo: a distancia é a condição da presença. Ao
distanciar-se do mundo, constituindo-se na objetividade, surpreende-se, ela, em sua subjetividade. Nessa
linha de entendimento, reflexão e mundo, subjetividade e objetividade não se separam: opõem-se,
implicando-se dialeticamente. A verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se na interioridade da
“práxis” constitutiva do mundo humano – é também “práxis”.
Distanciando-se de seu mundo vivido, problematizando-o, “descodificando-o” criticamente, no mesmo
movimento da consciência o homem se re-descobre como sujeito instaurador desse mundo de sua
experiência. Testemunhando objetivamente sua história, mesmo a consciência ingênua acaba por
despertar crítica-mente, para identificar-se como personagem que se ignorava e é chamada a assumir seu
papel. A consciência do mundo e a consciência de si crescem juntas e em razão direta; uma é a luz
interior ida outra, uma comprometida com a outra. Evidencia-se a intrínseca correlação entre conquistarse,
fazer-se mais si mesmo, e conquistar o mundo, faze-lo mais humano. Paulo Freire não inventou o
homem; apenas pensa e pratica um método pedagógico que procura dar ao homem a oportunidade de redescobrir-
se através da retomada reflexiva do próprio processo em que vai ele se descobrindo,
manifestando e configurando – “método de conscientização”.
Mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do
mundo. Se cada consciência tivesse o seu mundo, as consciências se desencontrariam em mundos
diferentes e separados – seriam mônadas incomunicáveis. As consciências não se encontram no vazio de
si mesmas, pois a consciência é sempre, radicalmente, consciência do mundo. Seu lugar de encontro
necessário é o mundo, que, se não for originariamente comum, não permitirá mais a comunicação. Cada
um terá seus próprios caminhos de entrada nesse mundo comum, mas a convergência das intenções que
o significam, é a condição de possibilidade das divergências dos que, nele, se comunicam. A não ser
assim, os caminhos seriam paralelos e intransponíveis. As consciências não são comunicantes porque se
comunicam; mas comunicam-se porque comunicantes. A intersubjetivação das consciências é tão
originária quanto sua mundanidade ou sua subjetividade. Radicalizando, poderíamos dizer, em linguagem
não mais fenomenológica, que a intersubjetivação das consciências é a progressiva conscientização, no
homem, do “parentesco ontológico” dos seres no ser. É o mesmo mistério que nos invade e nos envolve,
encobrindo-se e descobrindo-se na ambigüidade de nosso corpo consciente.
Na constituição da consciência, mundo e consciência se põem como consciência do mundo ou mundo
consciente, e, ao mesmo tempo, se opõem como consciência de si e consciência do mundo. Na
intersubjetivação, as consciências também se põem como consciências de um certo mundo comum e,
nesse mundo, se opõem como consciência de si e consciência do outro. Comunicamo -nos na oposição,
que é a única via de encontro para consciências que se constituem na mundanidade e na
intersubjetividade.
O monólogo, enquanto isolamento, é a negação do homem; é fechamento da consciência, uma vez que
consciência é abertura. Na solidão, uma consciência que é consciência do mundo, adentra-se em si,
adentrando-se mais em seu mundo, que, reflexivamente, faz-se mais lúcida mediação da imediatez
intersubjetiva das consciências. A solidão – não o isolamento – só se mantém enquanto renova e revigora
as condições do diálogo.
O diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana; ele é relacional e; nele,
ninguém tem iniciativa absoluta. Os dialogantes “admiram” um mesmo mundo; afastam-se dele e com ele
coincidem; nele põem-se e opõem-se. Vimos que, assim, a consciência se existência e busca perfazer-se.
O diálogo não é um produto histórico, é a própria historicização. É ele, pois, o movimento constitutivo da
consciência que, abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e,
incessantemente, busca reencontrar-se além de si mesma. Consciência do mundo, busca-se ela a si
mesma num mundo que é comum; porque é comum esse mundo, buscar-se a si mesma é comunicar-se
com o outro. O isolamento não personaliza porque não socializa. Intersubjetivando-se mais, mais
densidade subjetiva ganha o sujeito.
A consciência e o mundo não se estruturam sincronicamente numa estática consciência do mundo: visão e
espetáculo. Essa estrutura funcionaliza-se diacronicamente numa história. A consciência humana busca
comensurar-se a si mesma num movimento que transgride, continuamente, todos os seus limites.
Totalizando-se além de si mesma, nunca chega a totalizar-se inteiramente, pois sempre se transcende a si
mesma. Não é a consciência vazia do mundo que se dinamiza, nem o mundo é simples projeção do
movimento que a constituí como consciência humana. A consciência é consciência do mundo: o mundo e a
consciência, juntos, como consciência do mundo, constituem-se dialeticamente num mesmo movimento –
numa mesma história. Em outros termos: objetivar o mundo é historicizá-lo, humanizá-lo. Então, o
mundo da consciência não é criação, mas sim, elaboração humana. Esse mundo não se constitui na
contemplação, mas no trabalho.
Na objetivação transparece, pois, a responsabilidade histórica do sujeito: ao reproduzi-la criticamente, o
homem se reconhece como sujeito que elabora o mundo; nele, no mundo, efetua-se a necessária
mediação do auto-reconhecimento que o personaliza e o conscientiza como autor responsável de sua
própria história. O mundo conscientiza-se como projeto humano: o homem faz-se livre. O que pareceria
ser apenas visão, é, efetivamente, “provocação”; o espetáculo, em verdade, é compromisso.
Se o mundo é o mundo das consciências intersubjetivadas, sua elaboração forçosamente há de ser
colaboração. O mundo comum mediatizo a originária intersubjetivação das consciências: o autoreconhecimento
plenifica-se no reconhecimento do outro; no isolamento, a consciência modifica-se. A
intersubjetividade, em que as consciências se enfrentam, dialetizam-se, promovem-se, é a tessitura
última do processo histórico de humanização. Está nas origens da “hominização e anuncia as exigências
últimas da humanização. Reencontrar-se como sujeito e liberar-se, é todo o sentido do compromisso
histórico. Já a antropologia sugere que a “práxis”, se humana e humanizadora, é a “prática da liberdade”.
O círculo de cultura – no método Paulo Freire – re-vive a vida em profundidade crítica. A consciência
emerge do mundo vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o como projeto humano. Em diálogo
circular, intersubjetivando-se mais e mais, vai assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade
criadora. Todos juntos, em círculo, e em colaboração, re-elaboram o mundo e, ao reconstruí-lo,
apercebem-se de que, embora construído também por eles, esse mundo não é verdadeiramente para
eles. Humanizado por eles, esse mundo não os humaniza. As mãos que o fazem, não são as que o
dominam. Destinado a liberá-los como sujeitos, escraviza-os como objetos.
Reflexivamente, retomam o movimento da consciência que os constitui sujeitos, desbordando a estreiteza
das situações vividas; resumem o impulso dialético da totalização hist órica. Presentificados como objetos
no mundo da consciência dominadora, não se davam conta de que também eram presença que
presentifica um mundo que não é de ninguém, porque originariamente é de todos. Restituída em sua
amplitude, a consciência abre-se para a “prática da liberdade”: o processo de “hominização”, desde suas
obscuras profundezas, vai adquirindo a translucidez de um projeto de humanização. Não é crescimento, é
história: áspero esforço de superação dialética das contradições que entretecem o drama existencial da
finitude humana. O método de conscientização de Paulo Freire refaz criticamente esse processo dialético
de historicização. Como todo bom método pedagógico, não pretende ser método de ensino, mas sim de
aprendizagem; com ele, o homem não cria sua possibilidade de ser livre, mas aprende a efetivá-la e
exercê-la. A pedagogia aceita a sugestão da antropologia: impõe-se pensar e viver “a educação como
prática da liberdade".
Não foi por acaso que esse método de conscientização originou-se como método de alfabetização. A
cultura letrada não é invenção caprichosa do espírito; surge no momento em que a cultura, como reflexão
de si mesma, consegue dizer-se a si mesma, de maneira definida, clara e permanente. A cultura marca o
aparecimento do homem no largo processo da evolução cósmica. A essência humana existencia-se,
autodesvelando-se como história. Mas essa consciência histórica, objetivando-se reflexivamente
surpreende-se a si mesma, passa a dizer-se, torna-se consciência historiadora: o homem é levado a
escrever sua história. Alfabetizar-se é aprender a ler essa palavra escrita em que a cultura se diz e,
dizendo-se critica-mente, deixa de ser repetição intemporal do que passou, para temporalizar-se, para
conscientizar sua temporalidade constituinte, que é anúncio e promessa do que há de vir. O destino,
criticamente, recupera-se como projeto.
Nesse sentido, alfabetizar-se não é aprender a repetir palavras, atas a dizer a sua palavra, criadora de
cultura. A cultura letrada conscientiza a cultura: a consciência historiadora automanifesta à consciência
sua condição essencial de consciência histórica. Ensinar a ler as palavras ditas e ditadas é uma forma de
mistifìcar as consciências, despersonalizando-as na repetição – é a técnica da propaganda massificadora.
Aprender a dizer a sua palavra é toda a pedagogia, e também toda a antropologia.
A “hominização” opera-se no momento em que a consciência ganha a dimensão da transcendentalidade.
Nesse instante, liberada do meio envolvente, despega-se dele, enfrenta-o, num comportamento que a
constitui como consciência do mundo. Nesse comportamento, as coisas são objetivadas, isto é,
significadas e expressadas: o homem as diz. A palavra instaura o mundo do homem. A palavra, como
comportamento humano, significante do mundo, não designa apenas as coisas, transforma -as; não é só
pensamento, é “práxis”. Assim considerada, a semântica é existência e a palavra viva plenifica-se no
trabalho.
Expressar-se, expressando o mundo, implica o comunicar-se. A partir da intersubjetividade originária.
poderíamos dizer que a palavra, mais que instrumento, é origem da comunicação – a palavra é
essencialmente diálogo. A palavra abre a consciência para o mundo comum das consciências, em diálogo
portanto. Nessa linha de entendimento, a expre ssão do mundo consubstancia-se em elaboração do mundo
e a comunicação em colaboração. E o homem só se expressa convenientemente quando colabora com
todos na construção do mundo comum – só se humaniza no processo dialógico de humanização do
abundo. A palavra, porque lugar do encontro e do reconhecimento das consciências, também o é do
reencontro e do reconhecimento de si mesmo. A palavra pessoal, criadora, pois a palavra repetida é
monólogo das consciências que perderam sua identidade, isoladas, imersas na multidão anônima e
submissas a um destino que lhes é imposto e que não são capazes de superar, com a decisão de um
projeto.
É verdade: nem a cultura liberada é a negação do homem, nem a cultura letrada chegou a ser sua
plenitude. Não há homem absolutamente inculto: o homem “hominiza-se” expressando, dizendo o seu
mundo. Aí começam a história e a cultura. Mas o primeiro instante da palavra é terrivelmente
perturbador: presentifica o mundo à consciência e, ao mesmo tempo, distancia-o. O enfrentamento com o
mundo é ameaça e risco. O homem substitui o envoltório protetor do meio natural por um mundo que o
provoca e desafia. Num comportamento ambíguo, enquanto ensaia o domínio técnico desse mundo, tenta
voltar a seu seio, imergir nele, enleando-se na indistinção entre palavra e coisa. A palavra,
primitivamente, é mito. Interior ao mito e condição sua, o “logos" humano vai conquistando primazia, com
a inteligência das mãos que transformam o mundo. Os primórdios dessa história ainda é mitologia: o mito
é objetivado pela palavra que o diz. A narração do mito, no entanto, objetivando o mundo mítico e
entrevendo o seu conteúdo racional, acaba por devolver à consciência a autonomia da palavra, distinta
das coisas que ela significa e transforma. Nessa ambigüidade com que a consciência faz o seu mundo,
afastando-o de si, no distanciamento objetivante que o presentifica como mundo consciente, a palavra
adquire a autonomia que a torna disponível para ser recriada na expressão escrita. Embora não tenha sido
um produto arbitrário do espírito incentivo do homem, a cultura letrada é um epifenômeno da cultura,
que, atualizando sua reflexividade virtual, encontra na palavra escrita uma maneira mais firme e definida
e de dizer-se, isto é, de existenciar-se discursivamente na “práxis” histórica. Podemos conceber a
ultrapassagem da cultura letrada: o que, em todo caso, ficará, é o sentido profundo que ela manifesta:
escrever e não conservar e repetir a palavra dita, mas dizê-la com a força reflexiva que sua autonomia lhe
dá – a força ingênita que a faz instauradora do mundo da consciência, criadora da cultura.
Com o método de Paulo Freire, os alfabetizados partem de algumas poucas palavras que lhes servem para
gerar seu universo vocabular. Antes, porém, conscientizam o poder criador dessas palavras: são elas que
geram o seu mundo. São significações que se constituem em comportamentos seus; portanto,
significações do mundo, mas sua também. Assim, ao visualizarem a palavra escrita, em sua ambígua
autonomia, já estão conscientes da dignidade de que ela é portadora – a alfabetização não é um jogo de
palavras, é a consciência reflexiva da cultura, a reconstrução crítica do mundo humano, a abertura de
novos caminhos, o projeto histórico de um mundo comum, a bravura de dizer a sua palavra.
A alfabetização, portanto, é toda a pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a sua palavra. E a sua
palavra humana imita a palavra divina: é criadora.
A palavra é entendida, aqui, como palavra e ação; não é o termo que assinala arbitrariamente um
pensamento que, por sua vez, discorre separado da existência. É significação produzida pela “práxis”,
palavra cuja discursividade flui da historicidade – palavra viva e dinâmica, não categoria inerte, exâmine.
Palavra que diz e transforma o mundo.
A palavra viva é diálogo existencial. Expressa e elabora o mundo, em comunicação e colaboração. O
diálogo autêntico – reconhecimento do outro e reconhecimento de si, no outro – é decisão e compromisso
de colaborar na construção do mundo comum. Não há consciências vazias; por isto os homens não se
humanizam, senão humanizando o mundo.
Em linguagem direta: os homens humanizam-se, trabalhando juntos para fazer do mundo, sempre mais,
a mediação de consciências que se coexistenciam em liberdade. Aos que constroem juntos o mundo
humano, compete assumirem a responsabilidade de dar-lhe direção. Dizer a sua palavra equivale a
assumir conscientemente, como trabalhador, a função de sujeito de sua história, em colaboração com os
demais trabalhadores – o povo.
Ao Povo cabe dizer a palavra de comando no processo histórico-cultural. Se a direção racional de tal
processo já é política, então conscientizar é politizar. E a cultura popular se traduz por política popular;
não há cultura do Povo, sem política do Povo.
O método de Paulo Freire é, fundamentalmente, um método de cultura popular: conscientiza e politiza.
Não absorve o político no pedagógico, mas também não põe inimizade entre educação e política.
Distingue-as, sim, mas na unidade do mesmo movimento em que o homem se historiciza e busca
reencontrar-se, isto é, busca ser livre. Não tem a ingenuidade de supor que a educação, só ela, decidirá
dos rumos da história, mas tem, contudo, a coragem suficiente para afirmar que a educação verdadeira
conscientiza as contradições do mundo humano, sejam estruturais, super-estruturais ou inter-estruturais,
contradições que impelem o homem a ir adiante. As contradições conscientizadas não lhe dão mais
descanso, tornam insuportável a acomodação. Um método pedagógico de conscientização alcança últimas
fronteiras do humano. E como o homem sempre se excede, o método também o acompanha. E “a
educação como prática do liberdade”.
Em regime de dominação de consciências, em que os que mais trabalham menos podem dizer a sua
palavra e em que multidões imensas nem sequer tem condições pura trabalhar, os dominadores mantêm
o monopólio da palavra, com que mistificam, massificam e dominam. Nessa situação, os dominados, para
dizerem a sua palavra, têm que lutar para tomá -la. A prender a tomá -la dos que a detêm e a recusam aos
demais, é um difícil, mas imprescindível aprendizado – é a "pedagogia do oprimido”.
Santiago, Chile,
dezembro de 1057.
Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967; e Pedagogia do Oprimido.slides, filminas, PRIMEIRA PALAVRAS
AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO
E AOS QUE NELES SE
DESCOBREM E, ASSIM
DESCOBRINDO-SE, COM ELES
SOFREM, MAS, SOBRETUDO,
COM ELES LUTAM.
As páginas que se seguem e que propomos como uma introdução à Pedagogia do Oprimido são o
resultado de nossas observações nestes cinco anos de exílio. Observações que se vêm juntando às que
fizemos no Brasil, nos vários setores em que tivemos oportunidade de exercer atividades educativas;
Um dos aspectos que surpreendemos, quer nos cursos de capacitação que damas e em que analisamos o
papel da conscientização, quer na aplicação mesma de uma educação realmente libertadora, é o “medo da
liberdade”, a que faremos referência no primeiro capítulo deste ensaio.
Não são raras as vezes em que participantes destes cursos, numa atitude em que manifestam o seu
"medo da liberdade”, se referem ao que chamam de “perigo da conscientização”. “A consciência crítica (...
dizem...) é anárquica.” Ao que outros acrescentam: “Não poderá a consciência critica conduzir à
desordem”? Há, contudo, os que também dizem: “Por que negar? Eu temia a liberdade. Já não a temo”!
Certa vez, em um desses cursos, de que fazia parte um homem que fora, durante longo tempo, operário,
se estabeleceu uma dessas discussões em que se afirmava a "periculosidade da consciência critica”. No
meio da discussão, disse este homem: “Talvez seja eu, entre os senhores, o único de origem operária.
Não posso dizer que haja entendido todas as palavras que foram ditas aqui, mas uma coisa posso afirmar:
cheguei a esse curso, ingênuo e, ao descobrir-me ingênuo, comecei a tornar-me crítico. Esta descoberta,
contudo, nem me faz f á.ti em me dá, a sensação de desmoronamento”. Discutia-se, na oportunidade, se
a conscientização uma situação existencial, concreta, de injustiça, não poderia conduzir os homens dela
conscientizados, a um “fanatismo destrutivo” ou a uma “sensação de desmoronamento total do mundo em
que estavam esses homens”.
A dúvida, assim expressa, implícita uma afirmação nem sempre explicitada, no que teme a liberdade:
“Melhor será, que a situação concreta de injustiça não se constitua num “percebido” claro para a
consciência dos que a sofrem”.
Na verdade, porém, não é a conscientização que pode levar o povo à “fanatismos destrutivos”. Pelo
contrário, a conscientização, que lhe possibilita inserir-se n processo histórico, como sujeito, evita os
fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação.
“Se a tomada de consciência abre o caminho à expressão das insatisfações sociais, se deve a que estas
são componentes reais de uma situação de opressão”
O medo da liberdade, de que necessariamente não tem consciência o seu portador, o faz ver o que não
existe. No fundo, o que teme a liberdade se refugia na segurança vital, como diria Hegel
liberdade arriscada.
1.2, preferindo-a à 1
Terra, 1967.
Francisco Weffort, Prefácio a Paulo Freire, Educação conto Prática da Liberdade. Rio de Janeiro, Paz e 2
may, no doubt, be recognized as a person; but he has not attained the truth of this recognition as an
independent self-consciousness.” Hegel,
Raro, porém, h o que manifesta explicitamente este receio da liberdade. Sua tendência é, antes, camuflála,
num jogo manhoso, ainda que, às vezes, inconsciente. Jogo artificioso de palavras em que aparece ou
pretende aparecer como o que defende a liberdade e não como o que a teme.
As suas dúvidas e inquietações empresta um ar de profunda seriedade. Seriedade de quem fosse o
zelador da liberdade. Liberdade que se confunde com a manutenção do
conscientização põe em discussão este
As afirmações que fazemos neste ensaio, não são, de um lado, fruto de devaneios intelectuais nem
tampouco, de outro, resultam, apenas, de leituras, por mais importantes que nos tenham sido estas.
Estão sempre ancoradas, como sugerimos no inicio destas páginas, em situações concretas. Expressam
reações de proletários, camponeses ou urbanos, e de homens de classe média, que vimos observando,
direta ou indiretamente, em nosso trabalho educativo. Nossa intenção e continuar com estas observações
para retificar ou ratificar, em estudos posteriores, pontos afirmados neste ensaio. Ensaio que,
provavelmente, irá provocar em alguns de seus possíveis leitores, reações sectárias.
Entre estes, haverá, talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns, por considerarem a
nossa posição, diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando
não um "blablablá” reacionário. “Blablablá” de quem se “perde” falando em vocação ontológica, em amor,
em diálogo, em esperança, em humildade, em simpatia. Outros, por não quererem ou não poderem
aceitar as criticas e a denuncia que fazemos da situação opressora, situação em que os opressores se
“gratificam”, através de sua falsa generosidade.
Daí que seja este, com todas as deficiências de um ensaio puramente aproximativo, um trabalho para
homens radicais. Cristãos ou marxistas, ainda que discordando de nossas posições, em grande parte, em
parte ou em sua totalidade, estes, estamos certos, poderão chegar ao fim do texto.
Na medida, porém, em que, sectariamente, assumam posições fechadas, “irracionais”, rechaçarão o
diálogo que pretendemos estabelecer através deste livro.
É que a sectarização é sempre castradora, pelo fanatismo de que se nutre. A radicalização, pelo contrário,
é sempre criadora, pela criticidade que a alimenta. Enquanto a sectarização é mítica, por isto alienante, a
radicalização é critica, por isto libertadora. Libertadora porque, implicando no enraizamento que os
homens fazem na opção que fizeram, os engaja cada vez mais no esforço de transformação da realidade
concreta, objetiva.
A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não
pode ser mudada.
Parta de quem parta, a sectarização é um obstáculo à emancipação dos homens. Daí que seja doloroso
observar que nem sempre o sectarismo de direita provoque o seu contrário, isto é, a radicalização do
revolucionário.
Não são raros os revolucionários que se tornam reacionários pela sectarização em que se deixam cair, ao
responder à sectarização direitista.
Não queremos, porém, com isto dizer – e o deixamos claro no ensaio anterior
dócil objeto da dominação.
Precisamente porque inscrito, como radical, num processo de libertação, não pode ficar passivo diante da
violência do dominador.
Por outro lado, jamais será o radical um subjetivista. É que, para ele, o aspecto subjetivo toma corpo
numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria idéia, isto é, com os conteúdos concretos da
realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente. Subjetividade e objetividade, desta forma, se encontram
naquela unidade dialética de que resulta um conhecer solidário com o atuar e este com aquele. É
“...And it is salely by risking life that freedom is obtained... The individual, who has hot staked his lifeThe Phenomenology of Mind, Harper and Row, 1967, p.233.status quo. Por isto, se astatus quo ameaça, então, a liberdade.3 – que o radical se torne 3
exatamente esta unidade dialética a que gera um atuar e um pensar certos na e sobre a realidade para
transformá -la.
O sectário, por sua vez, qualquer que seja a opção de onde parta na sua “irracionalidade” que o cega, não
percebe ou não pode perceber a dinâmica da realidade ou a percebe equivocadamente.
Até quando se pensa dialético, a sua é uma “dialética domesticada”.
Esta é a razão, por exemplo, por que o sectário de direita que, no nosso ensaio anterior, chamamos de
“sectário de nascença” pretende frear o processo, “domesticar” o tempo e, assim, os homens. Esta é a
razão também porque o homem de esquerda, ao sectarizar-se, se equivoca totalmente na sua
interpretação “dialética” da realidade, da história, deixando-se cair em posições fundamentalmente
fatalistas.
Distinguem-se, na medida em que o primeiro pretende “domesticar” o presente para que o futuro, na
melhor das hipóteses, repita o presente “domesticado”, enquanto o segundo transforma o futuro em algo
pré-estabelecido, uma espécie de fado, de sina ou de destino irremediáveis. Enquanto, para o primeiro, o
hoje ligado ao passado, é algo dado e imutável; para o segundo, o amanhã é algo pré-dado, prefixado
inexoravelmente. Ambos se fazem reacionários porque, a partir de sua falsa visão da história,
desenvolvem um e outro formas de ação negadoras da liberdade. É que, o fato de um conceber o
presente “bem comportado” e o outra, o futuro como predeterminado, não significa que se tornem
espectadores, que cruzem os braços, o primeiro, esperando a manutenção do presente, uma espécie de
volta ao passado; o segundo, à, espera de que o futuro já “conhecido” se instale.
Pelo contrário, fechando-se em um “circulo de segurança”, do qual não podem sair, estabelecem ambos a
sua verdade. E esta não é a dos homens na luta para construir o futuro, correndo o risco desta própria
construção. Não é a dos homens lutando e aprendendo, uns com os outros, a edificar este futuro, que
ainda não está dado, como se fosse destino, como se devesse ser recebido pelos homens e não criado por
eles.
A sectarização, em ambos os casos, é reacionária porque, um e outro, apropriando-se do tempo de cujo
saber se sentem igualmente proprietários, terminam sem o povo, uma forma de estar contra ele.
Enquanto o sectário de direita, fechando-se em "sua” verdade, não faz mais do que o que lhe é próprio, o
homem de esquerda, que se sectariza e também se encerra, é a negação de si mesmo.
Um, na posição que lhe é própria; o outro, na que o nega, ambos girando em torno de “sua” verdade,
sentem-se abalados na sua segurança, se alguém a discute. Dai que lhes se já necessário considerar
como mentira tudo o que não seja a sua verdade. "Sofrem ambos da falta de dúvida”
O radical, comprometido com a libertação dos homens, não se deixa prender em “círculos de segurança”,
nos quais aprisione também a realidade. Tão mais radical, quanto mais se inscreve nesta realidade para,
conhecendo-a melhor, melhor poder transformá-la.
Não teme enfrentar, não teme ouvir, não teme o desvelamento do mundo. Não teme o encontro com o
povo. Não teme o diálogo com ele, de que resulta o crescente saber de ambos
tempo, nem dono dos homens, nem libertador dos oprimidos. Com eles se compromete, dentro do tempo,
para com eles lutar.
Se a sectarização, como afirmamos, é o próprio do reacionário, a radicalização é o próprio do
revolucionário. Dai que a pedagogia do oprimido, que implica numa tarefa radical, cujas linhas
introdutórias pretendemos apresentar neste ensaio e a própria leitura deste texto não possam ser
realizadas por sectários.
Educação como Prática da Liberdade, op. cit.4.5. Não se sente dono do 4
Márcio Moreira Alves, em conversa com o autor. 5
Partido, este se encontrará em grande perigo de ir ao fracasso". Rosa Luxemburgo, “Reforma o
Revolución"?
Queremos expressar aqui o nosso agradecimento a Elza, de modo geral nossa primeira leitora, por sua
compreensão e estímulos constantes a nosso trabalho, que também é seu. Agradecimento que
estendemos a todos quantos leram os originais deste ensaio pelas criticas que nos fizeram, o que não nos
retira ou diminui a responsabilidade pelas afirmações nele feitas.
Paulo Freire
Santiago, Outono de 1968
"Enquanto o conhecimento teórico permaneça como privilégio de uns quantos ‘acadêmicos’ dentro doIn: Wrigh Mills, Los Marxistas. México. Ed. Era S. A., 1964, pág. 171. 1. Justificativa da «pedagogia
do oprimido»
Reconhecemos a amplitude do tema que nos propomos tratar neste ensaio, com o qual pretendemos, em
certo aspecto, aprofundar alguns pontos discutidos em nosso trabalho anterior Educação como
Liberdade.
parece de importância fundamental.
Mais uma vez os homens, desafiados pela dramaticidade da hora atual, se propõem, a si mesmos, como
problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu “posto no cosmos”, e se inquietam por saber mais.
Estará, aliás, no reconhecimento do seu pouco saber de si uma das razões desta procura. Ao instalar-se
na quase, senão trágica descoberta do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos.
Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas.
O problema de sua humanização, apesar de sempre dever haver sido, de um ponto de vista axiológico, o
seu problema central, assume, hoje, caráter de preocupação iniludível.
Prática daDai que o consideremos como mera introdução, como simples aproximação a assunto que nos1 Constatar esta preocupação implica, indiscutivelmente, em reconhecer a desumanização, não apenas
como viabilidade ontológica, mas como realidade histórica. É também, e talvez sobretudo, a partir desta
dolorosa constatação, que os homens se perguntam sobre a outra viabilidade – a de sua humanização.
Ambas, na raiz de sua inconclusão, que os inscreve num permanente movimento de busca. Humanização
e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades dos
homens como seres inconclusos e conscientes de sua inconclusão.
Mas, se ambas são possibilidades, só a primeira nos parece ser o que chamamos de vocação dos homens.
Vocação negada, mas também afirmada na própria negação. Vocação negada na injustiça, na exploração,
na opressão, na violência dos opressores. Mas afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos
oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada.
A desumanização, que não se verifica, apenas, nos que têm sua humanidade roubada, mas também,
ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais. É distorção possível
na história, mas não vocação histórica. Na verdade, se admitíssemos que a desumanização é vocação
histórica dos homens, nada mais teríamos que fazer, a não ser adotar uma atitude cínica ou de total
desespero. A luta pela humanização, pelo trabalho livre, pela desalienação, pela afirmação dos homens
como pessoas, como “seres para si”, não teria significação. Esta somente é possível porque a
desumanização, mesmo que um fato concreto na história, não é porém,
uma “ordem” injusta que gera a violência dos opressores e esta, o
destino dado, mas resultado deser menos. A CONTRADIÇÃO OPRESSORES-OPRIMIDOS.
SUA SUPERAÇÃO
A violência dos opressores que os faz tamb ém desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser
menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os
fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscar recuperar sua humanidade,
que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato,
opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E ai está a grande tarefa
1
peculiaridades dos espaços onde se dão, manifestam, em sua profundidade, esta preocupado em torno do
homem e dos homens, como seres no mundo e com o mundo. Em torno do
Ao questionarem a "civilização do consumo"; ao denunciarem as "burocracias" de todos os matizes; ao
exigirem a transformação das Universidades, de que resulte, de um lado, o desaparecimento da rigidez
nas relações professor-aluno; de outro, a inserção delas na realidade; ao proporem a transformação da
realidade mesma para que as Universidades possam renovar-se; ao rechaçarem velhas ordens e
instituições estabelecidas, buscando a afirmação dos homens como sujeitos de decisão, todos estes
movimentos refletem o sentido mais antropológico do que antropocêntrico de nossa época.
humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. Estes, que oprimem, exploram e
violentam, em razão de seu poder, não podem ter, roeste poder, a força de libertação dos oprimidos nem
de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar
a ambos. Por isto é que o poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos
oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa. Os
opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo
oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora,
permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria
Daí o desespero desta “generosidade” diante de qualquer ameaça, embora tênue, à sua fonte. Não pode
jamais entender esta “generosidade” que a verdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam
as razões que alimentam o falso amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do "demitido da
vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos esfarrapados do mundo,
dos “condenados da terra”. A grande generosidade está em lutar para que, cada vem mais, estas mãos,
sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplica de humildes a
poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo.
Este ensinamento e este aprendizado têm de partir, porém, dos “condenados da terra”, dos oprimidos,
dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem. Lutando pela restauração de
sua humanidade estarão, sejam homens ou povos, tentando a restauração da generosidade verdadeira.
Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma
sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para
ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela
práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela
finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na
violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida.
A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o
que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele,
enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça
da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento
necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.
O grande problema está em como poderão os oprimidos, que “hospedam” ao opressor em si, participar da
elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação. Somente na medida em que
se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia
libertadora. Enquanto vivam a dualidade na qual ser é parecer e parecer é parecer com o opressor, é
impossível fazê-lo. A pedagogia do oprimido, que não pode ser elaborada pelos opressores, é um dos
instrumentos para esta descoberta critica – a dos oprimidos por si mesmos e a dos opressores pelos
oprimidos, como manifestações da desumanização.
Há algo, porém, a considerar nesta descoberta, que está diretamente ligado à pedagogia libertadora. É
que, quase sempre, num primeiro momento deste descobrimento, os oprimidos, em lugar de buscar a
libertação, na luta e por ela, tendem a ser opressores também, ou subopressores. A estrutura de seu
pensar se encontra condicionada pela contradição vivida na situação concreta, existencial, em que se
“formam”. O seu ideal é, realmente, ser homens, mas, para eles, ser homens, na contradição em que
sempre estiveram e cuja superação não lhes está, clara, é ser opressores. Estes são o seu testemunho de
humanidade.
Isto decorre, como analisaremos mais adiante, com mais vagar, do fato de que, em certo momento de
sua experiência existencial, os oprimidos assumam uma postura que chamamos de “aderência” ao
Os movimentos de rebelião, sobretudo de jovens, no mundo atual, que necessariamente revelamque e de como estão sendo.2. 2
dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbulo, ele o recusaria porque teria a impressão de
morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas:
não sacies a minha sede com as lágrimas de me us irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os
soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei
muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?" São Gregório de Nissa, (330)
"Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrima s, Sermão contra os Usuários.
opressor. Nestas circunstâncias, não chegam a “admirá-lo”, o que os levaria a objetivá-lo, a descobri-lo
fora de si.
Ao fazermos esta afirmação, não queremos dizer que os oprimidos, neste caso, não se saibam oprimidos.
O seu conhecimento de si mesmos, como oprimidos, se encontra, contudo, prejudicado pela “imersão” em
que se acham na realidade opressora. “Re conhecer-se” a este nível, contrários ao outro, não significa
ainda lutar pela superação da contradição. Daí esta quase aberração: um dos pólos da contradição
pretendendo não a libertação, mas a identificação com o seu contrário.
O “homem novo”, em tal caso, para os oprimidos, não é o homem a nascer da superação da contradição,
com a transformação da velha situação concreta opressora, que cede seu lugar a uma nova, de libertação.
Para eles, o novo homem são eles mesmos, tornando-se opressores de outros. A sua visão do homem
novo é uma visão individualista. A sua aderência ao opressor não lhes possibilita a consciência de si como
pessoa, nem a consciência de classe oprimida.
Desta forma, por exemplo, querem a reforma agrária, não para libertar-se, mas para passar a ter terra e,
com esta, tornar-se proprietários ou, mais precisamente, patrões de novos empregados.
Raros são os camponeses que, ao serem “promovidos” a capatazes, não se tornam mais duros opressores
de seus antigos companheiros do que o patrão me smo. Poder-se-ia dizer – e com razão – que isto se deve
ao fato de que a situação concreta, vigente, de opressão, não foi transformada. E que, nesta hipótese, o
capataz, para assegurar seu posto, tem de encarnar, com mais dureza ainda, a dureza do patrão. Tal
afirmação não nega a nossa – a de que, nestas circunstâncias, os oprimidos têm no opressor o seu
testemunho de “homem”.
Até as revoluções, que transformam a situação concreta de opressão em uma nova, em que a libertarão
se instaura como processo, enfrentam esta manifestação da consciência oprimida. Muitos dos oprimidos
que, direta ou indiretamente, participaram da revolução, marcados pelos velhos mitos da estrutura
anterior, pretendem fazer da revolução a sua revolução privada. Perdura neles, de certo modo, a sombra
testemunhal do opressor antigo. Este continua a ser o seu testemunho de “humanidade”.
O “medo da liberdade”,
a pretender ser opressores também, quanto pode mantê-los atados ao
aspecto que merece igualmente nossa reflexão.
Um dos elementos básicos na mediação opressores-oprimidos é a
imposição da opção de uma consciência a outra. Daí, o sentido alienador das prescrições que transformam
a consciência recebedora no que vimos chamando de consciência “hospedeira” da consciência opressora.
Por isto, o comportamento dos oprimidos é um comportamento prescrito. Faz-se à base de pautas
estranhas a eles – as pautas dos opressores.
Os oprimidos, que introjetam a "sombra” dos opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, aa
medida em que esta, implicando na expulsão desta sombra, exigiria deles que “preenchessem” o “vazio”
deixado pela expulsão, com outro “conteúdo” – o de sua autonomia. O de sua responsabilidade, sem o
que não seriam livres. A liberdade, que é uma conquista, e não uma doação, exige uma permanente
busca. Busca permanente que só existe no ato responsável de quem a faz. Ninguém tem liberdade para
ser livre: pelo contrário, luta por ela precisamente porque não a tem. Não é também a liberdade um ponto
ideal, fora dos homens, ao qual inclusive eles se alienam. Não é idéia que se faça mito. É condição
indispensável ao movimento de busca em que estão inscritos os homens como seres inconclusos.
Dai, a necessidade que se impõe de superar a situação opressora. Isto implica no reconhecimento crítico,
na “razão” desta situação, para que, através de uma ação transformadora que incida sobre ela, se
instaure uma outra, que possibilite aquela busca do ser mais.
3 de que se fazem objeto os oprimidos, medo da liberdade que tanto pode conduzilosstatus de oprimidos, é outroprescrição. Toda prescrição é a 3
oprimidos, o medo da liberdade é o medo de assumi-la. Nos opressores, é o medo de perder a "liberdade”
de oprimir.
No momento, porém, em que se comece a autêntica luta para criar a situação que nascerá da superação
da velha, já se está lutando pelo
desumanizante, que atinge aos que oprimem e aos oprimidos, não vai ceder, como já afirmamos, aos
primeiros, que se encontram desumanizados pelo só motivo de oprimir, mas aos segundos, gerar de seu
Este medo da liberdade também se instala nos opressores, mas, obviamente, de maneira diferente. NosSer Mais. E, se a situação opressora gera uma totalidade desumanizada e ser menos
Os oprimidos, contudo, acomodados e adaptados, “imersos” na própria engrenagem da estrutura
dominadora, temem a liberdade, enquanto não se sentem capazes de correr o risco de assumi-la. E a
temem, também, na medida em que, lutar por ela, significa uma ameaça, não só aos que a usam para
oprimir, como seus “proprietários” exclusivos, mas aos companheiros oprimidos, que se assustam com
maiores repressões.
Quando descobrem em si o anseio por libertar-se, percebem que este anseio somente se faz concretude
na concretude de outros anseios.
Enquanto tocados pelo medo da liberdade, se negam a apelar a outros e a escutar o apelo que se lhes
faça ou que se tenham feito a si mesmos, preferindo a gregarização à convivência autêntica. Preferindo a
adaptação
quando ainda somente buscada.
Sofrem uma dualidade que se instala na “interioridade” do seu ser. Descobrem que, não sendo livres, não
chegam a ser autenticamente. Querem ser, mas temem ser. São eles e ao mesmo tempo são o outro
introjetado neles, como consciência opressora. Sua luta se trava entre serem eles mesmos ou serem
duplos. Entre expulsarem ou não ao opressor de “dentro” de si. Entre se desalienarem ou se manterem
alienados. Entre seguirem prescrições ou terem opções. Entre serem espectadores ou atores. Entre
atuarem ou terem a ilusão de que atuam, na atuação dos opressores. Entre dizerem a palavra ou não
terem voz, castrados no seu poder de criar e recriar, no seu poder de transformar o mundo.
Este é o trágico dilema dos oprimidos, que a sua pedagogia tem de enfrentar.
A libertação, por isto, é um parto. E um parto doloroso. O homem que nasce deste parto é um homem
novo que só é viável na e pela, superação da contradição opressores-oprimidos, que é a libertação de
todos.
A superação da contradição é o parto que traz ao mundo este homem novo não mais opressor; não mais
oprimido, mas homem libertando-se.
Esta superação não pode dar-se, porém, em termos puramente idealistas. Se se faz indispensável aos
oprimidas, para a luta por sua libertação, que a realidade concreta de opressão já não seja para eles uma
espécie de “mundo fechado” (em que se gera o seu medo da liberdade) do qual não pudessem sair, mas
uma situação que apenas os limita e que eles podem transformar, é fundamental, então, que, ao
reconhecerem o limite que a realidade opressora lhes impõe, tenham, neste reconhecimento, o motor de
sua ação libertadora.
Vale dizer pois, que reconhecer-se limitadas pela situação concreta de opressão, de que o falso sujeito, o
falso “ser para si”, é o opressor, não significa ainda a sua libertação. Como contradição do opressor, que
tem neles a sua verdade, como disse Hegel,
reconhecer-se oprimidos os engaja na luta por libertar-se.
Não basta saber-se numa relação dialética com o opressor – seu contrário antagônico – descobrindo, por
exemplo, que sem eles o opressor não existiria, (Hegel) para estarem de fato libertados. É preciso,
enfat izemos, que se entreguem à práxis libertadora.
O mesmo se pode dizer ou afirmar com relação ao opressor, tomado individualmente, como pessoa.
Descobrir-se na posição de opressor, mesmo que sofra por este fato, não é ainda solidarizar-se com os
oprimidos. Solidarizar-se com estes é algo mais que prestar assistência a trinta ou a cem, mantendo-os
a busca do ser mais de todos.em que sua não liberdade os mantém à comunhão criadora, a que a liberdade leva, até mesmo4 somente superam a contradição em que se acham, quando o 4
"The truth of the independent consciousness is (accordingly) the consciousness of the bondsman”. Hegel, op. cit.
atados, contudo, à mesma posição de dependência. Solidarizar-se não é ter a consciência de que explora
e “racionalizar” sua culpa paternalistamente. A solidariedade, exigindo de quem se solidariza, que
“assuma” a situação de com quem se solidarizou, é uma atitude radical.
Se o que caracteriza os oprimidos, como “consciência servil” em relação à consciência do senhor, é fazerse
quase “coisa” e transformar-se, como salienta Hegel”
verdadeira com eles está em com eles lutar para a transformação da realidade objetiva que os faz ser este
"ser para outro”.
O opressor só se solidariza com os oprimidos quando o seu gesto deixa de ser um gesto piegas e
sentimental, de caráter individual, e passa a ser um ato de amor àqueles. Quando, para ele, os oprimidos
deixam de ser uma designação abstrata e passam a ser os homens concretos, injustiçados e roubados.
Roubados na sua palavra, por isto no seu trabalho comprado, que significa a sua pessoa vendida. Só na
plenitude deste ato de amar, na sua existenciação, na sua práxis, se constitui a solidariedade verdadeira.
Dizer que es homens são pessoas e, como pessoas, são livres, e nada concretamente fazer para que esta
afirmação se objetive, é uma farsa.
Da mesma forma como é, em uma situação concreta – a da opressão – que se instaura a contradição
opressor-oprimidos, a superação desta contradição só se pode verificar
Dai, esta exigência radical, tanto para o opressor que se descobre opressor; quanto para os oprimidos
que, reconhecendo-se contradição daquele, desvelam o mundo da opressão e percebem os mitos que o
alimentam – a radical exigência da transformação da situação concreta que gera a opressão.
Parece-nos muito claro, não apenas neste, mas noutros momentos do ensaio que, ao apresentarmos esta
radical exigência – a da transformação objetiva da situação opressora – combatendo um imobilismo
subjetivista que transformasse o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um
dia a opressão desapareceria por si mesma, não estamos negando o papel da subjetividade na luta pela
modificação das estruturas.
Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Não há uma sem a outra, que não podem ser
dicotomizadas.
A objetividade dicotomizada da subjetividade, a negação desta na análise da realidade ou na ação sobre
ela, é
subjetivismo que se alonga em posições solipsistas, nega a ação mesma, por negar a realidade objetiva,
desde que esta passa a ser criação da consciência. Nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo,
mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade.
Confundir subjetividade com subjetivismo, com psicologismo, e negar-lhe a importância que tem no
processo de transformação do mundo, da história, é cair num simplismo ingênuo. É admitir o impossível:
um mundo sem homens, tal qual a outra ingenuidade, a do subjetivismo, que implica em homens sem
mundo.
Não há um sem os outros, mas ambos em permanente integração.
Em Marx, como em nenhum pensador crítico, realista, jamais se encontrará esta dicotomia. O que Marx
criticou e, cientificamente destruiu, não foi a subjetividade, mas o subjetivismo, o psicologismo.
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também
não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores desta realidade e se esta, na “invasão da
práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa
dos homens.
, p. 237.5, em “consciência para outro”, a solidariedadeobjetivamente também.objetivismo. Da mesma forma, a negação da objetividade, na análise como na ação, conduzindo ao 5
essential nature is to be for itself; the other is dependent and its essence is life or existence for another.
The former is the Master, or Lord, the latter the Bondsman. Hegel,
Ao fazer-se opressora, a realidade implica na existência dos que oprimem e dos que são oprimidos. Estes,
a quem cabe realmente lutar por sua libertação juntamente com os que com eles em verdade se
solidarizam, precisam ganhar a consciência crítica da opressão, na práxis desta busca.
Este é um dos problemas mais graves que se põem à libertação. É que a realidade opressora, ao
constituir-se como um quase mecanismo de absorção dos que nela se encontram, funciona como uma
força de imersão das consciências.
Referindo-se à consciência senhorial e à consciência servil, diz Hegel: “the one is independent, and itsop. cit, p. 234.6 Neste sentido, em si mesma, esta realidade é funcionalmente domesticadora. Libertar-se de sua força
exige, indiscutivelmente, a emersão dela, a volta sobre ela. Por isto é que, só através da práxis autêntica,
que não sendo “blablablá”, nem ativismo, mas ação e reflexão, é possível fazê-lo.
“Hay que hacer la opresión real todavia más opresiva añadiendo a aquella la consciencia de la opresión,
haciendo la infamia todavia más infamante, al pregonarla”
Este fazer “a opressão real ainda mais opressora, acrescentando-lhe a consciência da opressão”, a que
Marx se refere, corresponde à relação dialética subjetividade-objetividade. Somente na sua solidariedade,
em que o subjetivo constitui com o objetivo uma unidade dialética, é possível a práxis autêntica.
A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá -lo, Sem ela, é impossível
a superação da contradição opressor-oprimidos.
Desta forma, esta superação exige a inserção critica dos oprimidos na realidade opressora, com que,
objetivando-a, simultaneamente atuam sobre ela.
Por isto, inserção crítica e ação já são a mesma coisa. Por isto também é que o mero reconhecimento de
uma realidade que não leve a esta inserção critica (ação já) não conduz a nenhuma transformação da
realidade objetiva, precisamente porque não é reconhecimento verdadeiro.
Este é o caso de um “reconhecimento” de caráter puramente subjetivista, que é antes o resultado da
arbitrariedade do subjetivista o qual, fugindo da realidade objetiva, cria uma falsa realidade “em si
mesmo”. E não é possível transformar a realidade concreta na realidade imaginária.
É o que ocorre, igualmente, quando a modificação da realidade objetiva fere os interesses individuais ou
de classe de quem faz o reconhecimento.
No primeiro caso, não há inserção critica na realidade, porque esta é fictícia; no segundo, porque a
inserção contradiria os interesses de classe do reconhecedor.
A tendência deste é, então, comportar-se “neuroticamente”. O fato existe, mas tanto ele quanto o que
dele talvez resulte lhe podem ser adversos. Daí que seja necessário, numa indiscutível “racionalização”,
não propriamente negá-lo, mas vê-lo de forma diferente. A “racionalização”, como mecanismo de defesa,
termina por identificar-se com o subjetivismo. Ao não negar o fato, mas ao distorcer suas verdades, a
“racionalização” “retira” as bases objetivas do mesmo. O fato deixa de ser ele concretamente e passa a
ser um mito criado para a defesa da classe do que fez o reconhecimento, que, assim, se torna falso. Desta
forma, mais uma vez, é impossível a “inserção critica”, que só existe na dialeticidade objetividadesubjetividade.
Ai está uma das razões para a proibição, para as dificuldades – como veremos no último capítulo deste
ensaio – no sentido de que as massas populares cheguem a “inserir-se”, criticamente, na realidade. É que
o opressor sabe muito bem que esta “inserção critica” das massas oprimidas, na realidade opressora, em
nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu estado de
7. 6
a prolongação e a inserção continuadas deste na história. A ação dominadora, entretanto, não supõe esta
dimensão com a mesma necessariedade, pois a própria funcionalidade mecânica e inconsciente da
estrutura é mantenedora de si mesma e, portanto, da dominação”. De um trabalho inédito de José Luiz
Fiori, a quem o autor agradece a possibilidade da citação.
“A ação libertadora implica num momento necessariamente consciente e volitivo, configurando-se como 7
“imersão” em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como
“situação limite”, que lhes parece intransponível.
É interessante observar a advertência que faz Lukács
employer les mots de Marx, expliquer aux masses leur propre action non seulement afin d’assurer la
continuité des expériences revolutionnaires du prolétariat, mais aussi d’activer consciemment le
développement ulterieur de ces expériences”.
Ao afirmar esta necessidade, Lukács coloca, indiscutivelmente, a questão da “inserção crítica” a que nos
referimos.
“Expliquer aux masses leur propre action” é esclarecer e iluminar a ação, de um lado, quanto à sua
relação com os dados objetivos que a provocam; de outro, no que diz respeito às finalidades da própria
ação.
Quanto mais as massas populares desvelam a realidade objetiva e desafiadora sobre a qual elas devem
incidir sua ação transformadora, tanto mais se “inserem” nela criticamente.
Desta forma, estarão ativando “consciemment le développement ultérieur” de suas experiências.
É que não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como “não eu” do
homem, capaz de desafio-lo; como também pão haveria ação humana se o homem não fosse um
“projeto”, um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhecê-la para transformá -la.
Num pensar dialético, ação e mundo, mundo e ação, estão intimamente solidários. Mas, a ação só é
humana quando, mais que um puro fazer, é um que fazer, isto é, quando também não se dicotomiza da
reflexão. Esta, necessária à ação, está implícita na exigência que faz Lukács da “explicação às massas de
sua própria ação” – como está implícita na finalidade que ele dá a essa explicação – a de “ativar
conscientemente o desenvolvimento ulterior da experiência”.
Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às massas, mas em dialogar com elas
sobre a sua ação. De qualquer forma, o dever que Lukács reconhece ao partido revolucionário de “explicar
às massas a sua ação” coincide com a exigência que fazemos da inserção critica das massas na sua
realidade através da práxis, pelo fato de nenhuma realidade se transformar a si mesma.
“Marx/Engels, La Sagrada Família y Otros Escritos. México, Grijalbo, 1962, p. 6. (O grifo é nosso.)8 ao partido revolucionário de que “(...) il doit, pour9 A pedagogia do oprimido que, no fundo, é a pedagogia dos homens empenhando-se na luta por sua
libertação, tem suas raízes aí. E tem que ter, nos próprios oprimidos que se saibam ou comecem
criticamente a saber-se oprimidos, um dos seus sujeitos.
Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer deles
seres desditados, objetos de um “tratamento” humanitarista, para tentar, através de exemplos retirados
de entre os opressores, modelos para a sua "promoção”. Os oprimidos hão de ser o exemplo para si
mesmos, na luta por sua redenção.
A pedagogia do oprimido, que busca a restauração da intersubjetividade, se apresenta como pedagogia do
Homem. Somente ela, que se anima de generosidade autêntica, humanista e não “humanitarista”, pode
alcançar este objetivo. Pelo contrário, a pedagogia que, partindo dos interesses egoístas dos opressores,
egoísmo camuflado de falsa generosidade, faz dos oprimidos objetos de seu humanitarismo, mantém e
encarna a própria opressão. É instrumento de desumanização.
Esta é a razão pela qual, como já afirmamos, esta pedagogia não pode ser elaborada nem praticada pelos
opressores.
8
G. Lukács, Lenine. Paris, Études et Documentation Internationales, 1965, p.62. 9
por tanto, los hombres modificados son producto de circunstancias distintas y de una educación distinta,
olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el proprio educador
necesita ser educado”. Marx, Tercera Tesis sobre Feuerbah,
Editorial Progresso, 1966, tomo II, p. 404.
Seria uma contradição se os opressores, não só defendessem, mas praticassem uma educação
libertadora.
Se, porém, a prática desta educação implica no poder político e se os oprimidos não o têm, como então
realizar a pedagogia do oprimido antes da revolução?
Esta é, sem duvida, uma indagação da mais alta importância, cuja a resposta nos parece encontrar-se
mais ou menos clara no último capítulo deste ensaio.
Ainda que não queiramos antecipar-nos, poderemos, contudo, afirmar que um primeiro aspecto desta
indagação se encontra na distinção entre
os
A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá, dois momentos distintos. O
primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis,
com a sua transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora, esta pedagogia deixa
de ser do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de permanente libertação.
Em qualquer destes momentos, será sempre a ação profunda, através da qual se enfrentará,
culturalmente, a cultura da dominação
mundo opressor por parte dos oprimidos; no segundo, pela expulsão dos mitos criados e desenvolvidos na
estrutura opressora e que se preservam como espectros míticos, na estrutura nova que surge da
transformação revolucionária.
No primeiro momento, o da pedagogia do oprimido, objeto da análise deste capítulo, estamos em face do
problema da consciência oprimida e da consciência opressora; dos homens opressores e dos homens
oprimidos, em uma situação concreta de opressão. Em face do problema de seu comportamento, de sua
visão do mundo, de sua ética. Da dualidade dos oprimidos. E é como seres duais, contraditórios, divididos,
que temos de encará-los. A situação de opressão em que se “formam”, em que “realizam” sua existência,
os constitui nesta dualidade, na qual se encontram proibidos de ser. Basta, porém, que homens estejam
sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica seja, em si
mesma, uma violência. Violência real, não importa que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade a
que nos referimos, porque fere a ontológica e histórica vocação dos homens – a do
Daí que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência, que jamais foi até hoje, na
história, deflagrada pelos oprimidos.
Como poderiam os oprimidos dar inicio à violência, se eles são o resultado de uma violência?
Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os constitui?
Não haveria oprimidos, se não houvesse uma relação de violência que os conforma como violentados,
numa situação objetiva de opressão.
Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os
oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como
La teoria materialista de que los hombres son producto de las circunstancias y de la educación, y de que,in Marx/Engels – Obras Escogidas. Moscou,educação sistemática, a que só pode ser mudada com o poder, etrabalhos educativos, que devem ser realizados com os oprimidos, no processo de sua organização.10. No primeiro momento, por meio da mudança da percepção doser mais.outro. Inauguram o desamor, não os desamados, mas os que não amam, porque apenas se amam.
Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu
poder, criam a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.
Quem inaugura a tirania não são os tiranizados, mas os tiranos.
Quem inaugura o ódio não são os odiados, mas os que primeiro odiaram.
10
Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas as que a
negaram, negando também a sua.
Quem inaugura a força não são os que se tornaram fracos sob a robustez dos fortes, mas os fortes que os
debilitaram.
Para os opressores, porém, na hipocrisia de sua “generosidade”, são sempre os oprimidos, que eles
jamais obviamente chamam de oprimidos, mas, conforme me situem, interna ou externamente, de “essa
gente” ou de “essa massa cega e invejosa”, ou de “selvagens”, ou de “nativos”, ou de “subversivos”, são
sempre os oprimidos os que desamam. São sempre eles os “violentos”, os "bárbaros” os “malvados”, os
“ferozes”, quando reagem à, violência dos opressores.
Na verdade, porém, por paradoxal que possa parecer, na resposta dos oprimidos à violência dos
opressores é que vamos encontrar o gesto de amor. Consciente ou inconscientemente, o ato de rebelião
dos oprimidos, que é sempre tão ou quase tão violento quanto a violência que os cria, este ato dos
oprimidos, sim, pode inaugurar o amor.
Enquanto a violência dos opressores faz dos oprimidos homens proibidos de
violência daqueles se encontra infundida do anseio de busca do direito de ser.
Os opressores, violentando e proibindo que os outros sejam, não podem igualmente ser; os oprimidos,
lutando por ser, ao retirar-lhes o poder de oprimir e de esmagar, lhes restauram a humanidade que
haviam perdido no uso da opressão.
Por isto é que, somente os oprimidos, libertando-se, podem libertar os opressores. Estes, enquanto classe
que oprime, nem libertam, nem se libertam.
O importante, por isto mesmo, é que a luta dos oprimidos se faça para superar a contradição em que se
acham. Que esta superação seja o surgimento do homem novo – não mais opressor, não mais oprimido,
mas homem libertando-se. Precisamente porque, se sua luta é no sentido de fazer-se Homem, que
estavam sendo proibidos de ser, não o conseguirão se apenas invertem as termos da contradição. Isto é,
se apenas mudam de lugar, nos pólos da contradição.
Esta afirmação pode parecer ingênua. Na verdade, não o é.
Reconhecemos que, na superação da contradição opressores-oprimidos, que somente pode ser tentada e
realizada por estes, está implícito o desaparecimento dos primeiros, enquanto classe que oprime. Os freios
que os antigos oprimidos devem impor aos antigos opressores para que não voltem a oprimir não são
opressão daqueles a estes. A opressão só existe quando se constitui em um ato proibitivo do
homens. Por esta razão, estes freios, que são necessários, não significam, em si mesmos, que os
oprimidos de ontem se tenham transformado nos opressores de hoje .
Os oprimidos de ontem, que detêm os antigos opressores na sua ânsia de oprimir, estarão gerando, com
seu ato, liberdade, na medida em que, com ele, evitam a volta do regime opressor. Um ato que proíbe a
restauração deste regime não pode ser comparado com o que o cria e o mantém; não pode ser
comparado com aquele através do qual alguns homens negam às maiorias o direito de ser.
No momento, porém, em que o novo poder se enrijece em “burocracia”
dimensão humanista da luta e já não se pode falar em libertação.
Daí a afirmação anteriormente feita, de que a superação autêntica da contradição opressores-oprimidos
não está na pura troca de lugar, na passagem de um pólo a outro. Mais ainda: não está em que os
oprimidos de hoje, em nome de sua libertação, passem a ter novos opressores.
Este nos parece ser o fundamental aspecto da "revolução cultural”.ser, a resposta destes àser mais dos11 dominadora, se perde a 11
impostos aos antigos opressores para que não restaurem a ordem dominadora. É de outra natureza.
Implica a revolução que, estagnando-se, volta-se contra o povo, usando o mesmo aparato burocrático
repressivo do Estado, que devia ter sido radicalmente suprimido, como tantas vezes salientou Marx.
A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO
E OS OPRESSORES
Mas, o que ocorre, ainda quando a superação da contradição se faça em termos autênticos, com a
instalação de uma nova situação concreta, de uma nova realidade inaugurada pelos oprimidos que se
libertam, é que os opressores de ontem não se reconheçam em libertação. Pelo contrário, vão sentir-se
como se realmente estivessem sendo oprimidos. É que, para eles, “formados” na experiência de
opressores, tudo o que não seja o seu direito antigo de oprimir, significa opressão a eles. Vão sentir-se,
agora, na nova situação, como oprimidos porque, se antes podiam comer, vestir, calçar, educar-se,
passear, ouvir Beethoven, enquanto milhões não comiam, não calçavam, não vestiam, não estudavam
nem tampouco passeavam, quanto mais podiam ouvir Beethoven, qualquer restrição a tudo isto, em
nome do direito de todos, lhes parece uma profunda violência a seu direito de pessoa. Direito de pessoa
que, na situação anterior, não respeitavam nos milhões de pessoas que sofriam e morriam de fome, de
dor, de tristeza, de desesperança.
É que, para eles, pessoa humana são apenas eles. Os outros, estes são “coisas”. Para eles, há um só
direito – o seu direito de viverem em paz, ante o direito de sobreviverem, que talvez nem sequer
reconheçam, mas somente admitam aos oprimidos. E isto ainda, porque, afinal, é preciso que os
oprimidos existam, para que eles existam e sejam “generosos”...
Esta maneira de assim proceder, de assim compreender o mu ndo e os homens (que necessariamente os
faz reagir à instalação de um novo poder) explica-se, como já dissemos, na experiência em que se
constituem como classe dominadora.
Em verdade, instaurada uma situação de violência, de opressão, ela gera toda uma forma de ser e
comportar-se nos que estão envolvidos nela. Nos opressores e nos oprimidos. Uns e outros, porque
concretamente banhados nesta situação, refletem a opressão que os marca.
Na análise da situação concreta, existencial, de opressão, não peemos deixar de surpreender o seu
nascimento num ato de violência que é inaugurado repetimos, pelos que têm poder.
Esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo
legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos opressores uma consciência
fortemente possessiva. Possessiva do mundo e dos homens. Fora da posse direta, concreta, material, do
mundo e dos homens, os opressores não se podem entender a si mesmos. Não podem ser. Deles como
consciências necrófilas, diria Fromm que, sem esta posse, "perderiam el contacto con el mundo”
que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a
criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de
seu comando.
Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é possível transformar tudo a
seu poder de compra. Daí a sua concepção estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida
de todas as coisas. E o lucro, seu objetivo principal.
Por isto é que, para os opressores, o que vale é
Este enrijecimento não se confunde, pois, com os freios referidos anteriormente e que têm de ser12. Daíter mais e cada vez mais, à custa, inclusive, do ter menos ou do
Não pedem perceber, na situação opressora em que estão, como usufrutuários, que, se
para
do
Por isto tudo é que a sua generosidade, como salientamos, é falsa.
Por isto tudo é que a humanização é uma “coisa” que possuem como direito exclusivo, como atributo
herdado. A humanização é apenas sua. A dos outros, dos seus contrários, se apresenta como subversão.
Humanizar é, naturalmente, segundo seu ponto de vista, subverter, e não
nada ter dos oprimidos. Ser, para eles, é ter e ter como classe que tem.ter é condiçãoser, esta é uma condição necessária a todos os homens. Não podem perceber que, na busca egoístater como classe que tem, se afogam na posse e já não são. Já não podem ser.ser mais. 12
Ter mais, na exclusividade, não é um privilégio desumanizante e inautêntico dos demais e de si mesmos,
mas um direito intocável. Direito que “conquistaram com seu esforço, com sua coragem de correr risco”...
Se os outros – “esses invejosos” – não têm, é porque são incapazes e preguiçosos a que juntam ainda um
injustificável mal-agradecimento a seus “gestos generosos”. E, porque “mal-agradecidas e invejosos”, são
sempre vistos os oprimidos como seus inimigos potenciais a quem têm de observar e vigiar.
Não poderia deixar de ser assim. Se a humanização dos oprimidos é subversão, sua liberdade também o
é. Daí a necessidade de seu constante controle. E, quanto mais controlam os oprimidos, mais os
transformam em “coisa”, em algo que é como se fosse inanimado.
Esta tendência dos opressores de inanimar tudo e todos, que se encontra em sua ânsia de posse, se
identifica, indiscutivelmente, com a tendência sadista. “El placer del dominio completo sobre otra persona
(o sobre otra creatura animada), diz Fromm, es la esencia misma del impulso sádico. Otra manera de
formular la misma idea es decir que el fin dei sadismo es convertir un
algo inanimado, ya que mediante el control completo y absoluto el vivir pierde uma cualidad essencial de
la vida: la libertad.”
Erich Fromm, El Corazón del Hombre, Breviario. México, Fondo de Cultura Económica, 1967, p.41.hombre en cosa, algo animado en13 O sadismo aparece, assim, como uma das características da consciência opressora, na sua visão necrófila
do mundo. Por isto é que o seu amor é um amor às avessas – um amor à morte e não à vida.
Na medida em que, para dominar, se esforçam por deter a ânsia de busca, a inquietação, o poder de
criar, que caracterizam a vida, os opressores matam a vida.
Daí que vão se apropriando, cada vez mais, da ciência também, como instrumento para suas finalidades.
Da tecnologia, que usam como força indiscutível de manutenção da “ordem” opressora, com a qual
manipulam e esmagam
Os oprimidos, como objetos, como quase “coisas", não têm finalidades. As suas, são as finalidades que
lhes prescrevem os opressores.
Em face de tudo isto é que se coloca a nós mais um problema de importância inegável a ser observado no
corpo destas considerações que é o da adesão e conseqüente passagem que fazem representantes do pólo
opressor ao pólo dos oprimidos. De sua adesão à luta destes por libertar-se.
Cabe a eles um papel fundamental, como sempre tem cabido na história desta luta.
Acontece, porém, que, ao passarem de exploradores ou de espectadores indiferentes ou de herdeiros da
exploração – o que é uma conivência com ela – ao pólo das explorados, quase sempre levam consigo,
condicionados pela “cultura do silêncio”
deformações, entre estas, a desconfiança do povo. Desconfiança de que o povo seja capaz de pensar
certo. De querer. De saber.
Deste modo, estão sempre correndo o risco de cair num outro tipo de generosidade tão funesto quanto o
que criticamos nos dominadores.
Se esta generosidade não se nutre, como no caso dos opressores, da ordem injusta que precisa ser
mantida para justificá-la; se querem realmente transformá-la, na sua deformação, contudo, acreditam
que devem ser os fazedores da transformação.
14.15, toda a marca de sua erigem. Seus preconceitos. Suas 13
Erich Fromm, op. cit., p. 30 (os grifos são nossos). 14
A propósito das “formas dominantes de controle social” ver: Herbert Marcuse, L'Homme Unidimensionel e
Eros et Civilisation. Paris, Editions de Minuit, 1968-1961, obras já traduzidas para o português. 15
Massachusetts, Center for the Study of Development and Social Change, 1970. Este ensaio apareceu
primeiramente, em
no Brasil em 1976, pela Paz e Terra no livro
A propósito de “cultura do silêncio" ver Paulo Freire: ação cultural para a libertação. Cambridge,Harvard Educational Review, nos seus números de maio e agosto de 1970; é publicadoAção cultural para a liberdade e outros escritos. Comportam-se, assim, como quem não crê no povo, ainda que nele falem. E crer no povo é a condição
prévia, indispensável, à mudança revolucionária. Uma revolucionária se reconhece mais por esta crença
no povo, que o engaja, do que por mil ações sem ela.
Àqueles que se comprometem autenticamente com o povo é indispensável que se revejam
constantemente. Esta adesão e de tal forma radical que não permite a quem a faz comportamentos
ambíguos.
Fazer esta adesão e considerar-se proprietário do saber revolucionário, que deve, desta maneira, ser
doado ou imposto ao povo, é manter-se como era antes.
Dizer-se comprometido com a libertação e não ser capaz de
considerando absolutamente ignorante, é um doloroso equívoco.
Aproximar-se dele, mas sentir, a cada passo, a cada dúvida, a cada expressão sua, uma espécie de susto,
e pretender impor o seu
Daí que esta passagem deva ter o sentido profundo do renascer. Os que passam têm de assumir uma
forma nova de
comungar com o povo, a quem continuastatus, é manter-se nostálgico de sua origem.estar sendo; já, não podem atuar como atuavam; já não podem permanecer como estavam sendo.
A SITUAÇÃO CONCRETA DE OPRESSÃO
E OS OPRIMIDOS
Será na sua convivência com os oprimidos, sabendo também um deles – somente a um nível diferente de
percepção da realidade – que poderão compreender as formas de ser e comportar-se dos oprimidos, que
refletem, em momentos diversos, a estrutura da dominação.
Uma destas, de que já falamos rapidamente, é a dualidade existencial dos oprimidos que, “hospedando” o
opressor cuja “sombra” eles “introjetam”, são eles e ao mesmo tempo são o outro. Dai que, quase
sempre, enquanto não chegam a localizar o opressor concreta-mente, como também enquanto não
cheguem a ser “consciência para si”, assumam atitudes fatalistas em face da situação concreta de
opressão em que estão
Este fatalismo, às vezes, dá, a impressão, em análises superficiais, de docilidade, como caráter nacional, o
que é um engano. Este fatalismo, alongado em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica
e não um traço essencial da forma de ser do povo.
Quase sempre este fatalismo está, referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potências
irremovíveis – ou a uma destorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se
encontra a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza
sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor desta
“desordem organizada”.
Na “imersão” em que se encontram, não podem os oprimidos divisar, claramente, a “ordem” que serve
aos opressores que, de certa forma, “vivem” neles. “Ordem” que, frustrando-os no seu atuar, muitas
vezes os leva a exercer um tipo de violência horizontal com que agridem os próprios companheiros
possível que, ao agirem assim, mais uma vez explicitem sua dualidade. Ao agredirem seus companheiros
oprimidos estarão agredindo neles, indiretamente, o opressor também “hospedado” neles e nos outras.
Agridem, como opressores, o opressor nos oprimidos.
16.17, encontra no18. É 16
conta de sua dependência. Antes disto, segue o patrão e diz quase sempre: ‘que posso fazer, se sou um
camponês?’” – Palavras de um camponês durante entrevista com o autor. Chile.
“O camponês, que é um dependente, começa a ter ânimo para superar sua dependência quando se dá 17
Janeiro, 1966.
Ver Cândido A. Mendes, “Memento dos Vivos – a esquerda católica no Brasil”, Tempo Brasileiro, Rio de 18
liberarse entre las nueve de la noche y las seis de la mañana. Esa agresividad sedimentada en sus
músculos va a manifestarla al colonizado primero contra los suyos” (p. 46).
Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração
pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. Na
sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Segui-lo. Isto se verifica,
sobretudo, nos oprimidos de “classe média”, cujo anseio é serem iguais ao “homem ilustre” da chamada
classe “superior”.
É interessante observar como Memmi
refere à sua repulsa de colonizado ao colonizador mesclada, contudo, de “apaixonada” atração por ele.
A autodesvalia é outra característica dos oprimidos. Resulta da introjeção que fazem eles da visão que
deles têm os opressores
De tanto ouvirem de si mesmos que são incapazes, que não sabem nada, que não podem saber, que são
enfermos, indolentes, que não produzem em virtude de tudo isto, terminam por se convencer de sua
“incapacidade”
escutar. Os critérios de saber que lhe são impostos são os convencionais.
Não se percebem, quase sempre, conhecendo, nas relações que estabelecem com o mundo e com os
outros homens, ainda que um conhecimento ao nível da pura
Dentro dos marcos concretos em que se fazem duais é natural que descreiam de si mesmos
Não são poucos os camponeses que conhecemos em nossa experiência educativa que, após alguns
momentos de discussão viva em torno de um tema que lhes é problemático, param de repente e dizem ao
educador: “Desculpe, nós devíamos estar calados e o senhor falando. O senhor é o que sabe; nós, as que
não sabemos”.
Muitas vezes insistem em que nenhuma diferença existe entre eles e o animal e, quando reconhecem
alguma, é em vantagem do animal. “É mais livre do que nós”, dizem.
É impressionante, contudo, observar como, com as primeiras alterações numa situação opressora, se
verifica uma transformação nesta autodesvalia. Escutamos, certa vez, um líder camponês dizer, em
reunião, numa das unidades de produção (
“Diziam de nós que não produzíamos porque éramos
estamos sendo respeitados como homens, vamos mostrar a todos que nunca fomos
preguiçosos. Éramos explorados, isto sim”, concluiu enfático.
Enquanto se encontra nítida sua ambigüidade, os oprimidos dificilmente lutam, nem sequer confiam em si
mesmos. Têm uma crença difusa, mágica, na invulnerabilidade do opressor
sempre dá testemunho. Nos campos, sobretudo, se observa a força mágica do poder do senhor
Frantz Panon, Los condenados de la Tierra. México. Fondo de Cultura. 1965: “...el colonizado no deja de19, em uma excepcional análise da “consciência colonizada”, se20.21. Falam de si como os que não sabem e do “doutor” como o que sabe e a quem devemdoxa.22.asentamiento) da experiência chilena de reforma agrária:borrachos, preguiçosos. Tudo mentira. Agora, queborrachos, nem23. No seu poder de que24. É 19
crowd of the colonized? How could the colonized deny himself so cruelly yet ma ke such excessive
demands? How could he hate the colonizers and yet admire them so passionately? (I too felt this
admiration, diz Memmi, in spite of myself).” Albert Memmi,
Beacon Press, 1967, p. X, Prefácio. Em português,
colonizador,
Albert Memmi, – “How could the colonizer look after his workers while periodically gunning down aThe Colonizer and the Colonized. Boston,Retrato do colonizado precedido pelo retrato doRio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, 2ª edição. 20
dirigir.” (Entrevista do autor com um camponês.)
“O camponês se sente inferior ao patrão porque este lhe aparece como o que tem o mérito de saber e 21
Ver a este respeito o livro citado de Albert Memmi. 22
não explica primeiramente os quadros (referia-se às codificações). Assim, concluiu, nos custará menos e
não nos dói a cabeça.”
“Por que o senhor (disse certa vez um camponês participante de um ‘círculo de cultura’ ao educador) 23
“O camponês tem um medo quase instintivo do patrão”. (Entrevista com um camponês). 24
um grupo de camponeses, armados, se apoderou do latifúndio. Por motivos de ordem tática, se pensou
em manter o proprietário como refém. Nenhum camponês, contudo, conseguiu dar guarda a ele. Só sua
preciso que comecem a ver exemplos da vulnerabilidade do opressor para que, em si, vá, operando-se
convicção aposta à anterior. Enquanto isto não se verifica, continuarão abatidos, medrosos, esmagados
Até o momento em que os oprimidos não tornem consciência das razões de seu estado de Opressão
“aceitam” fatalistamente a sua exploração. Mais ainda, provavelmente assumam posições passivas,
alheadas, com relação à necessidade de sua própria luta pela conquista da liberdade e de sua afirmação
no mundo. Nisto reside sua “conivência” com o regime opressor.
Pouco e pouco, porém, a tendência é assumir formas de ação rebelde. Num quefazer libertador, não se
pode perder de vista esta maneira de ser dos oprimidos, nem esquecer este momento de despertar.
Dentro desta visão inautêntica de si e do mundo os oprimidos se sentem como se fossem uma quase
“coisa" possuída pelo opressor. Enquanto, no seu afã de possuir, para este, como afirmamos,
custa quase sempre dos que não têm, para os oprimidos, num momento da sua experiência existencial,
ser nem sequer é ainda
sejam dependentes emocionais
NINGUÉM LIBERTA NINGUÉM, NINGUÉM SE
LIBERTA SOZINHO:
OS HOMENS SE LIBERTAM EM COMUNHÃO
É este caráter de dependência emocional e total dos oprimidos que os pode levar a manifestações que
Fromm chama de necrófilas. De destruição da vida. Da sua ou da do outro, oprimido também.
Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por
sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “conivência” com o regime
opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos
parece fundamental, é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de
reflexão, para que seja práxis.
O diálogo critico e libertador, por isto mesmo que supõe a ação, tem de ser feito com os oprimidos,
qualquer que seja o grau em que esteja a luta por sua libertação. Não um diálogo às escâncaras, que
provoca a fúria e a repressão maior do opressor.
O que pode e deve variar, em função das condições históricas, em função do nível de percepção da
realidade que tenham os oprimidos é o conteúdo do diálogo. Substituí-lo pelo anti-diálogo, pela
sloganização, pela verticalidade, pelos comunicados é pretender a libertarão dos oprimidos com
instrumentos da “domesticaç ão”. Pretender a libertação deles sem a sua reflexão no ato desta libertação é
transformá -los em objeto que se devesse salvar de um incêndio. É faze-los cair no engodo populista e
transformá -los em massa de manobra.
Os oprimidos, nos vários momentos de sua libertação, precisam reconhecer-se como homens, na sua
vocação ontológica e histórica de Ser Mais. A reflexão e a ação se impõem, quando não se pretende,
errôneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem.
Ao defendermos um permanente esforço de reflexão das oprimidos sobre suas condições concretas, não
estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo
contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática.
Por outro lado, se o momento já é o da ação, esta se fará autêntica práxis se o saber dela resultante se
faz objeto da reflexão critica. Neste sentido, é que a práxis constitui a razão nova da consciência oprimida
presença já os assustava. Possivelmente também a ação mesma de lutar contra o patrão lhes provocasse
sentimento de culpa. O patrão, na verdade, estava “dentro” deles...
Recentemente, num país latino-americano, segundo depoimento que nos foi dado por sociólogo amigo,25.ser é ter àparecer com o opressor, mas é estar sob ele. É depender. Daí que os oprimidos26. 25
Neste sentido ver, Regis Debret, La Revolución en la Revolución. 26
sofre. Desabafa sua ‘pena’ em casa, onde grita com os filhos, bate, desespera-se. Reclama da mulher.
Acha tudo mal. Não desabafa sua ‘pena’ com o patrão porque o considera um ser superior. Em muitos
casos, o camponês desabafa sua ‘pena’ bebendo." (Entrevista.)
e que a revolução, que inaugura o momento histórico desta razão, não possa encontrar viabilidade fora
dos níveis da consciência oprimida.
A não ser assim, a ação é puro ativismo.
Desta forma, nem um diletante jogo de palavras vazias – quebra-cabeça intelectual – que, por não ser
reflexão verdadeira, não conduz à ação, nem ação pela ação. Mas ambas, ação e reflexão, como unidade
que não deve ser dicotomizada.
Para isto, contudo, é preciso que creiamos nos homens oprimidos. Que os vejamos como capazes de
pensar certo também.
Se esta crença nos falha, abandonamo s a idéia ou não a temos, do diálogo, da reflexão, da comunicação e
caiamos nos
inautênticas adesões à causa da libertação dos homens.
A ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural” para a liberdade, por isto
mesmo, ação com eles. A sua dependência emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se
acham e que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser aproveitada a não ser pelo.
opressor, Este é que se serve desta dependência para criar mais dependência.
A ação libertadora, pelo contrário, reconhecendo esta dependência dos oprimidos como ponto vulnerável,
deve tentar, através da reflexão e da ação, transformá-la em independência. Esta, porém, não é doação
que uma liderança, por mais bem intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que a
libertação dos oprimidos é libertação de homens e não de “coisas”. Por isto, se não é autolibertação –
ninguém se liberta sozinho, também não é libertação de uns feita por outros.
Não se pode realizar com os homens pela “metade”
deformação, Mas, deformados já estando, enquanto oprimidos, não pode a ação de sua libertação usar o
mesmo procedimento empregado para sua deformação.
O caminho, por isto mesmo, para um trabalho de libertação a ser realizado pela liderança revolucionário
não é a “propaganda libertadora”. Não está no mero ato de “depositar” a crença da liberdade nos
oprimidos, pensando conquistar a sua confiança, mas no dialogar com eles.
Precisamos estar convencidos de que o convencimento dos oprimidos de que devem lutar por sua
libertação não é doação que lhes faça a liderança revolucionária, mas resultado de sua conscientização.
É necessário que a liderança revolucionária descubra esta obviedade: que seu convencimento da
necessidade de lutar, que constitui uma dimensão indispensável do saber revolucionário, não lhe foi doado
por ninguém, se é autêntico. Chegou a este saber, que não é algo parado ou possível de ser transformado
em conteúdo a ser depositado nos outros, por um ato total, de reflexão e de ação.
Foi a sua inserção lúcida na realidade, na situação histórica, que a levou à crítica desta mesma situação e
ao ímpeto de transformá-la.
Assim também é necessário que os oprimidos, que hão se engajam na luta sem estar convencidos e, se
não se engajam, retiram as condições para ela, cheguem, como sujeitos, e não como objetos, a este
convencimento. É preciso que também se insiram criticamente na situação em que se encontram e de que
se acham marcados. E isto a propaganda não faz. Se este convencimento, sem o qual, repitamos, não é
possível a luta, é indispensável à liderança revolucionária, que se constitui a partir dele, o é também aos
oprimidos. A não ser que se pretenda fazer
nos parece verdadeira esta transformação
“O camponês é um dependente. Não pode expressar o seu querer. Antes de descobrir sua dependência,slogans, nos comunicados, nos depósitos, no dirigismo. Esta é uma ameaça contida nas27. E, quando o tentamos, realizamos a suapara eles a transformação e não com eles – somente como28. 27
realizada mais
Referimo -nos à redução dos oprimidos à condição de meros objetos da ação libertadora que, assim, ésobre e para eles do que com eles, como deve ser. 28
Ao fazermos estas considerações, outra coisa não estamos tentando senão defender o caráter
eminentemente pedagógico da revolução.
Se os líderes revolucionários de todos os tempos afirmam a necessidade do convencimento das massas
oprimidas para que aceitem a luta pela libertação – o que de resto é óbvio – reconhecem implicitamente o
sentido pedagógico desta luta. Muitos, porém, talvez por preconceitos naturais e explicáveis contra a
pedagogia, terminam usando, na sua ação, métodos que são empregados na “educação” que serve ao
opressor. Negam a ação pedagógica no processo de libertação, mas usam a propaganda para convencer...
Desde o começo mesmo da luta pela humanização, pela superação da contradição opressor-oprimidos, é
preciso que eles se convençam de que esta luta exige deles, a partir do momento em que a aceitam, a
sua responsabilidade total. É que est a luta não se justifica apenas em que passem a ter liberdade para
comer, mas “liberdade para criar e construir, para admirar e aventurar-se”. Tal liberdade requer que o
indivíduo seja ativo e responsável, não um escravo nem uma peça bem alimentada da máquina. Não
basta que os homens não sejam escravos; se as condições sociais fomentam a existência de autômatos, o
resultado não é o amor à vida, mas o amor à morte
que caracteriza o clima da opressão, devem encontrar, na sua luta, o caminho do amor à vida, que não
está apenas no comer mais, se bem que implique também nele e dele não possa prescindir.
É como homens que os oprimidos têm de lutar e não como "coisas”. É precisamente porque reduzidos a
quase “coisas”, na relação de opressão em que estão, que se encontram destruídos. Para reconstruir-se é
importante que ultrapassem o estado de quase “coisas”. Não podem comparecer à luta como quase
"coisas”, para depois ser homens. É radical esta exigência. A ultrapassagem deste estado, em que se
destroem, para o de homens, em que se reconstroem, não é “a posteriori”. A luta por esta reconstrução
começa no auto-reconhecimento de homens destruídos.
A propaganda, o dirigismo, a manipulação, corno armas da dominação, não podem ser instrumentos para
esta reconstrução
Não há outro caminho senão o da prática de uma pedagogia humanizadora, em que a liderança
revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os como quase “coisas”, com
eles estabelece uma relação dialógica permanente.
Prática pedagógica em que o método deixa de ser, como salientamos no nosso trabalho anterior,
instrumento do educador (no caso, a liderança revolucionária), com o qual manipula os educandos (no
caso, os oprimidos) porque é já a própria consciência.
“O método é, na verdade (diz o professor Álvaro Vieira Pinto), a forma exterior e materializada em atos,
que assume a propriedade fundamental da consciência: a sua intencionalidade. O próprio da consciência é
estar com o mundo e este procedimento é permanente e irrecusável. Portanto, a consciência é, em sua
essência, um ‘caminho para’ algo que não é ela, que está fora dela, que a circunda e que ela apreende por
sua capacidade ideativa. Por definição, continua o professor brasileiro, a consciência é, pois, método,
entendido este no seu sentido de máxima generalidade. Tal é a raiz do método, assim como tal é a
essência, da consciência, que só existe enquanto faculdade abstrata e metódica.”
No Capítulo IV voltaremos detidamente a estes pontos.29. Os oprimidos que se "formam” no amor à morte,30.31 Porque assim é, a educação a ser prat icada pela liderança revolucionária se faz co-intencionalidade.
Educador e educandos (liderança e massas), co-intencionados à realidade, se encontram numa tarefa em
que ambos são sujeitos no ato, não só de desvelá-la e, assim, criticamente conhecê-la, mas também no
de re-criar este conhecimento.
29
Erich Fromn, op. cit.,pp. 54-5. 30
No Capítulo IV voltaremos pormenorizadamente a este tema. 31
agradecimento ao mestre brasileiro por nos haver permitido citá-lo antes da publicação de sua obra.
Consideramos o trecho citado de grande importância para a compreensão de uma pedagogia da
problematização, que estudaremos no capítulo seguinte.
Ao alcançarem, na reflexão e na ação em comum, este saber da realidade, se descobrem como seus
refazedores permanentes.
Deste modo, a presença das oprimidos na busca de sua libertação, mais que pseudo-participação, é o que
deve ser: engajamento.
Álvaro Vieira Pinto, Ciência e Existência, R. J., Paz e Terra, 1986, 2ª ed. Deixamos aqui o nosso 2. A concepção «bancária» da educação
como instrumento da opressão.
Seus pressupostos, sua crítica
Quanto mais analisamos as relações educador-educandos, na escola, em qualquer de seus níveis, (ou fora
dela), parece que mais nos podemos convencer de que estas relações apresentam um caráter especial e
marcante – o de serem relações fundamentalmente
narradoras, dissertadoras. Narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto,
sejam valores ou dimensões concretas da realidade. Narração ou dissertação que implica num sujeito – o
narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos.
Há uma quase enfermidade da narração. A tônica da educação é preponderantemente esta – narrar,
sempre narrar.
Falar da realidade como algo parado, estático, compartimentado e bem comportado, quando não falar ou
dissertar sobre algo completamente alheio à experiência existencial dos educandos vem sendo, realmente,
a suprema inquietação desta educação. A sua irrefreada ânsia. Nela, o educador aparece como seu
indiscutível agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é "encher” os educandos dos
conteúdos de sua narração. Conteúdos que são retalhos da realidade desconectados da totalidade em que
se engendram e em cuja visão ganhariam significação. A palavra, nestas dissertações, se esvazia da
dimensão concreta que devia ter ou se transforma em palavra oca, em verbosidade alienada e alienante.
Dai que seja mais som que significação e, assim, melhor seria não dizê-la.
Por isto mesmo é que uma das características desta educação dissertadora é a “sonoridade” da palavra e
não sua força transformadora. Quatro vezes quatro, dezesseis; Pará, capital Belém, que o educando fixa,
memoriza, repete, sem perceber o que realmente significa quatro vezes quatro. O que verdadeiramente
significa capital, na afirmação, Pará, capital Belém. Belém para o Pará e Pará para o Brasil
A narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização mecânica do conteúdo
narrado. Mais ainda, a narração os transforma em “vasilhas”, em recipientes a serem “enchidos” pelo
educador. Quanto mais vá “enchendo” os recipientes com seus “depósitos”, tanto melhor educador será.
Quanto mais se deixem docilmente “encher”, tanto melhores educandos serão.
Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o
educador o depositante.
Em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meras
incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção “bancária” da educação,
em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los
e arquivá-los. Margem para serem colecionadores ou fic hadores das coisas que arquivam. No fundo,
porém, os grandes arquivados são os homens, nesta (na melhor das hipóteses) equivocada concepção
“bancária” da educação. Arquivados, porque, fora da busca, fora da práxis, os homens não podem ser.
Educador e educandos se arquivam na medida em que, nesta destorcida visão da educação, não há
criatividade, não há transformação, não há saber. Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca
inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros. Busca
esperançosa também.
Na visão “bancária” da educação, o “saber” é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada
saber. Doação que se funda numa das manifestações instrumentais da ideologia da opressão – a
absolutização da ignorância, que constitui o que chamamos de alienação da ignorância, segundo a qual
esta se encontra sempre no outro.
1. 1
ocorrem, continua, contudo, preponderantemente, o caráter narrador que estamos criticando.
O educador, que aliena a ignorância, se mantém em posições fixas, invariáveis. Será sempre o que sabe,
enquanto os educandos serão sempre os que não sabem. A rigidez destas posições nega a educação e o
conhecimento como processos de busca.
O educador se põe frente aos educandos como sua antinomia necessária. Reconhece, na absolutização da
ignorância daqueles a razão de sua existência. Os educandos, alienados, por sua vez, à maneira do
escravo na dialética hegeliana, reconhecem em sua ignorância a razão da existência do educador, mas
não chegam, nem sequer ao modo do escravo naquela dialética, a descobrir-se educadores do educador.
Na verdade, como mais adiante discutiremos, a razão de ser da educação libertadora está no seu impulso
inicial conciliador. Daí que tal forma de educação implique na superação da contradição educadoreducandos,
de tal maneira que se façam ambos, simultaneamente, educadores e educandos.
Na concepção “bancária” que estamos criticando, para a qual a educação é o ato de depositar, de
transferir, de transmitir valores e conhecimentos, não se verifica nem pode verificar-se esta superação.
Pelo contrário, refletindo a sociedade opressora, sendo dimensão da “cultura do silêncio”, a “educação”
“bancária” mantém e estimula a contradição.
Dai, então, que nela:
a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados;
b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem;
c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados;
d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, os que a escutam docilmente;
e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados;
f) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição;
g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão de que atuam, na atuação do educador;
h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos, jamais ouvidos nesta escolha, se
acomodam a ele;
i) o educador identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à
liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele;
j) o educador, finalmente, é o sujeito do processo; os educandos, me ros objetos.
Se o educador é o que sabe, se os educandos são os que nada sabem, cabe àquele dar, entregar, levar,
transmitir o seu saber aos segundos. Saber que deixa de ser de “experiência feito” para ser de experiência
narrada ou transmitida.
Não é de estranhar, pois, que nesta visão “bancária” da educação, os homens sejam vistos como seres da
adaptação, do ajustamento. Quanto mais se exercitem os educandos no arquivamento dos depósitos que
lhes são feitos, tanto menos desenvolverão em si a consciência critica de que resultaria a sua inserção no
mundo, como transformadores dele. Como sujeitos.
Quanto mais se lhes imponha passividade, tanto mais ingenuamente, em lugar de transformar, tendem a
adaptar-se ao mundo, à realidade parcializada nos depósitos re cebidos.
Na medida em que esta visão “bancária” anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando
sua ingenuidade e não sua criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental
não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. O seu “humanitarismo”, e não humanismo, está
em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção de sua falsa
generosidade a que nos referimos no capítulo anterior. Por isto mesmo é que reagem, até instintivamente,
contra qualquer tentativa de uma educação estimulante do pensar autêntico, que não se deixa emaranhar
pelas voes parciais da realidade, buscando sempre os nexos que prendem um ponto a outro, ou um
problema a outra.
Na verdade, o que pretendem os opre ssores “é transformar a mentalidade dos oprimidos e não a situação
que os oprime”
Poderá dizer-se que casos como estes já não sucedem nas escolas brasileiras. Se realmente estes não2, e isto para que, melhor adaptando-os a esta situação, melhor os domine. 2
1963, p. 34.
Para isto se servem da concepção e da prática “bancárias” da educação, a que juntam toda uma ação
social de caráter paternalista, em que os oprimidos recebem o nome simpático de “assistidos”. São casos
individuais, meros "marginalizados”, que discrepam da fisionomia geral da sociedade. “Esta é boa,
organizada e justa. Os oprimidos, como casos individuais, sãos patologia da sociedade sã, que precisa, por
isto mesmo, ajustá-los a ela, mudando-lhes a mentalidade de homens ineptos e preguiçosos”.
Como marginalizados, “seres fora de” ou “à margem de”, a solução para eles estaria em que fossem
"integrados”, “incorporados” à sociedade sadia de onde um dia “partiram”, renunciando, como trânsfugas,
a uma vida feliz...
Sua solução estaria em deixarem a condição de ser “seres fora de” e assumirem a de “seres dentro de”.
Na verdade, porém, os chamados marginalizados, que são os oprimidos, jamais estiveram
Simone de Beauvoir, El pensamiento Político de la Derecha. Buenos Aires, Ediciones Siglo Veinte/S.R.L.,fora de. Sempre estiveram
pois, não está em “integrar-se", em “incorporar-se” a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la
para que possam fazer-se “seres para si”.
Este não pode ser, obviamente, o objetivo dos opressores. Dai que a “educação bancária”, que a eles
serve, jamais possa orientar-se no sentido da conscientização dos educandos.
Na educação de adultos, por exemplo, não interessa a esta visão “bancária” propor aos educandos o
desvelamento do mundo, mas, pelo contrário, perguntar-lhes se “Ada deu o dedo ao urubu”, para depois
dizer-lhes enfaticamente, que não, que “Ada deu o dedo à arara”.
A questão está em que, pensar autenticamente, é perigoso. O estranho humanismo desta concepção
“bancária” se reduz à tentativa de fazer dos homens o seu contrário – o autômato, que é a negação de
sua ontológica vocação de Ser Mais.
O que não percebem os que executam a educação “bancária”, deliberadamente ou não (porque há um
sem-número de educadores de boa vontade, que apenas não se sabem a serviço da desumanização ao
praticarem o "bancarismo”) é que nos próprios “depósitos”, se encontram as contradições, apenas
revestidas por uma exterioridade que as oculta. E que, cedo ou tarde, os próprios “depósitos” podem
provocar um confronto com a realidade em devenir e despertar os educandos, até então passivos, contra
a sua “domesticação”.
A sua “domesticação” e a da realidade, da qual se lhes fala como algo estático, pode despertá-los como
contradição de si mesmos e da realidade. De si mesmos, ao se descobrirem, por experiência existencial,
em um modo de ser inconciliável com a sua vocação de humanizar-se. Da realidade, ao perceberem-na
em suas relações com ela, como devenir constante.
A CONTRADIÇÃO PROBLEMATIZADORA
E LIBERTADORA DA EDUCAÇÃO. SEUS
PRESSUPOSTOS
É que, se os homens são estes seres da busca e se sua vocação ontológica é humanizar-se, podem, cedo
ou tarde, perceber a contradição em que a “educação bancária” pretende mantê-los e engajar-se na luta
por sua libertação.
Um educador humanista, revolucionário, não há de esperar esta possibilidade
desde logo, com a dos educandos, deve orientar-se no sentido da humanização de ambos. Do pensar
autêntico e não no sentido da doação, da entrega do saber. Sua ação deve estar infundida da profunda
crença nos homens. Crença no seu poder criador.
dentro de. Dentro da estrutura que os transforma em “seres para outro”. Sua solução,3. Sua ação, identificando-se, 3
Poder, dai, a dificuldade que tem um educador dialógico de atuar coerentemente numa estrutura que
nega o diálogo. Algo fundamental, porém, pode se¿ feito: dialogar sobre a negação do próprio diálogo.
Isto tudo exige dele que seja um companheiro dos educandos, em suas relações com estes.
A educação “bancária”, em cuja prática se dá a inconciliação educador-educandos, rechaça este
companheirismo. E é lógico que seja assim. No momento em que o educador “bancário” vivesse a
superação da contradição já não seria “bancário”. Já não faria depósitos. Já não tentaria domesticar. Já
não prescreveria. Saber com os educandos, enquanto estes soubessem com ele, seria sua tarefa. Já não
estaria a serviço da desumanização. A serviço da opressão, mas a serviço da libertação.
A CONCEPÇÃO “BANCÁRIA” E A
CONTRADIÇÃO EDUCADOR-EDUCANDO
Esta concepção “bancária” implica, além dos interesses já referidos, em outros aspectos que envolvem
sua falsa visão dos homens. Aspectos ora explicitado, ora não, em sua prática.
Sugere uma dicotomia inexistente homens-mundo. Homens simplesmente no mundo e não com o mundo
e com os outros. Homens espectadores e não recriadores do mundo. Concebe a sua consciência como algo
especializado neles e não aos homens como “corpos conscientes”. A consciência como se fosse alguma
seção “dentro” dos homens, mecanicistamente compartimentada, passivamente aberta ao mundo que a
irá “enchendo” de realidade. Uma consciência continente a receber permanentemente os depósitos que o
mundo lhe faz, e que se vão transformando em seus conteúdos. Como se os homem fossem uma presa do
mundo e este um eterno caça,dor daqueles, que tivesse por distração “enchê-los” de pedaços seus.
Para esta equivocada concepção dos homens, no momento mesmo em que escrevo, estariam “dentro” de
mim, como pedaços do mundo que me circunda, a mesa em que escrevo, os livros, a xícara de café, os
objetos todos que aqui estão, exatamente como dentro deste quarto estou agora.
Desta forma, não distingue presentificação à consciência de entrada, na consciência. A mesa em que
escrevo, os livros, a xícara de café, os objetos que me cercam estão simplesmente presentes à minha
consciência e não
Mas, se para a concepção “bancária”, a consciência é, em sua relação com o mundo, esta “peça”
passivamente escancarada a ele, a espera de que entre nela, coerentemente concluirá que ao educador
não cabe nenhum outro papel que não o de disciplinar a entrada do mundo nos educandos. Seu trabalho
será, também, o de imitar o mundo. O de ordenar o que já se faz espontaneamente. O de “encher” os
educandos de conteúdos. É o de fazer depósitos de “comunicados” – falso saber – que ele considera como
verdadeiro saber
E porque os homens, nesta visão, ao receberem o mundo que neles entra, já são seres passivos, cabe à
educação apassivá-los mais ainda e adaptá-los ao mundo. Quanto mais adaptados, para a concepção
“bancária”, tanto mais "educados”, porque adequados ao mundo.
Esta é uma concepção que, implicando numa prática, somente pode interessar aos opressores que estarão
tão mais em paz, quanto mais adequados estejam os homens ao mundo. E tão mais preocupados, quanto
mais questionando o mundo estejam os homens.
Quanto mais se adaptam as grandes maiorias às finalidades que lhes sejam prescritas pelas minorias
dominadoras, de tal modo que careçam aquelas do direito de ter finalidades próprias, mais poderão estas
minorias prescrever.
A concepção e a prática da educação que vimos criticando se instauram como eficientes instrumentos para
este fim. Dai que um dos seus objetivos fundamentais, mesmo que dele não estejam advertidos muitos do
que a realizam, seja dificultar, em tudo, o pensar autêntico. Nas aulas verbalistas, nos métodos de
avaliação dos “conhecimentos”, no chamado “controle de leitura”, na distância entre o educador e os
Não fazemos esta afirmação ingenuamente. Já temos afirmado que a educação reflete a estrutura dodentro dela. Tenho a consciência deles mas não os tenho dentro de mim.4. 4
chamaria de concepção "digestiva" ou “alimentícia” do saber. Este é como se fosse o “alimento" que o
educador vai introduzindo nos educandos, numa espécie de tratamento de engorda ..
educandos, nos critérios de promoção, na indicação bibliográfica
“digestiva” e a proibição ao pensar verdadeiro.
Entre permanecer porque desaparece, numa espécie de morrer para viver, e desaparecer pela e na
imposição de sua presença, o educador “bancário” escolhe a segunda hipótese. Não pode entender que
permanecer é buscar
justapor-se aos educandos, des-simpatizar. Não há, permanência na hipertrofia.
Mas, em nada disto pode o educador “bancário" crer. Conviver, simpatizar implicam em comunicar-se, o
que a concepção que informa sua prática rechaça e teme.
Não pode perceber que somente na comunicação tem sentido a vida humana. Que o pensar do educador
somente ganha autenticidade na autenticidade do pensar dos educandos, mediatizados ambos pela
realidade, portanto, na intercomunicação. Por isto, o pensar daquele não pode ser um pensar para estes
nem a estes imposto. Dai que não deva ser um pensar no isolamento, na torre de marfim, mas na e pela
comunicação, em torno, repitamos de uma realidade.
E, se o pensar só assim tem sentido, se tem sua fonte geradora na ação sobre o mundo, o qual mediatiza
as consciências em comunicação, não será possível a superposição dos homens aos homens.
Esta superposição, que é uma das notas fundamentais da concepção “educativa” que estamos criticando,
mais uma vez a situa como prática da dominação.
Dela, que parte de uma compreensão falsa dos homens, – reduzidos a meras coisas – não se pode
esperar que provoque o desenvolvimento do que Fromm chama de biofilia, mas o desenvolvimento de seu
contrário, a necrofilia.
“Mientras la vida (diz Fromm) se caracteriza por el crecimiento de una manera estructurada, funcional, el
indivíduo necrófilo ama todo lo que no crece, todo lo que es mecánico. La persona necrófila es movida por
un deseo de convertir lo orgánico en inorgánico, de mirar la vida mecanicamente, como si todas las
personas vivientes fuezen cosas. Todos los procesos, sentimientos y pensamientos de vida se transforman
en cosas. La memoria y no la experiencia; tener y no ser es lo que cuenta. El invididuo necrófilo puede
realizar-se con un objeto – una flor o una persona – únicamente si lo posee; en consecuencia una
amenaza a su posesión es una amenaza a él mismo, si pierde la posesión, pierde el contacto con el
mundo”. E, mais adiante: “Ama el control y en el acto de controlar, mata la vida”
A opressão, que é um controle esmagador, é necrófila. Nutre-se do amor à morte e não do amor à vida.
A concepção “bancária”, que a ela serve, também o é. No momento mesmo em que se funda num
conceito mecânico, estático, especializado da consciência e em que transforma por isto mesmo, os
educandos em recipientes, em quase coisas, não pode esconder sua marca necrófila. Não se deixa mover
pelo ânimo de libertar tarefa comum de refazerem o mundo e de torná-la mais e mais humano.
Seu ânimo é justamente o contrário – o de controlar o pensar e a ação, levando os homens ao
ajustamento ao mundo. É inibir o poder de criar, de atuar. Mas, ao fazer isto, ao obstaculizar a atuação
dos homens, como sujeitos de sua ação, como seres de opção, frustra-os.
Quando, porém, por um motivo qualquer, os homens se sentem proibidos de atuar, quando se descobrem
incapazes de usar suas faculdades, sofrem.
Este sofrimento provém “do fato de se haver perturbado o equilíbrio humano” (Fromm). Mas, o não poder
atuar, que provoca o sofrimento, provoca também aos homens o sentimento de recusa à sua impotência.
Tentam, então, “restabelecer a sua capacidade de atuar” (Fromm).
A concepção do saber, da concepção "bancária" é, no fundo, o que Sartre (El Hombre y las Cosas)5, em tudo, há, sempre a conotaçãoser, com os outros. É con-viver, simpatizar. Nunca sobrepor-se, nem sequer6. 5
a página 15, e fazem isto para ajudar os alunos...
Há professores que, ao indicar uma relação bibliográfica, determinam a leitura de um livro da página 10 6
“Pode, porém, fazê-lo? E como?”, pergunta Fromm. “Um modo, responde, é submeter-se a uma pessoa ou
a um grupo que tenha poder e identificar-se com eles. Por esta participação simbólica na vida de outra
pessoa, o homem tem a ilusão de que atua, quando, em realidade, não faz mais que submeter-se aos que
atuam e converter-se em parte deles”
Talvez possamos encontrar nos oprimidos este tipo de reação nas manifestações populistas. Sua
identificação com lideres carismáticos, através de quem se possam sentir atuantes e, portanto, no uso de
sua potência, bem como a sua rebeldia, quando de sua emersão ao processo histórico, estão envolvidas
por este ímpeto de busca de atuação de sua potência.
Para as elites dominadoras, esta rebeldia, que é ameaça a elas, tem o seu remédio em mais dominação –
na repressão feita em nome, inclusive, da liberdade e no estabelecimento da ordem e da paz social. Paz
social que, no fundo, não é outra senão a paz privada dos dominadores.
Por isto mesmo b que podem considerar – logicamente, do seu ponto de vista – um absurdo “the violence
of a strike by workers and (can) call upon the state in the same breath to use violence in putting down the
strike”
A educação como prática da dominação, que vem sendo objeto desta critica, mantendo a ingenuidade dos
educandos, o que pretende, em seu marco ideológico, (nem sempre percebido por muitos dos que a
realizam) é indoutriná-los no sentido de sua acomodação ao mundo da opressão.
Ao denunciá-la, não esperamos que as elites dominadoras renunciem à sua prática. Seria demasiado
ingênuo esperá -lo.
Nosso objetivo é chamar a atenção dos verdadeiros humanistas para o fato de que eles não podem, na
busca da libertação, servir-se da concepção “bancária”, sob pena de se contradizerem em sua busca.
Assim como também não pode esta concepção tornar-se legado da sociedade opressora à sociedade
revolucionária.
A sociedade revolucionária que mantenha a prática da educação "bancária” ou se equivocou nesta
manutenção ou se deixou "morder” pela desconfiança e pela descrença nos homens. Em qualquer das
hipóteses, estará ameaçada pelo espectro da reação.
Disto, infelizmente, parece que nem sempre estão convencidos os que se inquietam pela causa da
libertação. É que, envolvidos pelo clima gerador da concepção “bancária" e sofrendo sua influência, não
chegam a perceber o seu significado ou a sua força desumanizadora. Paradoxalmente, então, usam o
mesmo instrumento alienador, num esforço que pretendem libertador. E há até os que, usando o mesmo
instrumento alienador, chamam aos que divergem desta prática de ingênuos ou sonhadores, quando - não
de reacionários.
O que nos parece indiscutível é que, se pretendemos a libertação dos homens, não. podemos começar por
aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma
coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica na
ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá -lo.
Exatamente porque não podemos aceitar a concepção mecânica da consciência, que a vê como algo vazio
a ser enchido, um dos fundamentos implícitos na visão “bancária” criticada, é que não podemos aceitar,
também, que a ação libertadora se sirva das mesmas armas da dominação, isto é, da propaganda, dos
Erich Fromm, op. Cit., pp.28-9.7.8. slogans,
A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se
numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode
basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como
“corpos conscientes” e na consciência como consciência
depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo.
dos “depósitos”.intencionada ao mundo. Não pode ser a do 7
Erich Fromm, op. cit., pp. 28-9 8
Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora, respondendo à essência do ser da consciência,
que é sua
da consciência que é sempre ser
quando se volta sobre si mesma, no que Jaspers
consciência de consciência.
Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de depositar, ou de narrar,
ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes, à maneira
da educação “bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto
cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos
cognoscentes, educador, de um lado, educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde
logo, a exigência da superação da contradição educador-educandos. Sem esta, não é possível a relação
dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto
cognoscível.
O antagonismo entre as duas concepções, uma, a “bancária”, que serve à dominação; outra, a
problematizadora, que serve à libertação, toma corpo exatamente aí. Enquanto a primeira,
necessariamente, mantém a contradição educador-educandos, a segunda realiza a superação.
Para manter a contradição, a concepção “bancária” nega a dialogicidade como essência da educação e se
faz antidialógica; para realizar a superação, a educação problematizadora – situação gnosiológica – afirma
a dialogicidade e se faz dialógica.
NINGUÉM EDUCA NINGUÉM, NINGUÉM
EDUCA A SI MESMO, OS HOMENS SE EDUCAM
ENTRE SI, MEDIATIZADOS PELO MUNDO
Em verdade, não seria possível à educação problematizadora, que rompe com os esquemas verticais
característicos da educação bancária, realizar-se como prática da liberdade, sem superar a contradição
entre o educador e os educandos. Como também não lhe seria possível fazê-lo fora do diálogo.
É através deste que se opera a superação de que resulta um termo novo: não mais educador do educando
do educador, mas educador-educando com educando-educador.
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em
diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do
processo em que crescem juntos e em que os “argumentos de autoridade” já, não valem. Em que, para
ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar
Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam
em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática
“bancária”, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos.
Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, dois momentos. O primeiro, em que
ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório, exerce um ato cognoscente frente ao objeto cognoscível,
enquanto se prepara para suas aulas. O segundo, em que, frente aos educandos, narra ou disserta a
respeito do objeto sobre o qual exerceu o seu ato cognoscente.
O papel que cabe a estes, como salientamos nas páginas precedentes, é apenas o de arquivarem a
narração ou os depósitos que lhes faz o educador. Desta forma, em nome da “preservação da cultura e do
conhecimento”, não há conhecimento, nem cultura verdadeiros.
Reinhold Niebuhr, Moral Man and Immoral Society. Nova Iorque, Charles Scribner’s Sons, 1960, p. 130.intencionalidade, nega os comunicados e existência à comunicação. Identifica-se com o próprioconsciência de, não apenas quando se intenciona a objetos mas também9 chama de “cisão”. Cisão em que a consciência ésendo com as liberdades e não contra elas. 9
at myself; I am both one and twofold. I do not exist as thing exists, but in an inner split, as my own
object, and thus in motion and inner unrest”. Karl Jaspers,
Press. 1969, p. 50.
Não pode haver conhecimento pois os educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o
conteúdo narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que
deveria ser posto como incidência de seu ato cognoscente é posse do educador e não mediatizador da
reflexão critica de ambos.
A prática problematizadora, pelo contrário, não distingue estes momentos no quefazer do educadoreducando.
Não é sujeito cognoscente em um, e sujeito
É sempre um sujeito cognoscente, quer quando se prepara, quer quando se encontra dialogicamente com
os educandos.
O objeto cognoscível, de que o educador bancário se apropria, deixa de ser, para ele, uma propriedade
sua, para ser a incidência da reflexão sua e dos educandos.
Deste modo, o educador problematizador re-faz, constantemente, seu ato cognoscente, na
cognoscibilidade dos educandos. Estes, em lugar de serem recipientes dóceis de depósitos, são agora
investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também.
Na medida em que o educador apresenta aos educandos, como objeto de sua “ad-miração”, o conteúdo,
qualquer que ele seja, do estudo a ser feito, “re-admira” a “ad-miração” que antes fez, na “ad-miração”
que fazem os educandos.
Pelo fato mesmo de esta prática educativa constituir-se em uma situação gnosiológica, o papel do
educador problematizador é proporcionar, com os educandos, as condições em que se dê a superação do
conhecimento no nível da “doxa” pelo verdadeiro conhecimento, o que se dá, no nível do “logos”.
Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica numa espécie de anestesia, inibindo
o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica
num constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a
contrário, busca a
Quanto mais se problematizam os educandos, como seres no mundo e com o mundo, tanto mais se
sentirão desafiados. Tão mais desafiados, quanto mais obrigados a responder ao desafio. Desafiados,
compreendem o desafio na própria ação de captá-lo. Mas, precisamente porque captam o desafio como
um problema em suas conexões com outros, num plano de totalidade e não como algo petrificado, a
compreensão resultante tende a tornar-se crescentemente crítica, por isto, cada vez mais desalienada.
Através dela, que provoca novas compreensões de novos desafios, que vão surgindo no processo da
resposta, se vão reconhecendo, mais e mais, como compromisso. Assim é que se dá, o reconhecimento
que engaja.
A educação como prática da liberdade, ao contrário naquela que é prática da dominação, implica na
negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo, assim também na negação do mundo
como uma realidade ausente dos homens.
A reflexão que propõe, por ser autêntica, não é sobre este homem abstração nem sobre este mundo sem
homem, mas sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações em que consciência e mundo se
dão simultaneamente. Não há uma consciência antes e um mundo depois e vice-versa.
“A consciência e o mundo, diz Sartre, se dão ao mesmo tempo: exterior por essência à consciência, o
mundo é, por essência, relativo a ela”
Por isto é que, certa vez, num dos “círculos de cultura”. do trabalho que se realiza no Chile, um camponês
a quem a concepção bancária classificaria de “ignorante absoluto”, declarou, enquanto discutia, através de
uma “codificação”, o conceito antropológico de cultura: “Descubro agora que não há mundo sem homem”.
“The reflexion of consciousness upon itself is as self-evident and marvelous as is its intentionality. I amPhilosophy, vol. I. The University of Chicagonarrador do conteúdo conhecido em outro.imersão; a segunda, peloemersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade.10. 10
E quando o educador lhe disse: – “Admitamos, absurdamente, que todos os homens do mundo
morressem, mas ficasse a terra, ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os rios, o mar, as estrelas,
não seria tudo isto mundo?”
“Não! respondeu enfático, faltaria quem dissesse:
que faltaria a consciência do mundo que, necessariamente, imp lica no mundo da consciência.
Na verdade, não há
constitui na constituição do
mundo da consciência, um percebido objetivo seu, ao qual se
anteriormente citada: “consciência e mundo se dão ao mesmo tempo”.
Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o
campo de sua percepção, vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que
presentes ao que Husserl chama de “visões de fundo”
Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e voltando sua reflexão sobre eles.
O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e,
às vezes, nem sequer era percebido, se “destaca” e assume o caráter de problema, portanto, de desafio.
A partir deste momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração” dos homens, e, como tal, de
sua ação e de seu conhecimento.
Enquanto, na concepção “bancária” – permita-se-nos a repetição insistente – o educador vai “enchendo”
os educandos de falso saber, que são os conteúdos impostos, na prática problematizadora, vão os
educandes desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em
suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em
transformação, em processo.
A tendência, então, do educador-educando como dos educandos-educadores é estabelecerem uma forma
autêntica de pensar e atuar. Pensar-se a si mesmos e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este
pensar da ação.
A educação problematizadora se faz, assim, um esforço permanente através do qual os homens vão
percebendo, criticamente, como
Se, de fato, não é possível entendê-los fora de suas relações dialéticas com o mundo, se estas existem
independentemente de se eles as percebem ou não, e independentemente de como as percebem, é
verdade também que a sua forma de atuar, sendo esta ou aquela, é função, em grande parte, de como se
percebam no mundo.
Mais uma vez se antagonizam as duas concepções e as duas práticas que estamos analisando. A
“bancária”, por óbvios motivos, insiste em manter ocultas certas razões que explicam a maneira como
estão
com a libertação, se empenha na desmitificação. Por isto, a primeira nega o diálogo, enquanto a segunda
tem nele a indispensával relação ao ato cognoscente, desvelador da realidade.
A primeira “assistencializa”; a segunda, criticiza. A primeira, na medida em que, servindo à dominação,
inibe a criatividade e, ainda que não podendo matar a
desprender-se ao mundo, a “domestica”, nega os homens na sua vocação ontológica e histórica de
humanizar-se. A segunda, na medida em que, servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a
reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade, responde à sua vocação, como seres que não
podem autenticar-se fora da busca e ria transformação criadora.
Jean Paul Sartre, El hombre y las Cosas, Buenos Aires, Losada S.A., 1965, pp. 25-6.Isto é mundo”. O camponês quis dizer, exatamente,eu que se constitua sem um não-eu. Por sua vez, o não-eu constituinte do eu seeu constituído. Desta forma, o mundo constituinte da consciência se tornaintenciona. Daí, a afirmação de Sartre,11, não se destacavam, “não estavam postos por si”.estão sendo no mundo com que e em que se acham.sendo os homens no mundo e, para isto, mistifica a realidade. A problematizadora, comprometidaintencionalidade da consciência como um 11
Books, 1969, pp. 103-6.
O HOMEM COMO UM SER INCONCLUSO,
CONSCIENTE DE SUA INCONCLUSÃO, E SEU
PERMANENTE MOVIMENTO DE BUSCA
DO SER MAIS
A concepção e a prática “bancárias”, imobilistas, “fixistas”, terminam por desconhecer os homens como
seres históricos, enquanto a problematizadora parte exatamente do caráter histórico e da historicidade
dos homens. Por isto mesmo é que os reconhece como seres que
inconclusos,
diferentemente dos outros animais, que são apenas inacabados, mas não são históricos, os homens se
sabem inacabados. Têm a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da educação mesma,
como manifestação exclusivamente humana. Isto é, na inconclusão dos homens e na consciência que dela
têm. Daí que seja a educação um que-fazer permanente. Permanente, na razão da inconclusão dos
homens e do devenir da realidade.
Desta maneira, a educação se re-faz constantemente na práxis. Para
Edmund Husserl, I D E A S – General Introduction to Pure Phenomenology, 3ª ed., Londres, Collierestão sendo, como seres inacabados,em e com uma realidade, que sendo histórica também, é igualmente inacabada. Na verdade,ser tem que estar sendo. Sua “duração” – no sentido bergsoniano do termo – como processo, está no jogo dos contrários
permanência-mudança.
Enquanto a concepção “bancária” dá ênfase à permanência, a concepção problematizadora reforça a
mudança.
Deste modo, a prática “bancária", implicando no imobilismo a que fizemos referência, se faz reacionária,
enquanto a concepção problematizadora que, não aceitando um presente “bem comportado”, não aceita
igualmente um futuro pré -dado, enraizando-se no presente dinâmico, se faz revolucionária.
A educação problematizadora, que não é fixismo reacionária, é futuridade revolucionária. Daí que seja
profética e, como tal, esperançosa
à sua historicidade. Daí que se identifique com eles como seres mais além de si mesmos – como
“projetos” – como seres que caminham para frente, que olham para frente; como seres a quem o
imobilismo ameaça de morte; para quem o olhar para traz não deve ser uma forma nostálgica de querer
voltar, mas um modo de me lhor conhecer o que está sendo, para melhor construir o futuro. Dai que se
identifique com o movimento permanente em que se acham inscritos os homens, como seres que se
sabem inconclusos; movimento que é histórico e que tem o seu ponto de partida, o seu sujeito, o seu
objetivo.
O ponto de partida deste movimento está nos homens mesmos. Mas, como não há homens sem mundo,
sem realidade, o movimento parte das relações homens-mundo. Dai que este ponto de partida esteja
sempre nos homens no seu
imersos, ora emersos, ora insertados.
Somente a partir desta situação, que lhes deter-mina a própria percepção que dela estão tendo, é que
podem mover-se.
E, para fazê-lo, autenticamente, é necessário, inclusive, que a situação em que estão não lhes apareça
como algo fatal e intransponível, mas como uma situação desafiadora, que apenas os limita.
Enquanto a prática “bancária”, por tudo o que dela dissemos, enfatiza, direta ou indiretamente, a
percepção fatalista que estejam tendo os homens de sua situação, a prática problematizadora, ao
contrário, propõe aos homens sua situação como problema. Propõe a eles sua situação como incidência de
seu ato cognoscente, através do qual será possível a superação da percepção mágica ou ingênua que dela
12. Daí que corresponda à condição dos homens como seres históricos eaqui e no seu agora que constituem a situação em que se encontram ora 12
da educação (ou ação cultural) problematizadora. Profetismo e esperança que resultam do caráter utópico
de tal forma de ação, tomando-se a utopia como a unidade, inquebrantável entre a denúncia e o anúncio.
Denúncia de uma realidade desumanizante e anúncio de uma realidade em que os homens possam ser
mais. Anúncio e denúncia não são, porém, palavras vazias, mas compromisso histórico,
tenham. A percepção ingênua ou mágica da realidade da qual resultava a postura fatalista cede seu lugar
a uma percepção que é capaz de perceber-se. E porque é capaz de perceber-se enquanto percebe a
realidade que lhe parecia em si inexorável, é capaz de objetivá-la.
Desta forma, aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se “apropriam” dela como
realidade histórica, por isto mesmo, capaz de ser trans-formada por eles.
O fatalismo cede, então, seu lugar ao ímpeto de transformação e de busca, de que os homens se sentem
sujeitos.
Seria, realmente, uma violência, como de fato é, que os homens, seres históricos e necessariamente
inseridos num movimento de busca, com outros homens, não fossem o sujeito de seu próprio movimento.
Por isto mesmo é que, qualquer que seja a situação em que alguns homens proíbam aos outros que sejam
sujeitos de sua busca, se instaura como situação violenta. Não importa os meios usados para esta
proibição. Fazê-los objetos é aliená-los de suas decisões, que são transferidas a outro ou a outros.
Este movimento de busca, porém, só se justifica na medida em que se dirige ao
dos homens. E esta, como afirmamos no primeiro capítulo, é sua vocação histórica, contraditada pela
desumanização que, não sendo vocação, é viabilidade, constatável na história. E, enquanto viabilidade,
deve aparecer aos homens como desafio e não como freio ao sto de buscar.
Esta busca do
na solidariedade dos existires, dai que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e
oprimidos.
Ninguém pode ser, autenticamente, proibido que os outros sejam. Esta é uma exigência radical. O ser
mais que se busque no individualismo conduz ao
desumanização. Não que não seja fundamental – repitamos – ter para ser. Precisamente porque é, não
pode o
primeiros, com o qual esmagam os segundos, na sua escassez de poder.
Para a prática "bancária”, o fundamental é, no máximo, amenizar esta situação, mantendo, porém, as
consciências imersas nela. Para a educação problematizadora, enquanto um quefazer humanista e
libertador, o importante está, em que os homens submetidos à dominação, lutem por sua emancipação.
Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos do seu processo,
superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador “bancário”, supera também
a falsa consciência do mundo.
O mundo, agora, já não é algo sare que se fala com falsas palavras, mas o mediatizador dos sujeitos da
educação, a incidência da ação transformadora dos homens, de que resulte a sua humanização.
Esta é a razão por que a concepção problematizadora da educação não pode servir ao opressor.
Nenhuma “ordem” opressora suportaria que os oprimidos todos passassem a dizer: “Por quê?”
Se esta educação somente pode ser realizada, em termos sistemáticos, pela sociedade que fez a
revolução, isto não significa que a liderança revolucionária espere a chegada ao poder para aplicá-la.
No processo revolucionário, a liderança não pode ser “bancária”, para depois deixa r de sê-lo
Em Ação Cultural para a libertação, discutimos mais amplamente este sentido profético e esperançososer mais, à humanizaçãoser mais, porém, não pode realizar-se ao isolamento, no individualismo, mas na comunhão,ter mais egoísta, forma de ser menos. Deter de alguns converter-se na obstaculização ao ter dos demais, robustecendo o poder dos13. 13
da ação.
No Capítulo IV analisamos detidamente este aspecto, ao discutirmos as teorias antidialógica e dialógica 3. A dialogicidade – essência da educação
como prática da liberdade
Ao iniciar este capítulo sobre a dialogicidade da educação, com o qual estaremos continuando as análises
feitas nos anteriores, a propósito da educação problematizadora, parece-nos indispensável tentar algumas
considerações em torno da essência do diálogo. Considerações com as quais aprofundemos afirmações
que fizemos a respeito do mesmo tema em
Educação como Prática da Liberdade1. Quando tentamos um adentramento no diálogo, como fenômeno humano, se nos revela algo que já
poderemos dizer ser ele mesmo: a
algo mais que um meio para que ele se faça, se nos impõe buscar, também, seus elementos constitutivos.
Esta busca nos leva a surpreender, nela, duas dimensões; ação e reflexão, de tal forma solidárias, em
uma interação tão radical que, sacrificada, ainda que em parte, uma delas, se ressente, imediatamente, a
outra. Não há palavra verdadeira que não seja práxis.
transformar o mundo.
palavra. Mas, ao encontrarmos a palavra, na análise do diálogo, como2 Daí, que dizer a palavra verdadeira seja3 A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia
que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão
de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo,
blablablá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia
do mundo, pois que não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação.
Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da reflexão, a palavra se converte
em
impossibilita o diálogo.
Qualquer destas dicotomias, ao gerar-se em formas inautênticas de existir, gera formas inautênticas de
pensar, que reforçam a matriz em que se constituem.
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas
palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir,
humanamente, é
problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo
ativismo. Este, que é ação pela ação, ao minimizar a reflexão, nega tamb ém a práxis verdadeira epronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se voltapronunciar. Não e no silêncio
Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra
não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode
dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la
palavra aos demais.
4 que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a 1
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1967. 2
Palavra --------------------------- = Práxis
(reflexão)
(da ação) = palavreria, vebalismo, blablablá
Sacrifício ----------------------------------------------------------
(de reflexão) = ativismo.
(ação) 3
Algumas destas reflexões nos foram motivadas em nossos diálogos com o prof. Ernani Maria Fiori. 4
só aparente de sair do mundo, dele “afastando-se" para “admirá-lo” em sua globalidade, com ele, por isto,
continuam. Daí que estas formas de recolhimento só sejam verdadeiras quando os homens nela se
encontrem "molhados” de realidade e não quando, significando um desprezo ao mundo, sejam maneiras
de fugir dele, numa espécie de “esquizofrenia histórica”.
O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para
portanto, na relação eu-tu.
Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a
a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste
direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a
palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue.
Se é dizendo a palavra com que,
como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens.
Por isto, o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidariza o refletir e o
agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um
ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca da, idéias a serem
consumidas pelos permutantes.
Não é também discussão guerreira, polêmica, entre sujeitos que não aspiram a comprometer-se com a
Não nos referimos, obviamente, ao silêncio das meditações profundas em que os homens, numa formapronunciá-lo, não se esgotando,pronúncia do mundo e os que não“pronunciando” o mundo, os homens o transformam, o diálogo se impõe pronúncia
Porque é encontro de homens que
outros. É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito
para a conquista do outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não a
de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens.
EDUCAÇÃO DIALÓGICA E DIÁLOGO
Não há diálogo, porém, se não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a
do mundo, nem com buscar a verdade, mas com impor a sua.pronunciam o mundo, não deve ser doação do pronunciar de uns apronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há, amor que a infunda
Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo. Daí que seja essencialmente tarefa de sujeitos
e que não possa verificar-se na relação de dominação. Nesta, o que há é patologia de amor: sadismo em
quem domina; masoquismo nos dominados. Amor, não, Porque é um ato de coragem, nunca de medo, o
amor é compromisso com os homens. Onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor está em
comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação. Mas, este compromisso, porque é amoroso, é
dialógico.
Como ato de valentia, não pode ser piegas; como ato de liberdade, não pode ser pretexto para a
manipulação, senão gerador de outros atos de liberdade. A não ser assim, não é amor.
Somente com a supressão da situação opressora é possível restaurar o amor que nela estava proibido.
Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo.
5. 5
revolução, porque um ato criador e libertador, um ato de amor.
Para nós a revolução, que não se faz sem teoria da revolução, portanto sem ciência, não tem nesta uma
inconciliação com o amor. Pelo contrário, a revolução, que é feita pelos homens, o é em nome de sua
humanização.
Que leva os revolucionários a aderir aos oprimidos, senão a condição desumanizada em que se acham
estes?
Não é devido à deterioração a que se submete a palavra amor no mundo capitalista que a revolução vá
deixar de ser amorosa, nem os revolucionários façam silêncio de ser caráter biófilo. Guevara, ainda que
tivesse salientado o “risco de parecer ridículo”, não temeu afirmá -la. “Dejeme decirle (declarou dirigindose
a Carlos Quijano) a riesgo de parecer ridiculo que el verdadero revolucionario es animado por fuertes
sentimientos de amor. Es imposible pensar un revolucionário autêntico, sin esta cualidad”. Ernesto
Guevara:
Não há, por outro lado, diálogo, se não há humildade. A
recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante.
O diálogo, como encontro dos homens para a tarefa comum de saber agir, se rompe, se seus pólos (ou
um deles) perdem a humildade.
Como posso dialogar, se alieno a ignorância, isto é, se a vejo sempre no outro, nunca em mim?
Como posso dialogar, se me admito corno um homem diferente, virtuoso por herança, diante dos outros,
meros “isto”, em quem não reconheço
Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os verdadeiros revolucionários reconheçam naObra Revolucionária, México, Ediciones Era-S.A., 1967, pp. 637-38.pronúncia do mundo, com que os homens ooutros eu? Como posso dialogar, se me sinto participante de um “gueto” de homens puros, donos da verdade e do
saber, para quem todos os que estão fora são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”?
Como posso dialogar, se parto de que a
das massas na história é sinal de sua deterioração que devo evitar?
Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros, que jamais reconheço, e até me sinto
ofendido com ela?
Como posso dialogar se temo a superação e se, só em pensar nela, sofro e definho?
A auto-suficiência é incompatível com o diálogo. Os homens que não têm humildade ou a perdem, não
podem aproximar-se do povo. Não podem ser seus companheiros de
é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito que caminhar,
para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem
sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais.
Não há também, diálogo, se não há uma intensa fé nos homens. Fé no seu poder de fazer e de refazer. De
criar e recriar. Fé na sua vocação de
homens.
A fé nos homens é um dado a priori do diálogo. Por isto, existe antes mesmo de que ele se instale. O
homem analógico tem fé nos homens antes de encontrar-se frente a frente com eles. Esta, contudo, não é
uma ingênua fé. O homem dialógico, que é critico, sabe que, se o poder de fazer, de criar, de transformar,
é um poder dos homens, sabe também que podem eles, em situação concreta, alienados, ter este poder
prejudicado. Esta possibilidade, porém, em lugar de mata no homem dialógico a sua fé nos homens,
aparece a ele, pelo contrário, como um desafio ao qual tem de responder. Está convencido de que este
poder de fazer e transformar, mesmo que negado em situações concretas, tende a renascer. Pode
renascer. Pode constituir-se. São gratuitamente, mas na e pela luta por sua libertação. Com a instalação
do trabalho não mais escravo, mas livre, que dá a alegria de viver.
Sem esta fé nos homens o diálogo é uma farsa. Transformá -se, na melhor das hipóteses, em manipulação
adocicadame nte paternalista.
Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que
a
cheio de fé, o diálogo não provocasse este elimina de confiança entre seus sujeitos. Por isto inexiste esta
confiança na antidialogicidade da concepção “bancária” da educação.
Se a fé nos homens é um dado a
fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na
confiança, é que falharam as condições discutidas anteriormente. Um falso amor, uma falsa humildade,
uma debilitada fé nos homens não podem gerar confiança. A confiança implica no testemunho que um
sujeito dá aos outros de suas reais e concretas intenções. Não pode existir, se a palavra,
descaracterizada, não coincide com os atos. Dizer uma coisa e fazer outra, não levando a palavra a sério,
não pode ser estímulo à confiança.
Falar, por exemplo, em democracia e silenciar o povo é uma farsa. Falar em humanismo e negar os
homens é uma mentira.
Não é, porém, a esperança um cruzar de braços e esperar. Movo-me na esperança enquanto luto e, se
luto com esperança, espero.
Se o diálogo é o encontro dos homens para Ser Mais, não pode fazer-se na desesperança. Se os sujeitos
do diálogo nada esperam do seu quefazer já, não pode haver diálogo. O seu encontro é vazio e estéril. É
burocrático e fastidioso.
Finalmente, não há o diálogo verdadeiro se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar critico.
Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrantável
solidariedade.
Este é um pensar que percebe a realidade como processo, que a capta em constante devenir e não como
algo está,tico. Não se dicotomiza a si mesmo na ação. “Banha-se” permanentemente de temporalidade
cujos riscos não teme.
Opõe-se ao pensar ingênuo, que vê o “tempo histórico como um peso, como uma estratificação das
aquisições e experiências do passado”,
comportado.
Para o pensar ingênuo, o importante é a acomodação a este hoje normalizado. Para o critico, a
transformação permanente da realidade, para a permanente humanização dos homens. Para o pensar
crítico, diria Pierre Furter, “a meta não será mais eliminar os riscos da temporalidade, agarrando-se ao
espaço garantido, mas temporalizar o espaço. O universo não se revela a mim (diz ainda Furter) no
espaço, impondo-me uma presença maciça a que só posso me adaptar, mas com um campo, um domínio,
que vai tomando forma na medida de minha ação”
Para o pensar ingênuo, a meta é agarrar-se a este espaço garantido, ajustando-se a ele e, negando a
temporalidade, negar-se a si mesmo.
Somente o diálogo, que implica num pensar critico, é capaz, também, de gerá -la.
Sem ele, não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação. A que, operando a superação da
contradição educador-educandos, se instaura como situação gnosiológica, em que os sujeitos incidem seu
ato cognoscente sobre o objeto cognoscível que os mediatiza.
O DIÁLOGO COMEÇA NA BUSCA DO
CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
Daí que, para esta concepção como prática da liberdade, a sua dialogicidade comece, não quando o
educador-educando se encontra com os educandos-educadores em uma situação pedagógica, mas antes,
quando aquele se pergunta em torno do que vai dialogar com estes. Esta inquietação em torno do
conteúdo do diálogo é a inquietação em torno do conteúdo programático da educação.
Para o “educador-bancário”, na sua antidialogicidade, a pergunta, obviamente, não é a propósito do
conteúdo do diálogo, que para ele não existe, mas a respeito do programa sobre o qual dissertará a seus
alunos. E a esta pergunta responderá ele mesmo, organizando
Para o educador-educando, dialógico, problematizador, o conteúdo programático da educação não é uma
doação ou uma imposição – um conjunto de informes a ser depositado nos educandos, mas a revolução
organizada, sistematizada e acre scentada ao povo, daqueles elementos que este lhe entregou de forma
desestruturada.
pronúncia do mundo é tarefa de homens seletos e que a presençapronúncia do mundo. Se alguém nãoser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dosconfiança de um pólo no outro é conseqüência óbvia. Seria uma contradição se, amoroso, humilde epriori do diálogo, a confiança se instaura com ele. A confiança vaipronúncia do mundo. Se falha esta6 de que resulta dever ser o presente algo normalizado e bem7.seu programa.8 6
Trecho de carta de um amigo do autor. 7
Pierre Furter. Educação e Vida. Petrópolis, Vozes, 1966, pp. 26-7. 8
Nous devons enseigner aux masses avec précision ce que nous avons reçu d’elles avec confusion”. André
A educação autêntica, repitamos, não se faz de “A” para “B” ou de “A” sobre “B”, mas de “A” com “B”,
mediatizados pelo mundo. Mundo que impressiona e desafia a uns e a outros, originando visões ou pontos
de vista sobre ele. Visões impregnadas de anseios, de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que
implicitam temas significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo programático da educação. Um
dos equívocos de uma concepção ingênua do humanismo, está em que, na ânsia de corporificar um
modelo ideal de “bom homem”, se esquece da situação concreta, existencial, presente, dos homens
mesmos. “O humanismo consiste, (diz Furter) em permitir a tomada de consciência de nossa plena
humanidade, como condição e obrigação: como situação e projeto.”
Em uma longa conversação com Malraux, declarou Mao: “Vous savez que je proclame depuis longtemps:9 Simplesmente, não podemos chegar aos operários, urbanos ou camponeses, estes, de modo geral,
imersos num contexto colonial, quase umbilicalmente ligados ao mundo da natureza de que se sentem
mais partes que transformadores, para, à maneira da concepção “bancária”, entregar-lhes “conhecimento”
ou impor-lhes um modelo de bom homem, contido no programa cujo conteúdo nós mesmos organizamos.
Não seriam poucos os exemplos, que poderiam ser citados, de planos, de natureza política ou
simplesmente docente, que falharam porque os seus realizadores partiram de sua visão pessoal da
realidade. Porque não levaram em conta, num mínimo instante, os homens em
situação a quem se dirigia seu
Para o educador humanista ou o revolucionário autêntico a incidência da ação é a realidade a ser transformada
por eles com os outros homens e não estes.
Quem atua sobre os homens para, doutrinando-os, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve
permanecer intocada, são os dominadores.
Lamentavelmente, porém, neste “conto” da verticalidade da programação, “conto” da concepção
“bancária”, caem muitas vezes lideranças revolucionárias, no seu empenho de obter a adesão do povo à
ação revolucionária.
Acercam-se das massas camponesas ou urbanas com projetos que podem corresponder à sua visão do
mundo, mas não necessariamente à do povo
Esquecem-se de que o seu objetivo fundamental é lutar com o povo pela recuperação da humanidade
roubada e não
revolucionário cabe libertar e libertar-se com o povo, não conquistá-lo.
As elites dominadoras, na sua atuação política, são eficientes no uso da concepção “bancária” (em que a
conquista é um dos instrumentos) porque, na medida em que esta desenvolve uma ação apassivadora,
coincide com o estado de “imersão” da consciência oprimida. Aproveitando esta “imersão” da consciência
oprimida, estas elites vão transformando-a naquela “vasilha” de que falamos, e pondo nela
fazem mais temerosa ainda da liberdade.
Malraux, –
dialógica de constituição do conteúdo programático da educação, que não pode ser elaborado a partir das
finalidades do educador, do que lhe pareça ser o melhor para
programa, a não ser como puras incidências de sua ação.10.conquistar o povo. Este verbo não deve caber aa sua linguagem, mas na do dominador. Aoslogans que aAntimemoires. Paris, Gallimard, 1967. p. 531. Nesta afirmação de Mao está toda uma teoriaseus educandos. 9
Pierre Furter, op. cit., p. 165. 10
pour les masses, nous devons partir de leurs besoins, et non de nos propres désirs, si louables soient-ils.
Il arrive souvent que les masses aient objetivement besoin de telles ou telles transformations, mais que
subjetivement elles ne soient conscientes de ce besoin, que'elles n’aient ni la valonté ni le désir de les
réaliser; dans ce cas, nous devons attendre avec patience; c'est seulement lorsque, à la suite de notre
travail, les masses seront, dans leurs majorité conscientes de la nécessité de ces transformations,
lorsqu’elles auront la volonté et le desir de les faire aboutir ou’on pourra les realiser; sinon, l'on risque de
se couper des masses. (...) Deux principes doivent nous guider: premièrement, les besoins réels des
masses et non les besoins nés de notre imagination; deuxiement, le désir librement exprimé par les
masses, les resolutions qu'elles ont prises elles memes et non celles que nous prenons à leur place”. Mao
Tsé-Tung,
Um trabalho verdadeiramente libertador é incompatível com esta prática. Através dele, o que se há de
fazer é propor aos oprimidos os
expulsão de “dentro” dos oprimidos.
Afinal, o empenho dos humanistas não pode ser o da luta de seus
intermediários os oprimidos, como se fossem “hospedeiros” dos
dos humanistas, pelo contrário, está em que os oprimidos tornem consciência de que, pelo fato mesmo de
que estão sendo “hospedeiros” aos opressores, como seres duais, não estão podendo Ser.
Esta prática implica, por isto mesmo, em que o acercamento às massas populares se faça, não para levarlhes
uma mensagem “salvadora”, em forma de conteúdo a ser depositado, mas, para, em diálogo com
elas, conhecer, não só a
vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo
Por isto é que não podemos, a não ser ingenuamente, esperar resultados positivos de um programa, seja
educativo num sentido mais técnico ou de ação política, se, desrespeitando a particular visão do mundo
que tenha ou esteja tendo o povo, se constitui numa espécie de “invasão cultural”, ainda que feita com a
melhor das intenções. Mas “invasão cultural” sempre.
“Pour établir une liaison avec les masses, nous devotns nous conformer a leurs désirs. Dans tout travailLe Front Uni dans le Travail Culturel, 1944.slogans dos opressores, como problema, proporcionando-se, assim, a suaslogans dos opressores, tendo comoslogans de uns e de outros. O empenhoobjetividade em que estão, mas a consciência que tenham desta objetividade; osem que e com que estão.11 AS RELAÇÕES HOMENS-MUNDO, OS TEMAS
GERADORES E O CONTEÚDO PROGRAMÁTICO
DESTA EDUCAÇÃO
Será a partir da situação presente, existencial, concreta, refletindo o conjunto de aspirações do povo, que
poderemos organizar o conteúdo programático da situação ou da ação política, acrescentemos.
O que temos de fazer, na verdade, é propor ao povo, através de certas contradições básicas, sua situação
existencial, concreta, presente, como problema que, por sua vez, o desafia e, assim, lhe exige resposta,
não só no risível intelectual, mas no nível da ação.
12 Nunca apenas dissertar sobre ela e jamais doar-lhe conteúdos que pouco ou nada tenham a ver com seus
anseias, coem suas dúvidas, com suas esperanças, com seus temores. Conteúdos que, às vezes,
aumentam estes temores. Temores de consciência oprimida.
Nosso papel não é falar ao povo sobre a nossa visão do mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com
ele sobre a sua e a nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se manifesta
nas várias formas de sua ação, reflete a sua
política não pode prescindir do conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “bancária” ou de
pregar no deserto.
Por isto mesmo é que, muitas vezes, educadores e políticos falam e não são entendidos. Sua linguagem
não sintoniza com a situação concreta dos homens a quem falam. E sua fala é um discurso a mais,
alienado e alienante.
É que a linguagem do educador ou do político (e cada vez nos convencemos mais de que este há de
tornar-se também educador no sentido mais amplo da expressão) tanto quanto a linguagem do povo, não
existe sem um pensar e ambos, linguagem e pensar, sem uma realidade a que se encontrem referidos.
Desta forma, para que haja comunicação eficiente entre eles, é preciso que educador e político sejam
capazes de conhecer as condições estruturais em que o pensar e a linguagem do povo, dialeticamente, se
constituem.
Daí também que o conteúdo programático para a ação, que é de ambos, não possa ser de exclusiva
eleição daqueles, mas deles e do povo.
situação no mundo, em que se constitui. A ação educativa e 11
No capítulo seguinte, analisaremos detidamente esta questão, 12
quanto que homens de direita se empenhem num esforço de educação problematizadora. Estes são
sempre mais coerentes – jamais aceitam uma pedagogia da problematização.
É na realidade mediatizadora, na consciência que dela tenhamos educadores e povo, que iremos buscar o
conteúdo programático da educação.
O momento deste buscar é o que inaugura o diálogo da educação como prática da lib erdade. É o momento
em que se realiza a investigação do que chamamos de
Neste sentido, é tão contraditório que homens verdadeiramente humanistas usem a prática “bancária",universo temático13 do povo ou o conjunto de seus temas geradores.
Esta investigação implica, necessariamente, numa metodologia que não pode contradizer a dialogicidade
da educação libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora também,
proporcione, ao mesmo tempo, a apreensão dos “temas geradores” e a tomada de consciência dos
indivíduos em torno dos mesmos.
Esta é a razão pela qual, (em coerência ainda com a finalidade libertadora da educação dialógica) não se
trata de ter nos homens o objeto da investigação, de que o investigador seria o sujeito.
O que se pretende investigar, realmente, não são os homens, como se fossem peças anatômicas, mas o
seu pensamento-linguagem referido à realidade, os níveis de sua percepção desta realidade, a sua visão
do mundo, em que se encontram envolvidos seus “temas geradores”.
Antes de perguntar-nos o que é um “Tema Gerador”, cuja resposta nos aclarará o que é o “universo
mínimo temático”, nos parece indispensável desenvolver algumas reflexões.
Em verdade, o conceito de “tema gerador” não é uma criação arbitrária, ou uma hipótese de trabalho que
deva ser comprovada. Se o “tema gerador” fosse uma hipótese que devesse ser comprovada, a
investigação, primeiramente, não seria em torno dele, mas de sua existência ou não.
Neste caso, antes de buscar apreendê-la em sua riqueza, em sua significação, em sua pluralidade, em seu
devenir, em sua constituição histórica, teríamos que constatar, primeiramente, sua objetividade. Só
depois, então, poderíamos tentar sua captação.
Ainda que esta postura – a de uma dúvida crítica – seja legítima, nos parece que a constatação do “tema
gerador”, como uma concretização, é algo a que chegamos através, não só da própria experiência
existencial, mas também de uma reflexão crítica sobre as relações homens-mundo e homens-homens,
implícitas nas primeiras.
Detenhamo -nos neste ponto. Mesmo que possa parecer um lugar-comum, nunca será demasiado falar em
torno dos homens como os únicos seres, entre os “inconclusos”, capazes de ter, não apenas sua própria
atividade, mas a si mesmos, como objeto de sua consciência, o que os distingue do animal, incapaz de
separar-se de sua atividade.
Nesta distinção, aparentemente superficial, vamos encontrar as linhas que demarcam os campos de uns e
de outros, do ponto de vista da ação de ambos no espaço em que se encontram.
Ao não poder separar-se de sua atividade sobre a qual não pode exercer um ato reflexivo, o animal não
consegue impregnar a transformação, que realiza no mundo, de uma significação que vá mais além de si
mesmo.
Na medida em que sua atividade é uma aderência dele, os resultados da transformação operada através
dela não o sobrepassam. Não se separam dele, tanto quanto sua atividade. Dai que ela careça de
finalidades que sejam propostas por ele. De um lado, o animal não se separa de sua atividade, que a ele
se encontra aderida; de outro, o ponto de decisão desta se acha fora dele: na espécie a que pertence.
Pelo fato de que sua atividade seja ele e ele seja sua atividade, não podendo dela separar-se, enquanto
seu ponto de decisão se acha em sua espécie e não nele, o animal se constitui, fundamentalmente, como
um “ser fechado em si”.
13
Com a mesma conotação, usamos a expressão temática significativa. Ao não ter este ponto de decisão em si, ao não poder objetivar-se nem à sua atividade, ao carecer de
finalidades que se proponha, e que proponha, ao viver “imerso” no “mundo” a que não consegue dar
sentido, ao não ter um amanhã nem um hoje, por viver num presente esmagador, o anima l é a-histórico.
Sua vida a-histórica se dá, não no mundo tomado em sentido rigoroso, pois que o mundo não se constitui
em um “não-eu” para ele, que seja capaz de constituí-lo como eu.
O mundo humano, que é histórico, se faz, para o “ser fechado em si” mero
é
Estes, porque não são desafios perceptíveis reflexivamente, mas puramente “notados” pelos sinais que os
apontam, não exigem respostas que impliquem em anões decisórias. O animal, por isto mesmo, não pode
comprometer-se. Sua condição de a-histórico não lhe permite
não pode construí-la. E, se não constrói, não pode transformar o seu contorno. Não pode, tampouco,
saber-se destruído em vida, pois não consegue alongar seu
significativo e simbólico, o mundo compreensivo da cultura e da história. Esta é a razão pela qual o animal
não animaliza seu contorno para animalizar-se, nem tampouco se desanimaliza. No bosque, como no
zoológico, continua um “ser fechado em si” – tão animal aqui, como lá.
Os homens, pelo contrário, ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem
em função de finalidades que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e
em suas relações com mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora
através da transformação que realizam nele, na medida em que dele podem separar-se e, separando-se,
podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua
existência é histórica.
Se a vida do animal se dá em um
mundo que eles recriam e transformam incessantemente. Se, na vida do animal, o aqui não é mais que
um “habitat” ao qual ele “contata”, na existência dos homens o
também um espaço histórico.
Para o animal, rigorosamente, não há um aqui, um agora, um ali, um amanhã, um ontem, porque,
carecendo da consciência de si, seu dever é uma determinação total. Não é possível ao animal
sobrepassar os limites impostos pelo
suporte. Seu contorno não lheproblemático, mas estimulante. Sua vida não é um correr riscos, uma vez que não os sabe correndo.assumir a vida, e, porque não a assume,suporte, onde ela se dá, em um mundosuporte atemporal, plano, igual, a existência dos homens se dá noaqui não é somente um espaço físico, masaqui, pelo agora ou pelo ali. Os homens, pelo contrário, porque são consciência de si e, assim, consciência do mundo, porque são um
“corpo consciente”, vivem uma relação dialética entre os condicionamentos e sua liberdade.
Ao se separarem do mundo, que objetivam, ao separarem sua atividade de si mesmos, ao terem o ponto
de decisão de sua atividade em si, em suas relações com o mundo e com os outros, os homens
ultrapasam as “situações-limites”, que não devem ser tomadas como se fossem barreiras insuperáveis,
mais além das quais nada existisse
em que elas se configuram com obstáculos à sua libertação, se transformam em “percebidos destacados”
em sua “visão de fundo”. Revelam-se, assim, como realmente são: dimensões concretas e históricas de
uma dada realidade. Dimensões desafiadoras dos homens, que incidem sobre elas através de ações que
Vieira Pinto chama de “atos-limites” – aqueles que se dirigem à superação e à negação do dado, em lugar
de implicarem na sua aceitação dócil e passiva.
Esta é a razão pela qual não são as “situações limites”, em si mesmas, geradoras de um clima de
desesperança, mas a percepção que os homens tenham delas num dado momento histórico, como um
freio a eles, como algo que eles não podem ultrapassar. No momento em que a percepção critica se
instaura, na ação mesma, se desenvolve um clima de esperança e confiança que leva os homens a
empenhar-se na superação das “situações-limites”.
14. No momento mesmo em que os homens as apreendem como freios, 14
conceito aproveita, esvaziando-o, porém, da dimensão pessimista que se encontra originariamente em
Jaspers.
Para Vieira Pinto, as “situações-limites” não são “o contorno infranqueável onde terminam as
possibilidades, mas a margem real onde começam todas as possibilidades”; não são “a fronteira entre o
ser e o nada, mas a fronteira entre o ser e o ser mais" (mais ser). Álvaro Vieira Pinto,
Realidade Nacional
Esta superação, que não existe fora das relações homens-mundo, somente pode verificar-se através da
ação dos homens sobre a realidade concreta em que se dão as “situações-limites”.
Superadas estas, com a transformação da realidade, novas surgirão, provocando outros “atos-limites” dos
homens.
Desta forma, o próprio dos homens é estar, como consciência de si e do mundo, em relação de enfrentamento
com sua realidade em que, historicamente, se dão as “situações-limites”. E este enfrentamento
com a realidade para a superação dos obstáculos só pode ser feito historicamente, como historicamente
se objetivam as “situações-limites”.
No “mundo” do animal, que não sendo rigorosamente mundo, mas
“situações-limites” pelo caráter a-histórico do segundo, que se estende ao primeiro.
Não sendo o animal um “ser para si”, lhe falta o poder de exercer “atos-limites”, que implicam numa
postura decisória frente ao mundo, do qual o ser se “separa”, e, objetivando-o, o transforma com sua
ação. Preso organicamente a seu
Desta forma, em lugar de “situações-limites”, que são históricas, é o
limita. O próprio do animal, portanto, não é estar em
O Prof. Álvaro Vieira Pinto analisa, com bastante lucidez, o problema das “situações-limites", cujoConsciência e. Rio de Janeiro, ISEB, 1960, vol. II, p. 284.suporte em que está, não hásuporte, o animal não se distingue dele.suporte mesmo, maciçamente, que orelação com seu suporte – se estivesse, o suporte seria mundo – mas adaptado a ele. Daí que, como um “ser fechado” em si, ao “produzir” um ninho, uma
colméia, um oco onde viva, não esteja realmente criando produtos que tivessem sido o resultado de
“atos-limites” – respostas transformadoras. Sua atividade produtora está submetida à satisfação de uma
necessidade física, puramente estimulante e não desafiadora. Daí que seus produtos, fora de dúvida,
“pertençam diretamente a seus corpos físicos, enquanto o homem é livre frente a seu produto”.
15 Somente na medida em que os produtos que resultam da atividade do ser “não pertençam a seus corpos
físicos”, ainda que recebam o seu selo, darão surgimento à dimensão significativa do contexto que, assim,
se faz mundo.
Daí em diante, este ser, que desta forma atua e que, necessariamente, é um ser consciência de si, um ser
“para si”, não poderia ser, se não
não existiria, se este ser não existisse.
A diferença entre os dois, entre o animal, de cuja atividade, porque não constitui “atos-limites”, não
resulta uma produção mais além de si e os homens que, através de sua ação sobre o mundo, criam o
domínio da cultura e da história, está em que somente estes são seres da práxis. Somente estes são
práxis. Práxis que, sendo reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de
conhecimento reflexivo e criação. Com efeito, enquanto a atividade animal, realizada sem práxis, não
implica em criação, a transformação exercida pelos homens a implica.
E é como seres transformadores e criadores que os homens, em suas permanentes relações com a
realidade, produzem, não somente os bens materiais, as coisas sensíveis, os objetos, mas também as
instituições sociais, suas idéias, suas concepções.
estivesse sendo, no mundo com o qual está, como também este mundo16 Através de sua permanente ação transformadora da realidade objetiva, os homens, simultaneamente,
criam a história e se fazem seres histórico-sociais.
Porque, ao contrário do animal, os homens podem tridimensionalizar o tempo (passado-presente-futuro)
que, contudo, não são departamentos estanques. Sua história, em função de suas mesmas criações vai se
desenvolvendo em permanente devenir, em que se concretizam suas unidades epocais. Estas, como o
ontem, o hoje e o amanhã, não são como se fossem seções fechadas e intercomunicáveis do tempo, que
ficassem petrificadas e nas quais os homens estivessem enclausurados. Se assim fosse, desapareceria
15
Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos. 16
edição.
uma condição fundamental da historia: sua continuidade. As unidades epocais, pelo contrário, estão em
relação umas com as outras
Uma unidade epocal se caracteriza pelo conjunto de idéias, de concepções, esperanças, dúvidas, valores,
desafios, em interação dialética com seus contrários, buscando plenitude. A representação concreta de
muitas destas idéias, destes valores, destas concepções e esperanças, como também os obstáculos ao ser
mais dos homens, constituem os temas da época.
Estes, não somente implicam em outros que são seus contrários, às vezes antagônicos, mas também
indicam tarefas a ser realizadas e cumpridas. Desta forma, não há, como surpreender os temas históricos
isolados, soltos, desconectados, coisificados, parados, mas em relação dialética com outros, seus opostos.
Como também não há outro lugar para encontrá-los que não seja nas relações homens-mundo. O
conjunto dos temas em interação constitui o “universo temático” da época.
Frente a este “universo” de temas que dialética-mente se contradizem, os homens tornam suas posições
também contraditórias, realizando tarefas em favor, uns, da manutenção das estruturas, outros, da
mudança.
Na medida em que se aprofunda o antagonismo entre os temas que são a expressão da realidade, há uma
tendência para a mitificação da temática e da realidade mesma, o que, de modo geral, instaura um clima
de “irracionalismo” e de sectarismo.
Este clima ameaça esgotar os temas de sua significação mais profunda, pela possibilidade de retirar-lhes a
conotação dinâmica que os caracteriza.
No momento em que uma sociedade vive uma época assim, o próprio irracionalismo mitificador passa a
constituir um de seus temas fundamentais, que terá, como seu oposto combatente, a visão crítica e
dinâmica da realidade que, empenhando-se em favor do seu desvelamento, desmascara sua mitificação e
busca a plena realização da tarefa humana: a permanente transformação da realidade para a libertação
dos homens,
Os temas
enquanto as
quais nos referimos.
Enquanto os temas não são percebidos como tais, envolvidos e envolvendo as "situações-limites”, as
A propósito deste aspecto, ver Karel Kosik, Dialética do Concreto, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, 3ª17 na dinâmica da continuidade histórica.18 se encontram, em última análise, de um lado, envolvidos, de outro, envolvendo as “situaçõeslimites”,tarefas em que eles implicam, quando cumpridas, constituem os “atos-limites” aos tarefas
termos autênticos ou críticos.
Neste caso, os temas se encontram encobertos pelas “situações-limites” que se apresentam aos homens
como se fossem determinantes históricas, esmagadoras, em face das quais não lhes cabe outra
alternativa, senão adaptar-se. Desta forma, os homens não chegam a transcender as “situações-limites” e
a descobrir ou a divisar, mais além delas e em relação com elas, o
referidas a eles, que são as respostas dos homens através de sua ação histórica, não se dão em“inédito viável”. Em síntese, as “situações-limites” implicam na existência daqueles a quem direta ou indiretamente
“servem” e daqueles a quem “negam” e “freiam”.
No momento em que estes as percebem não mais como uma “fronteira entre o ser e o nada, mas como
uma fronteira entre o ser e o mais ser”, se fazem cada vez mais críticos na sua ação, ligada àquela
percepção. Percepção em que está implícito o
dirigirá, sua ação.
inédito viável como algo definido, a cuja concretização se 17
Em torno de épocas históricas, ver Hans Freyer: Teoria de la Época Actual, México, Fondo de Cultura. 18
ação por eles provocada, contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por
sua vez, provocam novas tarefas que devem ser cumpridas.
A tendência então, dos primeiros, é vislumbrar no
“situação-limite” ameaçadora que, por isto mesmo, precisa não concretizar-se. Dai que atuem no sentido
de manterem a “situação-limite” que lhes é favorável.
Estes temas se chamam geradores porque, qualquer que seja a natureza de sua compreensão como ainédito viável, ainda como inédito viável, uma19 Desta forma, se impõe à ação libertadora, que é histórica, sobre um contexto, também histórico, a
exigência de que esteja em relação de correspondência, não só com os “temas geradores”, mas com a
percepção que deles estejam tendo os homens. Esta exigência necessariamente se alonga noutra: a da
investigação da temática significativa.
Os “temas geradores” podem ser localizados em círculos concêntricos, que partem do mais geral ao mais
particular.
Temas de caráter universal, contidos na unidade epocal mais ampla, que abarca toda uma gama de
unidades e subunidades, continentais, regionais, nacionais, etc., diversificadas entre si. Como tema
fundamental desta unidade mais ampla, que poderemos chamar “nossa época”, se encontra, a nosso ver,
o da libertação, que indica o seu contrário, o tema da dominação. É este tema angustiante que vem dando
à nossa época o caráter
Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento da opressão
desumanizante, é imprescindível a superação das “situações-limites” em que os homens se acham quase
coisificados”.
Em círculos menos amplos, nos deparamos com temas e “situações-limites”, características de sociedades
de um mesmo continente ou de continentes distintos, que têm nestes temas e nestas “situações-limites”
similitudes históricas.
A “situação-limite” do subdesenvolvimento, ao qual está ligado o problema da dependência, é a
fundamental característica do “terceiro mundo”. A tarefa de superar tal situação, que é uma totalidade,
por outra, a do desenvolvimento, é, por sua vez, o imperativo básico do Terceiro Mundo.
Se olhamos, agora, uma sociedade determinada em sua unidade epocal, vamos perceber que, além desta
temática universal, continental ou de um mundo específico de semelhanças históricas, ela vive seus temas
próprios, suas “situações-limites”.
Em círculo mais restrito, observaremos diversificações temáticas, dentro de uma mesma sociedade, em
áreas e subáreas em que se divide, todas, contudo, em relação com o
e sub-áreas que constituem subunidades epocais. Em uma unidade nacional mesma, encontramos a
contradição da “contemporaneidade do não coetâneo”.
Nas subunidades referidas, os temas de caráter nacional podem ser ou deixar de ser captados em sua
verdadeira significação, ou simplesmente podem ser
O impossível, porém, é a inexistência de temas nestas subnidades epocais. O fato de que indivíduos de
uma área não captem um "tema gerador”, só aparentemente oculto ou o fato de captá-la de forma
distorcida, pode significar, já, a existência de uma “situação-limite” de opressão em que os homens se
encontram mais imersos que emersos.
A INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES
E SUA METODOLOGIA
De modo geral, a consciência dominada, não só popular, que não captou ainda a “situação-limite” em sua
globalidade, fica na apreensão de suas manifestações periféricas às quais empresta a força inibidora que
cabe, contudo, à “situação-limite”.
19
é, para os primeiros, seu "inédito viável”, que precisam concretizar, se constitui, para os segundos, como
“situação-limite", que necessitam evitar.
Este é um fato de importância indiscutível para o investigador da temática ou do “tema gerador”.
A questão fundamental, neste caso, está em que, faltando aos homens uma compreensão crítica da
totalidade em que estão, captando-a em pedaços nos quais não reconhecem a interação constituinte da
mesma totalidade, não podem conhecê-la. E não o podem porque, para conhecê-la, seria necessário partir
do ponto inverso. Isto é, lhes seria indispensável ter antes a visão totalizada do contexto para, em
seguida, separarem ou isolarem os elementos ou as parcialidades do contexto, através de cuja cisão
voltariam com mais claridade à totalidade analisada.
Este é um esforço que cabe realizar, não apenas na metodologia da investigação temática que
advogamos, mas também, na educação problematizadora que defendemos. O esforço de propor aos
indivíduos dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite reconhecer a
interação de suas partes.
Desta maneira, as dimensões significativas que, por sua vez, estão constituídas de partes em interação,
ao serem analisadas, devem ser percebidas pelos indivíduos como dimensões da totalidade. Deste modo,
a análise crítica de uma dimensão significativo-existencial possibilita aos indivíduos uma nova postura,
também crítica, em face das “situações-limites”. A captação e a compreensão da realidade se refazem,
ganhando um nível que até então não tinham. Os homens tendem a perceber que sua compreensão e que
a “razão” da realidade não estão fora dela, como, por sua vez, ela hão se encontra deles dicotomizada,
como se fosse um mundo à parte, misterioso e estranho, que os esmagasse.
Neste sentido é que a investigação do “tema gerador”, que se encontra contido no “universo temático
mínimo” (os temas geradores em interação) se realizada por meio de uma metodologia conscientizadora,
além de nos possibilitar sua apreensão, insere ou começa a inserir os homens numa forma crítica de
pensarem seu mundo.
Na medida, porém, em que, na captação do todo que se oferece à compreensão dos homens, este se lhes
apresenta como algo espesso que os envolve e que não chegam a vislumbrar, se faz indispensável que a
sua busca se realize através da abstração. Isto não significa a redução do concreto ao abstrato, o que
seria negar a sua dialeticidade, mas tê-los como opostos que se dialetizam no ato de pensar.
Na análise de uma situação existencial concreta, “codificada”
pensar.
A descodificação da situação existencial provoca esta postura normal, que implica num partir
abstratamente até o concreto; que implica numa ida das partes ao todo e numa volta deste às partes, que
implica num reconhecimento do sujeito no objeto (a situação existencial concreta) e do objeto como
situação em que está o sujeito
Este movimento de ida e volta, do abstrato ao concreto, que se dá na análise de uma situação codificada,
se bem feita a descodificação, conduz à superação da abstração com a percepção crítica do concreto, já
agora não mais realidade espessa e pouco vislumbrada.
antropológico a que fizemos referência anteriormente.todo de que participam. São áreassentidos. Às vezes, sem sequer são sentidos.20A Libertação desafia, de forma dialeticamente antagônica, a oprimidos e a opressores. Assim, enquanto21, se verifica exatamente este movimento do22. 20
diferentemente de como se manifesta entre camponeses. Seu medo da liberdade os leva a assumir
mecanismos de defesa e, através de racionalizações, escondem o fundamental, enfatizam o acidental e
negam a realidade concreta. Em face de um problema cuja análise remete à visualização da situaçãolimite",
cuja crítica lhes é incômoda, sua tendência é ficar na periferia dos problemas, rechaçando toda
tentativa de adentramento no núcleo mesmo da questão. Chegam, inclusive, a irritar-se quando se lhes
chama a atenção para algo fundamental que explica o acidental ou o secundário, aos quais estão dando
significação primordial.
Esta forma de proceder se observa, não raramente, entre homens de classe média, ainda que 21
constitutivos, em interação. A descodificação é a análise critica da situação codificada.
A codificação de uma situação existencial é a representação desta, com alguns de seus elementos 22
reconhece nesta, objeto agora de sua reflexão, o seu contorno condicionante em e com que está, com
outros sujeitos.
Realmente, em face de uma situação existencial codificada, (situação desenhada ou fotografada que remete,
por abstração, ao concreto da realidade existencial), a tendência dos indivíduos é realizar uma
espécie de "cisão” na situação, que se lhes apresenta. Esta “cisão”, na prática da descodificação,
corresponde à. etapa que chamamos de “descrição da situação”. A cisão da situação figurada possibilita
descobrir a interação entre as partes do todo cindido.
Este todo, que é a situação figurada (codificada) e que antes havia sido apreendido difusamente, passa a
ganhar significação na medida em que sofre a “cisão” e em que o pensar volta a ele, a partir das
dimensões resultantes da “cisão”.
Como, porém, a codificação é a representação de uma situação existencial, a tendência dos indivíduos é
dar o passo da representação da situação (codificação) à situação concreta mesma em que e com que se
encontram.
Teoricamente, é lícito esperar que os indivíduos passem a comportar-se em face de sua realidade objetiva
da mesma forma, do que resulta que deixe de ser ela um beco sem saída para ser o que em verdade é:
um desafio ao qual os homens têm que responder.
Em todas as etapas da descodificação, estarão os homens exteriorizando sua visão do mundo, sua forma
de pensá-lo, sua percepção fatalista das “situações-limites”, sua percepção estática ou dinâmica da
realidade.
E nesta forma expressada de pensar o mundo fatalistamente, de pensá-lo dinâmica ou estaticamente, na
maneira como realizam seu enfrentamento com o mundo, se encontram envolvidos seus “temas
geradores”.
Ainda quando um grupo de indivíduos não chegue a expressar concretamente uma temática geradora, o
que pode parecer inexistência de temas, sugere, pelo contrário, a existência de um tema dramático: o
O sujeito se reconhece na representação da situação existencial “codificada", ao mesmo tempo em que tema do silêncio.
em face das quais o óbvio é a adaptação.
É importante reenfatizar que o “tema gerador” não se encontra nos homens isolados da realidade, nem
tampouco na realidade separada dos homens. Só pode ser compreendido nas relações homens-mundo.
Investigar o “tema gerador” é investigar, repitamos, o pensar dos homens referido à realidade, é
investigar seu atuar sobre a realidade, que é sua práxis.
A metodologia que defendemos exige, por isto mesmo, que, no fluxo da investigação, se façam ambos
sujeitos da mesma – os investigadores e os homens do povo que, aparentemente, seriam seu objeto.
Quanto mais assumam os homens uma postura ativa na investigação de sua temática, tanto mais
aprofundam a sua tomada de consciência em torno da realidade e, explicitando sua temática significativa,
se apropriam dela.
Poderá dizer-se que o fato de sermos homens do povo, tanto quanto os investigadores, sujeitos da busca
de sua temática significativa sacrifica a objetividade da investigação. Que os achados já não serão “puros"
porque terão sofrido uma interferência intrusa. No caso, em última análise, daqueles que são os maiores
interessados – ou devem ser – em sua própria educação.
Isto revela uma consciência ingênua da investigação temática, para a. qual os temas existiriam em sua
pureza objetiva e original, fora dos homens, como se fossem
Sugere uma estrutura constituinte do mutismo ante a força esmagadora de “situaçõeslimites”,coisas. Os temas, em verdade, existem nos homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos.
Um mesmo fato objetivo pode provocar, numa sub-unidade epocal, um conjunto de “temas geradores”, e,
noutra, não os mesmos, necessariamente. Há, pois, uma relação entre o fato objetivo, a percepção que
dele tenham os homens e os “temas geradores”.
É através dos homens que se expressa a temática significativa e, ao expressar-se, num certo momento,
pode já não ser, exatamente, o que antes era, desde que haja mudado sua percepção dos dados objetivos
aos quais os temas se acham referidos.
Do ponto de vista do investigador importa, na análise que faz no processo da investigação, detectar o
ponto de partida dos homens no seu modo de visualizar a objetividade, verificando se, durante o
processo, se observou ou não, alguma transformação no seu modo de perceber a realidade.
A realidade objetiva continua a mesma. Se a percepção dela variou no fluxo da investigação, isto não
significa prejudicar em nada sua validade. A temática significativa aparece, de qualquer maneira, com o
seu conjunto de dúvidas, de anseios, de esperanças.
É preciso que nos convençamos de que as aspirares, os motivos, as finalidades que se encontram
implicitados na temática significativa, são aspirações, finalidades, motivos humanos. Por isto, não estão
aí, num certo espaço, como coisas petrificadas, mas
Não podem ser captados fora deles, insistamos.
Captá-los e entendê-los é entender os homens que os encarnam e a realidade a eles referida. Mas,
precisamente porque não é possível entendê-los fora dos homens, é preciso que estes também os
entendam. A investigação temática se faz, assim, um esforço comum de consciência da realidade e de
autoconsciência, que a inscreve como ponto de partida do processo educ ativo, op da ação cultural de
caráter libertador.
A SIGNIFICAÇÃO CONSCIENTIZADORA
DA INVESTIGAÇÃO DOS TEMAS GERADORES.
OS VÁRIOS MOMENTOS DA INVESTIGAÇÃO
Por isto é que, para nós, o risco da investigação não está em que os supostos investigados se descubram
investigadores, e, desta forma, “corrompam” os resultados da análise. O risco está exatamente no
contrário. Em deslocar o centro da investigação, que é a temática significativa, a ser objeto da análise,
para os homens mesmos, como se fossem coisas, fazendo-os assim objetos da investigação. Esta, à base
da qual se pretende elaborar o programa educativo, em cuja prática educa-dores-educandos e educandoseducadores
conjuguem sua ação cognoscente sobre o mesmo objeto cognoscível, tem de fundar-se,
igualmente, na reciprocidade da ação. E agora, da ação mesma de investigar.
A investigação temática, que se dá no domínio do humano e não no das coisas, não pode reduzir-se a um
ato mecânico. Sendo processo de busca, de conhecimento, por isto tudo, de criação, exige de seus
sujeitos que vão descobrindo, no encadeamento dos temas significativos, a interpenetração dos
problemas.
Por isto é que a investigação se fará tão mais pedagógica quanto mais crítica e tão mais critica quanto,
deixando de perder-se nos esquema s estreitos das visões parciais da realidade, das visões “focalistas” da
realidade, se fixe na compreensão da
estão sendo. São tão histórico quanto os homens.totalidade. Assim é que, no processo de busca da temática significativa, já deve estar presente a preocupação pela
problematização dos próprios temas, Por suas vinculações com outros. Por seu envolvimento históricocultural.
Assim como não é possível – o que salientamos no início deste capítulo – elaborar um programa a ser
doado ao povo, também não o é elaborar roteiros de pesquisa do universo temático a partir de pontos
prefixados pelos investigadores que se julgam a si mesmos os sujeitos exclusivos da investigação.
Tanto quanto a educação, a investigação que a ela serve, tem de ser uma operação simpática, no sentido
etimológico da expressão. Isto é, tem de constituir-se na comunicação, no sentir comum uma realidade
que não pode ser vista mecanicistamente compartimentada, simplistamente bem “comportada”, mas, na
complexidade de seu permanente vir a ser.
Investigadores profissionais e povo, nesta operação simpática, que é a investigação do tema gerador, são
ambos sujeitos deste processo.
O investigador da temática significativa que, em nome da objetividade científica, transforma o orgânico
em inorgânico, o que
nesta, que não nega, mas que não quer, não um anuncio de vida, mas um anúncio de morte, de
deterioração. Quer conhecer a mudança, não para estimulá-la, para aprofundá-la, mas para freá-la.
Mas, ao temer a mudança e ao tentar aprisionar a vida, ao reduzi-la a esquemas rígidos, ao fazer do povo
objeto passivo de sua ação investigadora, ao ver na mudança o anúncio da morte, mata a vida e não pode
esconder sua marca necrófila.
A investigação da temática, repitamos, envolve a investigação do próprio pensar do povo. Pensar que não
se dá fora dos homens, nem num homem só, nem no vazio, mas nos homens e entre os homens, e
sempre referido à realidade.
Não posso investigar o pensar dos outros, referido ao mundo se não penso. Mas, não penso
autenticamente se os outros também não pensam. Simplesmente, não posso pensar
para os outros, nem
com ele, como sujeito de seu pensar. E se seu pensar é mágico ou ingênuo, será pensando o seu pensar,
na ação, que ele mesmo se superará. E a superação não se faz no ato de consumir idéias, mas no de
produzi-ias e de transformá -las na ação e na comunicação.
Sendo os homens seres em “situação”, se encontram enraizados em condições tempo-espaço que os
marcam e a que eles igualmente marcam. Sua tendência é refletir sobre sua própria
medida em que, desapoiados por ela, agem sobre ela. Esta reflexão implica, por isto mesmo, em algo
mais que estar em
situação. E serão tanto mais quanto não só pensem criticamente sobre sua forma de
criticamente atuem sobre a situação em que estão.
Esta reflexão sobre a situacionalidade é um pensar a pr6pria condição de existir. Um pensar critico através
do qual os homens se descobrem em “situação”. Só na medida em que esta deixa de parecer-lhes uma
realidade espesso que os envolve, algo mais ou menos nublado em que e sob que se acham, um beco
sem saída que os angustia e a captam como a situação objetivo-problemática em que estão, é que existe
o engajamento. Da
que se vai desvelando.
Desta maneira, a
própria consciência histórica.
Dai que seja a conscientização o aprofundamento da tomada de consciência, característica, por sua vem,
de toda emersão.
Neste sentido é que toda investigação temática de caráter conscientizador se faz pedagógica e toda
autêntica educação se faz investigação do pensar.
Quanto mais investigo o pensar do povo com ele, tanto mais nos educamos juntos. Quanto mais nos
educamos, tanto mais continuamos investigando.
Educação e investigação temática, na concepção problematizadora da educação, se tornam momentos de
um mesmo processo.
Enquanto na prática “bancária” da educação, anti-dialógica por essência, por isto, não comunicativa, o
educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou
elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é
“depositado”, se organiza e se constitui na visão do mu ndo dos educandos, em que se encontram seus
“temas geradores”.
Por tal razão é que este conteúdo há de estar sempre renovando-se e ampliando-se.
A tarefa do. educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático, recolhido
na investigação, devolvê-lo, como problema, não como dissertação, aos homem de quem recebeu.
Se, na etapa da alfabetização, a educação problematizadora e da comunicação busca e investiga a
“palavra geradora”,
Numa visão libertadora, não mais “bancária” da educação, o seu conteúdo programático já não involucra
finalidades a serem impostas ao povo, mas, pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os
educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida do
processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade.
Daí também o imperativo de dever ser conscientizadora a metodologia desta investigação.
Que fazermos, por exemplo, se temos a responsabilidade de coordenar um plano de educação de adultos
em uma área camponesa, que revele, inclusive, uma alta porcentagem de analfabetismo? O plano incluirá
a alfabetização e a pós-alfabetização. Estaríamos, portanto, obrigados a realizar, tanto a investigação das
“palavras geradoras”, quanto a dos “temas geradores”, á base de que teríamos o programa para uma e
outra etapas do plano.
Fixemo-nos, contudo, apenas na investigação dos “temas geradores” ou da temática significativa.
está sendo no que é, o vivo no morto, teme a mudança. Teme a transformação. Vêpelos outros nemsem os outros. A investigação do pensar do povo não pode ser feita sem o povo, massituacionalidade, nasituacionalidade, que é a sua posição fundamental. Os homens são porque estão emestar, masimersão em que se achavam, emergem, capacitando-se para inserir -se na realidadeinserção é um estado maior que a emersão e resulta da conscientização da situação. É a23 na pós-alfabetização, busca e investiga o “tema gerador”.24 Delimitada a área em que se vai trabalhar, conhecida através de fontes secundárias, começam os
investigadores a primeira etapa de investigação.
Esta, como todo começo em qualquer atividade no domínio do humano, pode apresentar dificuldades e
riscos. Riscos e dificuldades normais, até certo ponto, ainda que nem sempre existentes, na aproximação
primeira que fazem os investigadores aos indivíduos da área.
É que, neste encontro, os investigadores necessitam de obter que um número significativo de pessoas
aceite uma conversa informal com eles, em que lhes falarão dos objetivos de sua presença na área. Na
qual dirão o porque, o como e o para que da investigação que pretendem realizar e que mão podem fazêlo
se não se estabelece uma relação de simpatia e confiança mútuas.
No caso de aceitarem a reunião, e de nesta aderirem, não só à investigação, mas ao processo que se
segue
participar diretamente do processo da investigação como seus auxiliares. Desta forma, esta se inicia com
um diálogo às claras entre todos.
Uma série de informações sobre a vida na área, necessárias à sua compreensão, terá nestes voluntários
os seus recolhedores. Muito mais importante, contudo, que a coleta destes dados, é sua presença ativa aa
investigação.
Ao lado deste trabalho da equipe local, os investigadores iniciam suas visitas A área, sempre autênticamente,
nunca forçadamente, como observadores simpáticos. Por isso mesmo, com atitudes
25, devem os investigadores estimular os presentes para que, dentre eles, apareçam os que queiram compreensivas
Se é normal que os investigadores cheguem à área da investigação movendo-se em um marco conceitual
valorativo que estará presente na sua percepção do observado, isto não deve significar, porém, que
devem transformar a investigação temática no meio para imporem este marco.
A única dimensão que se supõe devam ter os investigadores, neste marco no qual se movem, que se
espera se faça comum aos homens cuja temática se busca investigar, é a da percepção crítica de sua
em face do que observam. 23
Ver Paulo Freire, Educação como prática da liberdade, op. cit. 24
prática da liberdade, op.cit.
A propósito da investigação e do “tratamento" das “palavras geradoras" ver Paulo Freire, Educação como 25
preparação só se justifica enquanto devolva ao povo o que a ele pertence; enquanto seja, não o ato de
conhecê-lo, mas o de conhecer com ele a realidade que o desafia.”
realidade, que implica num método correto de aproximação do concreto para desvelá-lo. E isto não se
impõe.
Neste sentido é que, desde o começo, a investigação temática se vai expressando como um quefazer
educativo. Como ação cultural.
Em suas visitas os investigadores vão fixando sua “mirada” critica na área em estudo, como se ela fosse,
para eles, uma espécie de enorme e
visualizando a área como totalidade, tentarão, visita após visita, realizar a “cisão” desta, na análise das
dimensões parciais que os vão impactando.
Neste esforço de “cisão” com que, mais adiante, voltarão a adentrar-se na totalidade, vão ampliando a
sua compreensão dela, na interação de suas partes.
Na etapa desta igualmente
observadora, diretamente, sobre certos
informais com seus habitantes.
Na medida em que realizam a “descodificação” desta “codificação” viva, se)a pela observação dos fatos,
seja pela conversação informal com os habitantes da área, irão registrando em seu caderno de notas, à
maneira de Wright Mills
homens; a sua forma de ser. O seu comportamento no culto religioso, no trabalho. Vão registrando as
expressões do povo; sua linguagem, suas palavras, sua sintaxe, que não é o mesmo que sua pronúncia
defeituosa, mas a forma de construir seu pensamento.
“Na razão mesma em que a ‘investigação temática’ (diz a soci6loga Maria Edy Perreira, num trabalho emsui-generis “codificação” ao vivo, que os desafia. Por isto mesmo,sui generis descodificação, os investigadores, ora incidem sua visão critica,momentos da existência da área, ora o fazem através de diálogos26, as coisas mais aparentemente pouco importantes. A maneira de conversar dos27 Esta descodificação ao vivo implica, necessariamente, em que os investigadores, em sua fase,
surpreendam a área era momentos distintos. É preciso que a visitem em horas de trabalho no campo; que
assistam a reuniões de alguma, associação popular, observando o proc edimento de seus participantes, a
linguagem usada, as relações entre diretoria e sócios; o papel que desempenham as mulheres, os jovens.
É indispensável que a visitem em horas de lazer; que presenciem seus habitantes em atividades
esportivas; que conversem com pessoas em suas casas, registrando manifestações em t6rno das relações
marido-mulher, pais-filhos; afinal, que nenhuma atividade, nesta etapa, se perca para esta compreensão
primeira da Arca.
A propósito de cada uma destas visitas de observação compreensiva devem os investigadores redigir um
pequeno relatório, cujo conteúdo é discutido pela equipe, em seminário, no qual se vão avaliando os
achados, quer dos investigadores profissionais, quer dos auxiliares da investigação, representantes do
povo, nestas primeiras observações que realizaram. Dai que este seminário de avaliação deva realizar-se,
se possível aa Arca de trabalho, para que possam estes participar dele.
Observa-se que os pontos fixados pelos vários investigadores, só conhecidos por todos na reunião de
seminário avaliativo, de modo geral coincidem, com exceção de um ou outro aspecto que impressionou
mais singularmente a um ou a outro investigador.
Estas reuniões de avaliação constituem, em verdade, um segundo momento da “descodificação” ao vivo,
que os investigadores estão realizando da realidade que se lhes apresenta como aquela “codificação”
suigeneris. Com efeito, na medida em que, um a um, vão todos expondo como perceberam e sentiram este ou aquele
momento que mais os impressionou, no ensaio “descodificador”, cada exposição particular, desafiando a
todos como descodificadores da mesma realidade, Vai re-presentificando-lhes a realidade recém-
26
Wright Mills, The Sociological Imagination. 27
captar fielmente, não a pronúncia, não a corruptela prosódica, mas a sintaxe do povo das Gerais – a
estrutura de seu pensamento. O educador brasileiro Paulo de Tarso – escreve um ensaio cujo valor e
interesse destacamos, sobre a obra de Guimarães Rosa, onde analisa o papel deste autor como
descobridor dos temas fundamentais do homem do sertão brasileiro.
presentificada à sua consciência intencionada a ela. Neste momento, “re-admiram” sua admiração anterior
no relato da “ad-miração” dos demais.
Desta forma, a “cisão” que fez cada um da realidade, no processo particular de sua descodificação, os
remete, dialógicamente, ao todo “cindido” que se retotaliza e se oferece aos investigadores a uma nova
análise, à qual se seguirá novo seminário avaliativo e critico, de que participarão, como membros da
equipe investigadora, os representantes populares.
Quanto mais cindem o todo e o re-totalizam na re -admiração que fazem de sua ad-miração, mais vão
aproximando-se dos núcleos centrais das contradições principais e secundárias em que estão envolvidos
os indivíduos da área.
Poderíamos pensar que, nesta primeira etapa da investigação, ao se apropriarem, através de suas
observações, dos núcleos centrais daquelas contradições, os investigadores já estariam capacitados para
organizar o conteúdo programático da ação educativa. Realmente, se o conteúdo desta ação reflete as
contradições, indiscutivelmente estará, constituído da temática significativa da área.
Não tememos, inclusive, afirmar que a margem de ac0rto para a ação que se desenvolvesse a partir
destes dados seria muito mais provável que a dos conteúdos resultantes das programações verticais.
Esta, contudo, não deve ser uma tentação pela qual os investigadores se deixem seduzir.
Na verdade, o básico, a partir da inicial percepção deste núcleo de contradições, entre as quais estará,
incluída a principal da sociedade como uma unidade epocal maior, é estudar em que nível de percepção
delas se encontram os indivíduos da área.
No fundo, estas contradições se encontram constituindo “situações-limites”, envolvendo temas e
apontando tarefas.
Se os indivíduos se encontram
o seu tema a elas referido será necessariamente o do
não terem
Neste sentido Guimarães Rosa nos parece um exemplo – e genial exemplo – de como pode um escritoraderidos a estas “situações-lbnites”, impossibilitados de “separar”-se delas,fatalismo e a “tarefa” a ele associada é a de quasetarefa. Por isto é que, embora as “situações-limites” sejam realidades objetivas e estejam provocando
necessidades nos indivíduos, se impõe investigar, com eles, a consciência que delas tenham.
Uma “situação-limite”, como realidade concreta, pode provocar em indivíduos de áreas diferentes e até de
subáreas de uma mesma área, temas e tarefas opostos, que exigem, portanto, diversificação
programática para o seu desvelamento.
Daí que a preocupação básica dos investigadores deva centrar-se no conhecimento do que Goldman
28 chama de “consciência real” (efetiva) e “consciência máxima possível”.
“Real consciousness is the result of the multiple obstacles and desviations that the different factors of
empirical reality put into opposition and submit for realization by this potential consciousness”. Daí que,
ao nível da “consciência real”, os homens se encontrem limitados na possibilidade de perceber mais além
das “situações-limites”, o que chamamos de “inédito viável”.
Por isto é que, para nós, o “inédito viável”, [que mão pode ser apreendido no nível da “consciência real”
ou efetiva] se concretiza a “ação editanda”, cuja viabilidade antes não era percebida. Há uma relação
entre o “inédito viável” e a “consciência real” e entre a “ação editanda” e a “consciência máxima possível”.
A “consciência possível” (Goldman) parece poder identificar-se com o que Nicolai
praticáveis despercebidas” (nosso “inédito viável”), em oposição às “soluções praticáveis percebidas” e às
“soluções efetivamente realizadas,” que correspondem a, “consciência real” (ou efetiva) de Goldman.
29 chama de “soluções” 28
Lucien Goldman, The human Sciences and Philosophy. Londres, The Chancer Press, 1969, p. 118. 29
Esta é a razão por que o fato de os investigadores, na primeira etapa da investigação, terem chegado à,
apreensão mais ou menos aproximada do conjunto de contradições, não os autoriza a pensar na
estruturação do conteúdo programático da ação educativa. Até então, esta visão é' deles ainda, e não a
dos indivíduos em face de sua realidade.
A segunda fase da investigação começa precisa-mente quando os investigadores, com os dados que
recolheram, chegam à apreensão daquele conjunto de contradições.
A partir deste momento, sempre em equipe, escolherão algumas destas contradições, com que serão
elaboradas as codificações que vão servir à investigação temática.
Na medida em que as codificações (pintadas ou fotografadas e, em certos casos, preferencialmente
fotografadas
sua preparação deve obedecer a certos princípios que são apenas os que norteiam a confecção das puras
ajudas visuais.
Uma primeira condição a ser cumprida é que, necessariamente, devem representar situações conhecidas
pelos indivíduos cuja temá tica se busca, o que as faz reconhecíveis por eles, possibilitando, desta forma,
que nelas se reconheçam.
Não seria possível, nem no processo da investigação, nem nas primeiras fases do que a ele se segue, o da
devolução da temática significativa como conteúdo programático, propor representações de realidades
estranhas aos indivíduos.
É que este procedimento, embora dialético, pois que os indivíduos, analisando uma realidade estranha,
comparariam com a sua, descobrindo as limitações desta, não pode preceder a um outro, exigível pelo
estado de
percepção anterior, do que resulta uma nova percepção da realidade distorcidamente percebida.
Igualmente fundamental para a sua preparação é a condição de não poderem ter as codificações, de um
lado, seu núcleo temático demasiado explícito; de outro, demasiado enigmático. No primeiro caso, correm
o risco de transformar-se em codificações propangandísticas, em face das quais os indivíduos não têm
outra descodificação a fazer, senão a que se acha implícita nelas, de forma dirigida. No segundo, o risco
de fazer-se um jogo de adivinhação ou “quebra-cabeça”.
Na medida em que representam situações existenciais, as codificações devem ser simples na sua
complexidade e oferecer possibilidades plurais de análises na sua descodificação, o que evita o dirigismo
massificador da codificação propagandística. As codificações não são
desafios sobre que deve incidir a reflexão crítica dos sujeitos descodificadores.
André Nicolai, Comportement Economique et Structures Sociales. Paris, PUF, 1960.30) são o objeto que, mediatizando os sujeitos descodificadores, se dá à sua análise crítica,imersão dos indivíduos: aquele em que, analisando sua própria realidade, percebem sua