Professora sim, tia não. PAULO FREIRE


Professora sim, 
tia não 
cartas a quem ousa ensinar

PAULO FREIRE

Introdução 
Não sei se quem leia este livro perceberá facilmente o prazer com que o escrevi. 
Foram quase dois meses em que à sua redação entreguei parte de meus dias, o maior 
tempo em meu escritório, em nossa casa, mas também em aviões e quartos de hotéis. 
Mas não foi apenas com prazer que escrevi este trabalho. Escrevi-o tocado por um forte 
sentido de compromisso ético-político e  com decidida preocupação em torno da 
comunicação que busco estabelecer a todo instante com seus prováveis leitores e 
leitoras. 
Precisamente porque estou convencido de que a produção da compreensão do 
texto não é tarefa exclusiva do seu autor,  mas também do leitor, me experimentei 
durante todo o tempo em que o escrevi no exercício de desafiar as leitoras e leitores a 
entregar-se à ocupação de produzir também sua compreensão e minhas palavras. Daí as 
observações e as sugestões que fiz, com medo quase de cansar os leitores para, usando 
instrumentos como dicionários, enciclopédias não abandonar a leitura de nenhum texto 
por não conhecer a significação técnica desta ou daquela palavra. 
Espero confiante que nenhuma leitora ou leitor deixará de ler este livro em sua 
totalidade simplesmente porque lhe tenha faltado a decisão de trabalhar um pouco mais. 
Que abandone a leitura porque o livro não lhe agrade, porque o livro não coincida com 
suas aspirações político-pedagógicas, isso  é um direito que lhe assiste. De qualquer 
maneira, porém, é sempre bom ler textos que defendem posições políticas diretamente 
opostas às nossas. Em primeiro lugar, ao fazê-lo, vamos aprendendo a ser menos 
sectários, mais radicais, mais abertos; em segundo lugar, terminamos por descobrir que 
aprendemos também não apenas com o diferente de nós, mas até com o nosso 
antagônico. 
Recentemente tive experiência profundamente significativa neste sentido. 
Coincidentemente conheci um empresário que, segundo me disse rindo no fim da 
conversa, me tinha como uma espécie de malfeitor do Brasil. Reminiscências do que de 
mim diziam alguns jornais nos 60. 
“Foi um prazer conhecê-lo de perto. Não diria que me converti a suas idéias mas 
mudei radicalmente a minha apreciação em torno do senhor”, disse convincente.
Voltei para casa contente. De vez em quando o Brasil melhora, apesar das 
“recaídas” que o abalam... 
Como já salientei antes, uma preocupação que não podia deixar de me haver 
acompanhado durante todo o tempo em que me dediquei á escrita e à leitura simultânea 
desse texto foi a que me engaja, desde faz  muito, na luta em favor de uma escola 
democrática. De uma escola que, continuando a ser um tempo-espaço de produção de 
conhecimento em que se ensina e em que se aprende, compreende, contudo, ensinar e 
aprender de forma diferente. Em que ensinar já não pode ser este esforço de transmissão 
do chamado saber acumulado, que faz uma geração á outra, e aprender não é a pura 
recepção do objeto ou do conteúdo transferido. Pelo contrário, girando em torno da 
compreensão do mundo, dos objetos, da criação, ela boniteza, da exatidão científica, do 
senso comum, ensinar e aprender giram  também em torno da produção daquela 
compreensão, tão social quanto a produção da linguagem, que é também conhecimento. 6
Exatamente como no caso da produção da compreensão cio texto que e lê, que é 
também tarefa do leitor, é tarefa igualmente do educando participar da produção da 
compreensão do conhecimento que supostamente apenas recebe do professor. Daí, a 
necessidade da racionalidade do diálogo, como selo da relação gnosiológica e não como 
pura cortesia. 
Não poderia encerrar esta introdução sem alguns agradecimentos. 
Em primeiro lugar, a Jorge Cláudio Ribeiro, amigo e editor, que me pediu (e 
facilmente me convenceu) que eu escrevesse este livro já trazendo à nossa casa o 
próprio título do trabalho. A Jorge Cláudio penso que devo não só agradecer a sugestão 
e o pedido que me fez mas elogiar, ele  um lado, o seu empenho para que o texto 
tomasse corpo, de outro, a fraterna posição que sempre assumiu sem jamais me 
telefonar a pretexto de nada para, no fundo, saber se eu me achava ou não trabalhando 
no livro. Devo agradecer também às professoras Suraia Jamal Batista e Zaquial Jamal e 
às alunas do Curso de Magistério do Colégio Sagrado Coração de Jesus e  às CEFAM 
da EEPG Edmundo de Carvalho que partilharam comigo suas lutas e descobertas, na 
etapa preliminar de produção deste livro. 
Meu muito obrigado a Nita, pela paciência com que me aturou durante os dias 
mais intensos de redação do texto, mas sobretudo, pelas sugestões temáticas que me fez, 
apontando um aspecto aqui e outro ali, à  luz de sua própria experiência como exprofessora de História da Educação de alguns cursos do Magistério em São Paulo. 
Finalmente, devo ainda agradecer a Madalena Freire Weffort, a Fátima Freire 
Dowbor e a Ana Maria Saul pela abertura e pelo interesse com que me ouviram e 
comigo falaram sobre algumas de minhas inquietações enquanto eu simultaneamente 
escrevia e lia este livro. 
São Paulo 
Maio/1993 

Primeiras palavras 
Professora-tia: a armadilha 
Termino de ler a primeira cópia, como geralmente chamamos o exemplar 
impresso, pronto,  morno  ou ainda  quente,  do livro que findamos de escrever. Esse 
exemplar que nos chega às mãos antes mesmo que a edição vá para as livrarias. Refirome à “Pedagogia da esperança, um reencontro com a Pedagogia do oprimido” que a Paz 
e Terra lançou em dezembro de 1992. 
O título deste livro, “Pedagogia da esperança”, não foi uma escolha antecipada, 
como às vezes ocorre com livros que escrevemos. Nasceu nas conversas com amigos, 
entre eles Werner Linz, seu editor norte-americano, em  torno do próprio movimento 
que a redação do texto geralmente vai imprimindo ao pensamento de quem escreve. 
Neste caso, que a redação do texto veio insinuando a meu pensamento no trato com a 
“Pedagogia do oprimido”. É que, na verdade, escrever não é um puro ato mecânico, 
precedido de um outro, que seria um ato  maior, mais importante, O ato ele pensar 
Ordenadamente, organizadamente, sobre um certo objeto, em cujo exercício o sujeito 
pensante, apropriando-se da significação mais profunda do objeto sendo pensado, 
termina por apreender a sua razão de ser. Termina por saber o objeto. A partir daí, 
então, o sujeito pensante, num desempenho puramente mecânico, escreve o que sabe e 
sobre o que pensou antes. Não! Não é bem assim que se são as coisas. Agora mesmo, 
no momento exato em que escrevo sobre  isto, quer dizer, sobre as relações  pensar, 
fazer, escrever, ler, pensamento, linguagens, realidade,  experimento a  solidariedade 
entre esses diversos momentos, a total impossibilidade de separá-los, de dicotomizá-los. 
Se isto não significa que após pensar, ou enquanto penso, eu deva 
automaticamente escrever, isto significa,  porém, que ao pensar guardo em meu corpo 
consciente e falante, a possibilidade de escrever da mesma forma que, ao escrever, 
continuo a pensar e a repensar o pensando-se como o já pensado. 
Esta é uma das violências que  o analfabetismo realiza – a de  castrar  o corpo 
consciente e falante de mulheres e de homens, proibindo-os de ler e de escrever, com o 
que se limitam na capacidade de, lendo o mundo, escrever sobre sua leitura dele e, ao 
fazê-la, repensar a própria leitura. Mesmo que não zere as milenar e socialmente criadas 
relações entre linguagem, pensamento e realidade, o analfabetismo as mutila e se 
constitui num obstáculo à assunção plena da cidadania. E as mutila porque, nas culturas 
letradas, interdita analfabetos e analfabetas de completar o ciclo das relações entre 
linguagem, pensamento e realidade, ao fechar a porta, nestas relações, ao lado 
necessário  da linguagem escrita. É preciso não esquecer que há um movimento 
dinâmico entre pensamento, linguagem e realidade do qual, se bem assumido, resulta 
uma crescente capacidade criadora de tal modo que, quanto mais vivemos integralmente 
esse movimento tanto mais nos tornamos sujeitos críticos do processo de conhecer, de 
ensinar, de aprender, de ler, de escrever, de estudar. 
No fundo, estudar, na sua significação  mais profunda, envolve todas estas 
operações solidárias entre elas. O importante agora é deixar claro, e em certo sentido, 
repetindo-me um pouco, que o processo de  escrever que me traz à mesa, com minha 
caneta especial, com minhas folhas de papel em branco e sem linhas, condição 
fundamental para que eu escreva, começa  antes mesmo que eu chegue à mesa, nos 8
momentos em que atuo ou pratico ou em que sou pura reflexão em torno de objetos; 
continua quando, pondo no papel da melhor maneira que me parece os resultados 
provisórios, sempre provisórios, de minhas reflexões, continuo a refletir, ao escrever, 
aprofundando um ponto ou outro que me passara despercebido quando antes refletia 
sobre o objeto, no fundo, sobre a prática. 
É por isso que não é possível reduzir o ato de escrever a um exercício mecânico. 
O ato de escrever é mais complexo e mais demandante do que o de pensar sem 
escrever. 
De fato, minha intenção inicial era  escrever um novo prefácio ou um nova 
introdução em que, retomando a “Pedagogia do oprimido”, a revisse em alguns de seus 
aspectos centrais, revendo igualmente algumas das críticas que o livro não apenas 
sofreu, mas em certos casos, continua a sofrer. E foi entregando-me a este esforço por 
meses que, o que seria uma nova introdução se torna um novo livro, com ares um 
pouco de memórias da “Pedagogia do oprimido” – cuja primeira cópia acabo de reler. 
É assim, ainda mergulhado na “Pedagogia da esperança”, molhado da esperança 
com que o escrevi, instigado por muitos de seus temas abertos a novas reflexões que me 
entrego agora a uma nova experiência, sempre desafiadora, sempre fascinante, a de 
lidar com uma temática, o que implica desnudá-la, clareá-la, sem que isto signifique 
jamais que o sujeito desnudante possua a última palavra sobre a verdade dos temas que 
discute. 
Professora, sim; tia, não – cartas a quem ousa ensinar, eis o enunciado geral que 
temos diante de nós a exigir um primeiro empenho de compreensão. O de entender, tão 
bem quanto possível, não propriamente o significado em si de cac1a uma das palavras 
que compõem o enunciado geral, mas compreender o que elas ganham ou perdem, 
individualmente, enquanto inseridas numa trama de relações. 
O enunciado que fala do tema tem três blocos: a) Professora, sim; b) Tia, não – c) 
Cartas a quem ousa ensinar. 
No fundo, o discurso sintético ou simplificado, mas bastante comunicante, 
poderia, de forma ampliada, ser assim feito: minha intenção neste texto é mostrar que a 
tarefa do ensinante, que é também aprendiz, sendo prazerosa é igualmente exigente. 
Exigente de seriedade, de preparo científico, de preparo físico, emocional, afetivo. É 
uma tarefa que requer de quem com ela se  compromete um gosto especial de querer 
bem não só aos outros, mas ao próprio processo que ela implica. É impossível ensinar 
sem essa coragem de querer bem, sem a valentia dos que insistem mil vezes antes de 
uma desistência. É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem 
cuidada de amar. Daí que se diga no terceiro bloco do enunciado: Cartas a quem ousa 
ensinar. É preciso ousar, no sentido pleno desta palavra, para falar em amor sem temer 
ser chamado de  piegas,  de  meloso,  de a-científico, senão de anti-científico. É preciso 
ousar para dizer, cientificamente e não  bla-bla-blantemente, que estudamos, 
aprendemos, ensinamos, conhecemos com o nosso corpo inteiro. Com os sentimentos, 
com as emoções, com os desejos, com os medos, com as dúvidas, com a paixão e 
também com a razão crítica. Jamais com,  esta apenas. É preciso ousar para jamais 
dicotomizar o cognitivo 'do emocional É  preciso ousar para ficar ou permanecer 
ensinando por longo tempo nas condições que conhecemos, mal pagos, desrespeitados e 9
resistindo ao risco de cair vencidos pelo cinismo. É preciso ousar, aprender a ousar, para 
dizer  não à burocratização da mente a que nos expomos diariamente. É preciso ousar 
para continuar quando às vezes se pode deixar de fazê-la, com vantagens materiais. 
Nada disso, porém, converte a tarefa de ensinar num que--fazer de seres pacientes, 
dóceis, acomodados, porque portadores de missão tão exemplar que não pode se 
conciliar com atos de rebeldia, de protesto, como greves, por exemplo. A tarefa de 
ensinar é uma tarefa profissional que, no entanto, exige amorosidade, criatividade, 
competência científica mas recusa a estreiteza cientificista, que exige a capacidade de 
brigar pela liberdade sem a qual a própria tarefa fenece. 
O que me parece necessário na tentativa de compreensão crítica do enunciado 
professora, sim; tia, não, se não é opor a professora à tia não é também identificá-las ou 
reduzir a professora à condição de tia. A professora pode ter sobrinhos e por isso é tia 
da mesma forma que qualquer tia pode ensinar, pode ser professora, por isso, trabalhar 
com alunos. Isto não significa, porém, que a tarefa de ensinar transforme a professora
em  tia  de seus alunos da mesma forma como uma  tia  qualquer não se converte em 
professora de seus sobrinhos só por ser tia deles. Ensinar é profissão que envolve certa 
tarefa, certa  militância,  certa especificidade no seu cumprimento enquanto ser  tia  é 
viver uma relação de parentesco. Ser professora implica assumir uma profissão 
enquanto não se é  tia  por profissão. Se pode ser  tio  ou  tia  geograficamente ou 
afetivamente distante dos sobrinhos  mas não se pode ser autenticamente  professora, 
mesmo num trabalho a longa distância, “longe” dos alunos.
O processo de ensinar, que implica o de educar e vice-versa, envolve a “paixão de 
conhecer” que nos insere numa busca prazerosa, ainda que nada fácil. Por isso é que 
uma das razões da necessidade da  ousadia  de quem se quer fazer  professora, 
educadora, é a disposição pela briga justa, lúcida, em defesa de seus direitos como no 
sentido da criação das conceições para a alegria na escola, um dos sonhos de Snyders.
Recusar a identificação da figura do professor com a da tia não significa, de modo 
algum, diminuir ou menosprezar a figura da  tia,  da mesma forma como aceitar a 
identificação não traduz nenhuma valoração à lei. Significa, pelo contrário, retirar algo 
fundamental ì professor: sua responsabilidade profissional de que faz parte a exigência 
política por sua formação permanente. 
A recusa, a meu ver, se deve sobretudo a  duas razões principais. De um lado, 
evitar uma compreensão distorcida da tarefa profissional da  professora,  de outro, 
desocultar a  sombra  ideológica repousando manhosamente na intimidade da falsa 
identificação. Identificar  professora com tia,  o que foi e vem sendo ainda enfatizado, 
sobretudo na rede privada em todo o país, quase como proclamar que  professoras, 
como boas tias, não devem brigar, não devem rebelar-se, não devem fazer greve. Quem                                           
 Esta análise do mote “professora-tia” é mais um capítulo da luta contra a tendência à 
desvalorização profissional representada pelo  hábito, que se cristaliza há cerca de três 
décadas, de transformar a professora num parente postiço. Dentre as discussões levadas 
a efeito sobre esta questão destaco o sério trabalho Professora Primaria – mestra ou tia, 
de Maria Eliana Novaes (Cortez Editora, 1984). 
já viu dez mil  “tias”  fazendo greve, sacrificando seus  sobrinhos,  prejudicando-os no 
seu aprendizado? E essa ideologia que toma o protesto necessário da professora como 
manifestação de seu desamor aos alunos, de sua irresponsabilidade de tias, se constitui 
como ponto central em que se apóia grande  parte das famílias com filhos em escolas 
privadas. Mas também ocorre com famílias de crianças de escolas públicas. 
Me lembro agora de como o então presidente da Associação de Professores do 
Ensino Oficial do Estado de São Paulo – Apeoesp –, professor Gumercindo Milhomem, 
alguns anos passados, respondeu à acusação de famílias de alunos das escolas da rede 
estadual, em greve, num programa de televisão. As famílias acusavam os professores de 
prejudicar seus filhos, descumprindo o seu dever de ensinar, a que Gumercindo 
respondeu que havia um equívoco na acusação. Professoras e professores em greve, 
dizia ele, estavam ensinando, estavam dando a seus alunos, pelo seu testemunho de luta, 
lições de democracia (de que tanto precisamos neste país, acrescento agora). 
É bom deixar claro que, ao falar naquela sombra ideológica, eu não queria dizer, 
de modo algum, que sua presença oculta  na inaceitável identificação tivesse sido 
decidida em alguma reunião secreta de  representantes das classes dominantes que 
tivessem deliberado  minar  a resistência de uma categoria  da classe trabalhadora. Da 
mesma forma como o que há de ideológico no conceito de  evasão escolar  ou no 
advérbio fora na afirmação “há oito milhões de crianças brasileiras fora da escola” não 
significa um ato decidido dos poderosos para  camuflar as situações concretas, de um 
lado, da expulsão das crianças das escolas; de outro, da proibição de que nelas entrem 
as crianças. Na verdade, não há crianças se evadindo das escolas como não há crianças 
fora das escolas como se não estivessem dentro só porque não quisessem, mas crianças 
ora proibidas pelo sistema de entrar nas escolas, ora de nelas permanecer. 
Assim também professora não é tia. 
Mas, se nem sempre as  sombras  ideológicas são deliberada-mente forjadas, 
programadas pelo poder de classe, a sua força opacizante da realidade serve 
indiscutivelmente aos interesses dominantes. A ideologia do poder não apenas opaciza 
a realidade, mas também nos torna míopes, para não ver claramente a realidade. O seu 
poder é domesticante e nos deixa, quando tocados e deformados por ele, ambíguos e 
indecisos. Daí ser fácil entender a observação que jovem professora da rede municipal 
de São Paulo me fez, em conversa recente: “Em que medida certas professoras querem 
mesmo deixar de ser tias  para assumir-se como  professoras  Seu medo à liberdade as 
conduz à falsa paz que lhes parece existir na  situação de  tias,  o que não existe na 
aceitação plena de sua responsabilidade de professoras”.
O ideal será quando, não importa qual  seja a política da administração, 
progressista ou reacionária, as  professoras  se definam sempre como  professoras.  O 
lamentável é que oscilem entre ser bem comportadamente  tias  em administrações 
autoritárias e rebeldemente  professoras  em administrações democráticas. Minha 
esperança é que, experimentando-se livremente em administrações  abertas  terminem 
por guardar o gosto da liberdade, do risco de criar e se vão preparando para assumir--se 
plenamente como  professoras,  como  profissionais  entre cujos deveres se acha o de 
testemunhar a seus alunos e às famílias de seus alunos, o de recusar sem arrogância,                                            
mas com dignidade e energia, o arbítrio e o todo-poderosismo de certos administradores 
chamados  modernos.  Mas o dever de recusar esse todo-poderosismo e esse 
autoritarismo, qualquer que seja a forma  que eles tornem, não isoladamente, na 
qualidade de Maria, de Ana, de Rosália, de Antônio ou de José. 
Esta posição de luta democrática em que as, professoras testemunham a seus 
alunos os valores da democracia lhes coloca três exigências basilares: 
1) jamais transformarem ou entenderem esta como uma 1uta singular, individual, 
por mais que possa haver, em muitos casos, perseguições mesquinhas contra esta ou 
aquela professora por motivos pessoais. 
2) por isso mesmo, estar sempre ao lado de suas companheiras desafiando 
também os órgãos de sua categoria para que dêem o bom combate. 
3) tão importante quanto as outras e que já encerra em si o exercício de um 
direito, exigirem, brigando por sua efetivação, sua formação permanente autêntica – a 
que se funda na experiência de viver a tensão dialética entre teoria e prática. Pensar a 
prática enquanto a melhor maneira de aperfeiçoar a prática. Pensar a prática através de 
que se vai reconhecendo a teoria nela embutida. A avaliação da prática como caminho 
de formação teórica e não como instrumento de mera recriminação da professora. 
A avaliação da prática da professora se impõe por uma si de razões. A primeira 
faz parte da própria natureza da prática, de qualquer prática. Quero dizer o seguinte: 
simplesmente toda prática coloca a seus sujeitos, de um lado, sua programação, de 
outro, sua avaliação permanente. 
Programar e avaliar não são, contudo, momentos separados um à espera do outro. 
São momentos em permanentes relações. 
A programação inicial de uma prática, às vezes, é refeita luz das primeiras 
avaliações que a prática sofre. Avaliar implica, quase sempre, reprogramar, retificar. A 
avaliação, por si mesmo, não se dá apenas no momento que nos parece o ser final de 
certa prática. 
A segunda razão por que a avaliação se impõe está exatamente na necessidade que 
têm os seus sujeitos de, acompanhando passo a passo a ação dando-se, observar se seus 
objetivos estão por ser alcançados. Afinal,  verificar se a prática está levando à 
concretização do sonho por causa do qual estamos praticando. 
Neste sentido, a avaliação da prática é fator importante e indispensável à formação 
da educadora. Quase sempre, lamentavelmente, avaliamos a pessoa da professora e não 
sua prática. Avaliamos para punir e não para melhorar a ação dos sujeitos e não para 
formar. 
Um outro equívoco que cometemos por causa, possivelmente, desse deslocamento 
de foco – em lugar de avaliar para melhor formar, avaliamos para punir – está em que 
em pouco ou quase nada nos preocupa o contexto em que a prática se dará de uma certa 
maneira com vistas aos objetivos que temos. Por outro lado, este equívoco está em 
como mecanicamente pomos a avaliação para o fira do processo. Acontece que o bom 12
começo para unia boa prática seria a avaliação do contexto em que ela se dará. A 
avaliação do contexto significa um reconhecimento do que vem nele ocorrendo, como e 
por quê. Neste sentido, esse pensar crítico sobre o contexto  que implica avaliá-lo, 
precede a própria programação da intervenção  que pretendemos exercer sobre ele, ao 
lado daqueles e daquelas com quem trabalharemos. 
Os  grupos de formação,  em cuja defesa a professora Madalena Freire Weffort 
vem sendo infatigável – grupos de professoras, de diretoras, de coordenadoras 
pedagógicas, de merendeiras, de vigias, de zeladores, de pais e mães – à maneira do que 
realizamos na recente administração da  prefeita Luiza Erundina e não apenas os 
chamados cursos de férias em que, não importa a competência científica dos 
convidados a dar aulas ou conferências, as professoras expõem seu corpo, curiosamente 
ou não ao discurso dos competentes. Discurso que quase sempre se perde por “n” 
razões que já conhecemos. 
Pacoteiros 
É preciso gritar alto que, ao lado  de sua atuação no sindicato, a formação 
científica das professoras iluminada por sua clareza política, sua capacidade, seu gosto 
de saber mais, sua curiosidade sempre desperta são dos melhores instrumentos políticos 
na defesa de seus interesses e de seus direitos. Entre eles, por exemplo, o de recusar o 
papel de puras seguidoras dóceis dos pacotes que sabichões e sabichonas produzem em 
seus gabinetes numa demonstração inequívoca, primeiro de seu autoritarismo; segundo, 
como alongamento do autoritarismo, de sua  absoluta descrença na possibilidade que 
têm as professoras de saber e de criar. 
E o curioso nisso tudo é que, às vezes, os sabichões e as sabichonas que elaboram 
com pormenores seus pacotes chegam a explicitar mas quase sempre deixam implícito 
em seu discurso, que um dos objetivos precípuos dos pacotes, que não chamam assim, é 
possibilitar uma prática docente que forje mentes críticas, audazes e criadoras. E a 
extravagância de uma tal expectativa está exatamente na contradição chocante entre o 
comportamento apassivado da professora, escrava do pacote, domesticada a seus guias, 
limitada na aventura de criar, contida em sua autonomia e na autonomia de sua escola e 
o que se espera da prática dos pacotes: crianças livres, críticas, criadoras. 
Creio que um dos caminhos táticos para  professoras competentes, politicamente 
claras, críticas que, recusando ser tias se afirmam profissionalmente como professoras, 
é desmistificar o autoritarismo dos pacotes e das administrações  pacoteiras,  na 
intimidade de seu mundo, que é também o de seus alunos. Na sala de aula, fechada a 
porta, dificilmente seu mundo é desvendado. 
É por isso que as administrações autoritárias, algumas até dizendo-se avançadas, 
procuram, por diferentes caminhos, introjetar no corpo das gentes o medo à liberdade. 
Quando se consegue isso, a professora guarda dentro de si, hospedada em seu corpo, a 
sombra do dominador, a ideologia autoritária da administração. Não está apenas com 13
seus alunos porque entre ela e eles, vivo e  forte, punitivo e ameaçador, o arbítrio que 
nela habita.
Esta é a forma menos cara de controlar e, em certo sentido, a mais perversa. Mas 
há outra, a que se serve da tecnologia. De seu gabinete, a diretora pode controlar 
ouvindo ou vendo e ouvindo o que dizem e o que fazem as professoras na intimidade de 
seu mundo. 
As professoras sabem que o diretor não pode controlar vinte, cinqüenta, duzentos 
professores ao mesmo tempo, mas não sabem quando lhes cabe a vez de sê-la. Daí a 
necessária inibição. As professoras, em tal situação, viram, para usar expressão ao gosto 
da professora Ana Maria Freire, “corpos interditados”, proibidos de ser. 
Uma das manhas de certos autoritários cujo discurso bem que podia defender que 
professora  é  tia  e, quanto mais bem comportada, melhor para a formação de seus 
sobrinhos,  é a que fala claramente de que a escola é um espaço exclusivo do puro 
ensinar e do puro aprender. De um ensinar e de um aprender tão tecnicamente tratados, 
tão bem cuidados e seriamente defendidos da natureza política do ensinar e do aprender 
que torna a escola os sonhos de quem pretende a preservação do status quo. 
Não sendo neutro o espaço da escola, não significa porém que deva transformarse numa espécie de terreiro de um par-tido no governo. O que, contudo, não é possível 
é negar ao partido no governo a coerência altamente pedagógica, indispensável, entre 
suas opções políticas, suas linhas ideológicas e sua prática governamental. Preferências 
políticas reconhecíveis ou ficando desnudas através das opções de governo, explicitadas 
desde a fase da campanha eleitoral, reveladas nos planos de governo, na proposta 
orçamentária, que é uma peça política e não  só técnica, nas linhas fundamentais de 
educação, de saúde, de cultura, de bem-estar social; na política de tributação, no desejo 
ou não de reorientar a política dos gastos públicos, no gozo com que a administração 
prioriza a boniteza das áreas já bem tratadas da cidade em detrimento das áreas 
enfeiadas da periferia. 
Como, por exemplo, esperar de uma administração que manifesta opção elitista, 
autoritária, que considere, na sua política  educacional, a autonomia elas escolas? Em 
nome da chamada pós-modernidade liberal? Que considere a participação real dos e das 
que fazem a escola, dos zeladores e cozinheiras às diretoras, passando pelos alunos, 
pelas famílias e até pelos vizinhos da escola, na medida em que esta vá se tornando uma 
casa da comunidade? Como esperar de uma administração autoritária, numa secretaria 
qualquer, que governe através de colegiados, experimentando os sabores e os dissabores 
da aventura democrática?                                              
 Como esperar de autoritários e autoritárias a aceitação do desafio ele aprender 
com os outros, de tolerar os diferentes, de viver a tensão permanente entre a paciência e 
a impaciência como esperar do autoritário  ou autoritária que não esteja demasiado 
certos de suas certezas? O autoritário, que se alonga em sectário, vive no ciclo fechado 
de sua verdade em que não admite nem dúvidas em torno dela, quanto mais recusas. 
Um: administração autoritária foge da democracia como o diabo da cruz. 
A continuidade administrativa de cuja  necessidade se ver falando entre nós só 
poderia existir plenamente se, na verdade a administração da coisa pública não estivesse 
envolvida cor sonhos e com a luta para materializá-los. Se a administração da cidade, 
do estado, do país fosse uma coisa neutra; se a administração da coisa pública pudesse 
ser reduzida, em toda a sua extensão, a um puro fazer técnico, fazer que, por sua vez, 
enquanto técnico, pudesse ser neutro. E isso não existe. 
Grandes obras e cidadania 
Vejo nesta discussão dois aspectos centrais. De um lado, a carência entre nós, 
ainda, de uma compreensão mais crítica do  governo, dos partidos, da política, da 
ideologia. Pensa-se, por exemplo, em grande medida, que a administração depende 
totalmente da figura que se elege para a  chefia do Executivo. Dela ou dele tudo se 
espera para a primeira semana de governo. Não se tem uma compreensão do governo 
como totalidade. 
Recentemente me disse amiga minha ter ouvido de seu cabeleireiro, assíduo 
freqüentador do Teatro Municipal, há anos. Estar absolutamente convencido de que 
dificilmente poderia alguém à frente da Secretaria Municipal da Cultura, desde que ela 
existe, se ter a ela entregue de forma mais competente, mais crítica, mais séria do que 
Marilena Chauí a ela se deu. “Não votei, porém, em Suplicy – disse o cabeleireiro de 
minha amiga – porque Erundina, tão petista quanto ele, não fez grandes obras.” 
Para esse homem, amoroso das artes, da dança, da música, da cultura, enfim, nada 
do que foi realizado pela Secretaria da Cultura tinha que ver, primeiro, com Erundina, 
segundo, nada disso podia se arrolar entre grandes obras.
“Encontramos a Secretaria Municipal de Educação – disse recentemente o então 
secretário Mário Sérgio Cortela (fato de que sou testemunho) – com 63% de suas 
escolas deterioradas; algumas tiveram de ser interditadas. Entregamos agora a 
administração com 67% de suas escolas em ótimo estado.” 
Grandes obras seriam apenas viadutos, túneis, praças arborizadas nas zonas felizes 
da cidade. 
O segundo aspecto a que gostaria de referir-me na discussão deste tema é o da 
responsabilidade da cidadania. Será a consciência crítica de nossa responsabilidade 
social e política, enquanto sociedade civil, não para substituir as tarefas do Estado, 
deixando-o dormir em paz, mas aprendendo a mobilizar-nos e a organizar-nos para 
melhor fiscalizar o cumprimento ou o não-cumprimento, por parte do Estado, dos seus 
deveres constitucionais, que nos levará a bom termo no enfrentamento deste problema. 15
Só assim poderemos caminhar no sentido de um amplo diálogo, no seio da sociedade 
civil, juntando legítimas representações suas e os partidos, progressistas e 
conservadores, no sentido de estabelecer-se quais os limites mínimos que poderiam se 
conciliar com contraditórios interesses dos  diferentes segmentos da sociedade. Quer 
dizer, estabelecer os limites dentro dos quais essas diferentes forças político-ideológicas 
se sentiriam em paz para a continuidade da administração pública. 
O que me parece lamentável é que obras materiais ou programas de natureza 
social sejam abandonados exclusiva ou preponderantemente porque o novo 
administrador tem raivas pessoais de seu antecessor. Por isso, então, paralisa o andamento de algo que tinha significação social. 
Por outro lado, não vejo por que, nem como, uma administração que assume o 
governo com discurso e propostas progressistas deva manter, em nome da continuidade 
administrativa, programas indiscutivelmente elitistas e autoritários. 
Às vezes certo discurso neo-liberal critica candidatos e par-tidos de corte 
progressista acusando-os de estarem superados por ideológicos; que o povo já não 
aceita tais discursos, mas os discursos técnicos e competentes. Em primeiro lugar, ¿ã há 
discurso técnico e competente que não seja naturalmente ideológico também. 
Para mim o que o povo recusa, cada vez mais, sobretudo tratando-se de partidos 
progressistas, é a insistência anti-histórica de se comportarem stalir1istamente. Partidos 
progressistas que, perdendo o endereço da História, se comportam de certa forma que 
mais parecem velhas escolas tradicionais dos começos do século, ameaçando e 
suspendendo militantes cujo comportamento não lhes agrada. Essas lideranças não 
percebem que nem sequer podem sobreviver se se conservam  modernas  quanto mais 
tradicionalmente arbitrárias. O que a História lhes exige é que se tornem pós - 
modernamente progressistas. É isto que o  povo espera; é com isto que sonham seus 
eleitores sensíveis e críticos sincronizados com a História. 
Para mim, o que o povo recusa é a discurseira sectária, os slogans envelhecidos e 
o que nem sempre nos vem sendo fácil é perceber que não se pode, em termos críticos, 
esperar um governo popular de um candidato de partido autoritário e elitista. Não creio 
que seja possível superar as razões das distorções a que somos levados na compreensão 
do que é boa política ou má política de gastos públicos a que se acha associada a 
questão do que são  grandes obras  ou não, trabalhando apenas os obstáculos no 
processo de conhecer mais criticamente dados objetivos da realidade. Temos que 
trabalhar os obstáculos ideológicos sem o que não preparamos o caminho para 
lucidamente perceber, por exemplo, que  entre mim e o candidato em quem voto há 
muito mais do que uma relação afetiva ou  de gratidão. Se sou grato a uma pessoa 
reacionária posso e devo manifestar minha gratidão a ela. Mas minha gratidão não pode 
estar envolvida com o interesse público. Se minha utopia, meu sonho, pelo qual luto ao 
lado de tantos outros, são o contrário antagônico do sonho do candidato reacionário não 
posso nele ou nela votar. Minha gratidão  não pode me levar a trabalhar contra meu 
sonho que não é só meu. Não tenho o direito de expô-lo para pagar uma dívida que é só 
minha. 
Votar em A ou B não é uma questão de ajudar A ou D a se eleger, mas delegar a 
alguém, em certo nível de poder político, na democracia, a possibilidade de brigar por 16
um sonho possível. Em nenhuma hipótese,  pois, devo e posso votar em alguém que, 
eleito ou eleita, vai brigar contra meu sonho. 
É incrível que continuemos a votar para o Executivo num candidato progressista 
mas, para o Legislativo, num reacionário simplesmente porque nos ajudou um dia 
usando seu poder. 
Voltemos um pouco à compreensão do que se considera tomo sendo  grandes 
obras. Esta compreensão se acha fortemente marcada pela ideologia dominante. Assim 
como só os que têm poder definem ou perfilam os que não o têm, definem também o 
que é bom gosto, o que é ético, o que é  bonito, o que é bom.  As classes populares, 
subordinadas, ao introjetar a ideologia  dominante, introjetam, obviamente, muitos de 
seus critérios de valor. É preciso porém reconhecer-se que este é um processo dialético 
e não mecânico. Isto significa que as classes populares recusam, às vezes – sobretudo 
quando se acham experimentando-se na luta política em favor de seus direitos e de seus 
interesses – a forma em que as dominantes pretendem submetê-las. Às vezes refazem a 
ideologia dominante com elementos próprios. De qualquer maneira, porém, para muita 
gente popular de verdade,  grandes obras  são o que são para as classes dominantes. 
Avenidas, jardins, embelezamento do que já  está bonito na cidade, túneis, viadutos, 
obras que, indiscutivelmente podendo significar algum interes-se para as classes 
populares, pois que a cidade é uma totalidade, não atendem contudo às necessidades 
prioritárias das classes populares e sim das classes abastadas. 
Não quero sequer sugerir que uma administração progressista, democrática, 
radical, mas jamais sectária, deixe de responder aos desafios com que se debate nas 
áreas ricas da cidade somente porque são  problemas de ricos. Rigorosamente os 
problemas da cidade são problemas da cidade. Atingem, de forma diferente, é certo, 
mas atingem a ricos e a pobres. Mas, o que não é aceitável é que uma administração 
progressista não se sinta no dever indeclinável de hierarquizar os gastos públicos em 
função das reais e gritantes necessidades, muitas delas dramáticas, das populações 
expoliadas. 
Uma administração séria, democrática, progressista, não pode ter dívida entre 
pavimentar quilômetros de ruas, nas áreas  renegadas,  cuidar de córregos, construir 
escolas com que se diminuem os déficits  quantitativos de nossa educação e esses 
déficits não se registram nas áreas felizes do país, tornar a assistência médico-hospitalar 
suficiente quantitativa e crescentemente  melhor, multiplicar o número de creches, 
cuidar da expressão cultural do povo ou embelezar o já bonito, permitindo ainda que os 
ticos não paguem impostos. 
O que tenho pretendido deixar claro, como tese que defendo, é que os partidos 
progressistas ou de esquerda, pois que a direita continua a existir, não podem cair nesse 
conto, o de que as ideologias se acabaram  e, a partir daí, passar a entender a luta 
política como uma disputa sem cor e sem cheiro. Disputa em que só valem a 
competência técnica e a competência para melhor comunicar os objetivos e as metas de 
governo. 
É interessante observar como, nos debates pela televisão  com seu oponente, o 
candidato vitorioso à Prefeitura de São  Paulo, insistia, recentemente, em que só 
propunha “questões de natureza administrativa e não política ou ideológica”. E o fazia 17
revelando um enorme esforço para convencer-se a si mesmo de que as  questões 
administrativas,  castas e puras, intocadas do  ideológico  e do  político,  são realmente 
neutras. 
O grande administrador adequado a esse tipo de astúcia é o que nunca existiu. É o 
que toca no mundo, interfere nele, com a justeza de seu saber técnico tão grande e tão 
puro que comove. É o que tem entre outros poderes o de abolir as classes sociais, o de 
desconhecer que as diferenças entre a existência enquanto ricos e a existência enquanto 
pobres criam, geram, necessariamente, nuns e noutros, formas diferentes de estar sendo, 
gostos e sonhos diferentes, formas de pensar, de atuar, de valorar, de falar diferentes, 
culturas diferentes e que tudo isso tem  que ver com opções políticas, com caminhos 
ideológicos. 
Quanto mais a esquerda se deixe  ninar  por essa cantiga tanto menos 
pedagogicamente atua e menos contribui para a formação de uma cidadania crítica. Daí 
a insistência com que me repito – o erro dos progressistas não está em fazer campanhas 
de conteúdo ideológico. Estas deveriam ser cada vez mais bem feitas deixando claro às 
classes populares que as diferenças de classe – de que  elas têm um conhecimento no 
mínimo sensível, que lhes chega pela pele, pelo corpo, pela alma – não podem ser 
negadas e que as diferenças têm que ver com os projetos políticos, com as metas de 
governo, com a composição deste. Que uma coisa é o discurso eleitoreiro, demagógico 
de um candidato, outra é a sua prática se e quando eleito. Collor se dizia candidato dos 
descamisados e nunca, entre nós, os descamisados ficaram mais desnudos e 
tragicamente perdidos do que no período de descalabros e de despudor de seu governo. 
O erro das esquerdas esteve quase sempre na absoluta certeza em suas certezas 
que as fazia sectárias, autoritárias, religiosas. Na sua convicção de que nada fora delas 
tinha sentido, na sua arrogância, na sua inimizade com a democracia, para elas a melhor 
maneira que tinham as classes dominantes  de implantar e manter sua “ditadura de 
classe”. 
O erro de hoje, ou o risco de corrê-la, está em que, atônitas com o que vem 
ocorrendo a partir das mudanças na ex-União Soviética, ora reativem o medo à 
liberdade, a raiva da democracia, ora se entreguem apáticas ao mito da excelência do 
capitalismo aceitando assim, contraditoriamente, que as campanhas políticas não são 
ideológicas. Há ainda outro erro ou o risco de corrê-la: o de acreditarem na pósmodernidade reacionária  segundo a qual, com a morte das ideologias, o 
desaparecimento das classes sociais, do sonho, da utopia, a administração da coisa 
pública é questão de pura técnica, desvinculada da política e da ideologia. 
Neste sentido, por exemplo, é que se explica que militantes de esquerda até outro 
dia aceitem hoje assessorias de governos antagônicos a suas velhas opções. Se já não há 
classes sociais, se tudo é mais ou menos a mesma coisa, se o mundo é algo opacizado, 
os instrumentos com que operam esse mundo opaco são os não menos cinzentos 
instrumentos técnicos. 
Que as classes dominantes, acreditando nisto ou descrendo disto difundam a 
ideologia da morte das ideologias me parece comportamento ideológico próprio delas. 18
Que uma pessoa ontem progressista se torne reacionária hoje me parece possível ainda 
que lamentável. O que não posso aceitar é que esse deslocamento de um pólo a outro seja visto 
ou dele se fale como quem simplesmente andou, se locomoveu no mesmo plano, pois que já não 
há pólos, nem direita nem esquerda. A caminhada é técnica, sem cheiro, sem cor, sem sabor. 
Isso, não! 
Adocicar-amaciar 
E por que me permita esse aparente desvio do item básico Professora, sim; tia, não? 
Exatamente porque o desvio é puramente fictício. 
A tentativa de reduzir a  professora  à condição de  tia  é uma “inocente” armadilha 
ideológica em que, tentando-se dar a ilusão de adocicar a vida da professora o que se tenta é 
amaciar a sua capacidade de luta ou entretê-la no exercício de tarefas fundamentais. Entre elas, 
por exemplo, a de desafiar seus alunos, desde a mais tenra e adequada idade, através de jogos, 
de estórias, de leituras para compreender a necessidade da coerência entre discurso e prática; 
um discurso sobre a defesa dos fracos, dos pobres, dos descamisados e a prática em favor dos 
cambados e contra os descamisados, um discurso que nega a existência das classes sociais, seus 
conflitos, e a prática política em favor exatamente dos poderosos. 
A defesa ou a pura aceitação de que é normal a profunda diferença que há às vezes, entre 
o discurso do candidato enquanto tal e seu discurso depois de eleito. Não me parece ético viver 
essa contradição ou defendê-la como comportamento carreto. Não é com práticas assim que 
ajudamos a formação de uma cidadania vigilante e indispensável ao desenvolvimento da 
democracia. 
Finalmente a tese de  Professora, sim; tia, não,  é que, enquanto tios e/ou tias e/ou 
professores, todos nós temos o direito ou o dever de lutar pelo direito de ser nós mesmos, de 
optar, de decidir, de desocultar verdades. 
Professora, porém, é professora. Tia é tia. É possível ser tia sem amar os sobrinhos, sem 
gostar sequer de ser tia, mas não é possível ser professora sem amar os alunos – mesmo que 
amar, só, não baste – e sem gostar do que se faz. É mais fácil, porém, sendo professora, dizer 
que não gosta de ensinar, do que sendo tia, dizer que não gosta de ser tia. Reduzir a professora a 
tia joga um pouco com esse temor embutido – o de tia recusar ser tia. 
Não é possível também ser professora sem lutar por seus direitos para que seus 
deveres possam ser melhor cumpridos. Mas, você que está me lendo agora, tem todo o 
direito de, sendo ou pretendendo ser professora, querer ser chamada de tia ou continuar 
a ser. 
Não pode, porém, é desconhecer as implicações escondidas na manha ideológica 
que envolve a redução da condição de professora à de tia. 

Primeira Carta 
Ensinar – aprender Leitura do mundo – leitura da 
palavra 
Nenhum tema mais adequado para constituir-se em objeto desta primeira carta a 
quem ousa ensinar do que a significação crítica desse ato, assim como a significação 
igual-mente crítica de aprender. É que não existe ensinar sem aprender e com isto eu 
quero dizer mais do que diria  se dissesse que o ato de ensinar exige a existência de 
quem ensina e de quem aprende. Quero dizer que ensinar e aprender se vão dando de tal 
maneira que quem ensina aprende, de um  lado, porque reconhece um conhecimento 
antes aprendido e, de outro, porque, observando a maneira como a curiosidade do aluno 
aprendiz trabalha para apreender o ensinando-se, sem o que não o aprende, o ensinante 
se ajuda a descobrir incertezas, acertos, equívocos. 
O aprendizado do ensinante ao ensinar não se dá necessariamente através da 
retificação que o aprendiz lhe faça de erros cometidos. O aprendizado do ensinante ao 
ensinar se verifica na medida em que o ensinante, humilde, aberto, se ache 
permanentemente disponível a repensar o pensado, rever-se em suas posições; em que 
procura envolver-se com a curiosidade dos alunos e os diferentes caminhos e veredas 
que ela os faz percorrer. Alguns desses caminhos e algumas dessas veredas, que a 
curiosidade às vezes quase virgem dos alunos percorre, estão grávidas de sugestões, de 
perguntas, que não foram percebidas antes pelo ensinante. Mas agora, ao ensinar, não 
como um  burocrata da mente,  mas reconstruindo os caminhos de sua curiosidade – 
razão por que seu corpo consciente, sensível, emocionado, se abre às adivinhações dos 
alunos, à sua ingenuidade e à sua criticidade – o ensinante que assim atua tem, no seu 
ensinar, um momento rico de seu aprender. O ensinante aprende primeiro a ensinar, 
mas aprende também ao ensinar algo que é reaprendido por estar sendo ensinado. 
O fato, porém, de que ensinar ensina o ensinante a ensinar um certo conteúdo não 
deve significar, de modo algum, que o ensinante se aventure a ensinar sem competência 
para fazê-lo. Não o autoriza a ensinar o que não sabe. g responsabilidade ética, política 
e profissional do ensinante lhe colocam o dever de se preparar, de se capacitar, de se 
formar antes mesmo de iniciar sua atividade docente. Esta atividade exige que sua 
preparação, sua capacitação, sua formação se tornem processos permanentes. Sua 
experiência docente', se bem percebida e bem vivida, vai deixando claro que ela requer 
uma formação permanente do ensinante. Formação que se funda na análise crítica de 
sua prática. 
Partamos da experiência de aprender, de conhecer, por parte de quem se prepara 
para a tarefa docente, que envolve necessariamente  estudar.  Obviamente, minha 
intenção não é escrever prescrições que  devam ser rigorosamente seguidas, o que 
significaria uma chocante contradição com tudo o de que falei até agora. Pelo contrário, 
o que me interessa aqui, de acordo com o espírito mesmo deste livro, é desafiar seus 
leitores e leitoras em torno de certos pontos ou aspectos, insistindo em que há sempre 
algo diferente a fazer na nossa cotidianidade educativa, quer dela participemos como 
aprendizes, e portanto ensinantes, ou como ensinantes e, por isso, aprendizes também. 20
Não gostaria, assim, sequer, de dar a impressão de estar deixando absolutamente 
clara a questão do  estudar,  do  ler,  do  observar,  do  reconhecer  as relações entre os 
objetos para conhecê-los.  Estarei tentando clarear alguns dos pontos que merecem 
atenção nossa na compreensão crítica desses processos. 
Comecemos por  estudar,  que envolvendo o  ensinar  do ensinante, envolve 
também de um lado, a aprendizagem anterior e concomitante de quem ensina e a 
aprendizagem do aprendiz que se prepara para ensinar amanhã ou refaz seu saber para 
melhor ensinar hoje, ou, de outro lado, aprendizagem de quem, criança ainda, se acha 
nos começos de sua escolarização. 
Enquanto preparação do sujeito para aprender, estudar é, em primeiro lugar, um 
que - fazer crítico, criador, recriador, não importa que eu nele me engaje através da 
leitura de um texto que trata ou discute um certo conteúdo que me foi proposto pela 
escola  ou se o realizo partindo de uma reflexão crítica sobre um certo acontecimento 
social ou natural e que, como necessidade da própria reflexão, me conduz à leitura de 
textos que minha curiosidade e minha experiência intelectual me sugerem ou que me 
são sugeridos por outros. 
Assim, ao nível de uma posição crítica, a que não dicotomiza o saber do senso 
comum do outro saber, mais sistemático, de maior exatidão, mas busca uma síntese dos 
contrários, o ato e estudar implica sempre o de ler mesmo que neste não se esgote. De 
ler o mundo, de ler a palavra e assim ler a leitura do mundo anteriormente feita. Mas ler 
não é puro entretenimento nem tampouco um exercício de memorização mecânica de 
certos trechos do texto. 
Se, na verdade, estou estudando, estou  lendo seriamente, não posso ultrapassar 
uma página se não consegui com relativa clareza, ganhar sua significação. Minha saída 
não está em memorizar porções de períodos lendo mecanicamente duas, três, quatro 
vezes pedaços do texto fechando os olhos e  tentando repeti-las como se sua fixação 
puramente maquinal me desse o conhecimento de que preciso. 
Ler é uma operação inteligente, difícil, exigente, mas gratificante. Ninguém lê ou 
estuda autenticamente se não assume, diante do texto ou do objeto da curiosidade a 
forma crítica de ser ou de estar sendo sujeito da curiosidade, sujeito da leitura, sujeito 
do processo de conhecer em que se acha. ler é procurar ou buscar criar a compreensão 
do lido; daí, entre outros pontos fundamentais, a importância do ensino carreto da 
leitura e da escrita. É que ensinar a ler é engajar-se numa experiência criativa em torno 
da compreensão. Da compreensão e da comunicação. E a experiência da compreensão 
será tão mais profunda quanto sejamos nela capazes de associar, jamais dicotomizar, os 
conceitos emergentes na  experiência escolar  aos que resultam do mundo da 
cotidianeidade. Um exercício crítico sempre exigido pela leitura e necessariamente pela 
escrita é o de como nos darmos facilmente à passagem da  experiência sensorial  que 
caracteriza a cotidianeidade à  generalização? O  que se opera na linguagem escolar e 
desta ao concreto tangível. Uma das formas de realizarmos este exercício consiste na 
prática a que me venho referindo como “leitura da leitura anterior do mundo”, 
entendendo-se aqui como “leitura do mundo” a “leitura”  que precede a leitura da 
palavra e que perseguinc1o igualmente a compreensão do objeto se faz no domínio da 
cotidianeidade. A leitura da palavra, fazendo-se também em busca da compreensão do 
texto e, portanto, dos objetos nele referidos,  nos remete, agora, à leitura anterior do 21
mundo. O que me parece fundamental deixar claro é que a leitura do mundo que é feita 
a partir da experiência sensorial não basta. Mas, por outro lado, não pode ser 
desprezado como inferior pela leitura feita a partir do mundo abstrato dos conceitos que 
vai da generalização ao tangível. 
Certa vez, uma alfabetizanda nordestina discutia, em seu círculo de cultura, uma 
codificação  que representava um homem que, trabalhando o barro, criava com as 
mãos, um jarro. Discutia--se, através da “leitura” de uma série de codificações que, no 
fundo, são representações da realidade concreta, o que é cultura. 
O conceito de cultura já havia sido apreendido pelo grupo através do esforço da 
compreensão que caracteriza a leitura do mundo e/ ou da palavra. Na sua experiência 
anterior, cuja memória ela  guardava no seu corpo, sua  compreensão  do processo em 
que o homem, trabalhando o barro, criava o jarro, compreensão gestada sensorialmente, 
lhe dizia que fazer o jarro era uma forma de trabalho com que, concretamente, se 
sustentava. Assim como o jarro era apenas o objeto, produto do trabalho que, vendido, 
viabilizava sua vida e a de sua família. 
Agora, ultrapassando a experiência sensorial, indo mais além dela, dava um passo 
fundamental: alcançava a capacidade de  generalizar  que caracteriza a “experiência 
escolar”. Criar o jarro com o trabalho transformador sobre o barro não era apenas a 
forma de sobreviver, mas também de fazer  cultura,  de fazer  arte.  Foi por isso que, 
relendo sua leitura anterior do mundo e dos que-fazeres no mundo, aquela alfabetizanda 
nordestina disse segura e orgulhosa: “Faço cultura. Faço isto.” 
Noutra ocasião presenciei experiência semelhante do ponto de vista da 
inteligência do comportamento das pessoas. Já me referi a este fato em outro trabalho 
mas não faz mal que o retome agora. 
Me achava na Ilha de São Tomé, na  África Ocidental, no Golfo da Guiné. 
Participava com educadores e educadoras  nacionais, do primeiro curso de formação 
para alfabetizadores. 
Havia sido escolhido pela equipe  nacional um pequeno povoado, Porto Mont, 
região de pesca, para ser o centro das atividades de formação. Havia sugeric1o aos 
nacionais que a formado dos educadores e educadoras se fizesse não seguindo certos                                              
 Sobre codificação, leitura do mundo-leitura da palavra-senso comum-conhecimento 
exato, aprender, ensinar, ver: métodos tradicionais que separam pratica de teoria. Nem tampouco através de nenhuma forma de trabalho essencialmente dicotomizante de teoria e prática e que ou 
menospreza a teoria, negando-lhe qualquer importância, enfatizando exclusivamente a 
prática, a única a valer, ou negando a prática  fixando-se só na teoria. Pelo contrário, 
minha intenção era que, desde o começo do curso, vivêssemos a relação contraditória 
entre prática e teoria, que será objeto de análise de uma de minhas cartas. 
Recusava, por isso mesmo, uma forma de trabalho em que fossem reservados os 
primeiros momentos do curso para exposições ditas teóricas sobre matéria fundamental 
da formação dos futuros educadores e educadoras. Momento para discursos de algumas 
pessoas, as consideradas mais capazes para falar aos outros. 
Minha convicção era outra. Pensava numa forma de trabalho em que, numa única 
manhã, se falasse de alguns conceitos-chave – codificação, decodificação, por exemplo 
– como se estivéssemos num tempo de  apresentações,  sem, contudo, nem de longe 
imaginar que as apresentações de certos conceitos fossem já suficientes para o domínio 
da compreensão em torno deles. A discussão crítica sobre a prática em que se 
engajariam é que o faria. 
Assim, a idéia básica, aceita e posta em prática, é que os jovens que se 
preparariam para a tarefa de educadoras e educadores populares deveriam coordenar a 
discussão em torno de codificações num círculo de cultura com 25 participantes. Os 
participantes do círculo de cultura estavam cientes de que se tratava de um trabalho de 
formação de educadores. Discutiu-se com eles antes sua tarefa política – a de nos ajudar 
no esforço de formação, sabendo que iam trabalhar com jovens em pleno processo de 
sua formação. Sabiam que eles assim como os jovens a serem formados jamais tinham 
feito o que iam fazer. A única diferença que  os marcava é que os participantes liam 
apenas o mundo enquanto os jovens a serem formados para a tarefa de educadores liam 
já a palavra também. Jamais, contudo, haviam discutido uma codificação assim como 
jamais haviam tido a mais mínima experiência alfabetizando alguém. 
Em cada tarde do curso com duas horas de trabalho com os 25 participantes, 
quatro candidatos assumiam a direção dos  debates. Os responsáveis pelo curso 
assistiam em silêncio, sem interferir, fazendo suas notas. No dia seguinte, no seminário 
de avaliação e formação, de quatro horas, se discutiam os equívocos, os erros, os 
acertos dos candidatos, na presença do grupo inteiro, desocultando-se com eles, a teoria 
que se achava na sua prática. 
Dificilmente se repetiam os erros e os equívocos que haviam sido cometidos e 
analisados. A teoria emergia molhada da prática vivida. 
Foi exatamente numa das tardes de formação que, durante a discussão de uma 
codificação que retratava Porto Mont, com suas casinhas alinhadas à margem da praia, 
em frente ao mar, com um pescador que deixava seu barco com um peixe na mão, que 
dois dos participantes, como se houvessem  combinado, se levantaram, andaram até a 
janela da escola em que estávamos e olhando Porto Mont lá longe, disseram, de frente 
novamente para a codificação que representava o povoado: “É. Porto Mont é assim e 
não sabíamos.” 
Até então, sua “leitura” do lugarejo, de seu mundo particular, uma “leitura” feita 
demasiado próxima do “texto”, que era o contexto do povoado, não lhes havia 
permitido  ver  Porto Mont como ele era. Havia uma certa “opacidade” que cobria e 
encobria Porto Mont. A experiência que  estavam fazendo de “tomar distância” do 
objeto, no caso, da codificação de Porto Mont, lhes possibilitava uma nova leitura mais 
fiel ao “texto”, quer dizer, ao contexto de Porto Mont. A “tomada de distância” que a 
“leitura” da codificação lhes possibilitou os  “aproximou”  mais de Porto Mont como 
“texto” sendo lido. Esta nova leitura refez a leitura anterior, daí que hajam dito: “É. 
Porto Mont é assim e não sabíamos.” Imersos na realidade de seu pequeno mundo, não 
eram capazes de vê-la. “Tomando distância” dela, emergiram e, assim, a viram como 
até então jamais a tinham visto. 
Estudar é desocultar, é ganhar a  compreensão mais exata do objeto, é perceber 
suas relações com outros objetos. Implica que o estudioso, sujeito do estudo, se 
arrisque, se aventure, sem o que não cria nem recria. 
Por isso também é que ensinar não pode ser um puro processo, como tanto tenho 
dito, de transferência de conhecimento da ensinante ao aprendiz. Transferência 
mecânica de que resulte a memorização maquinal que já critiquei. Ao estudo crítico 
corres-ponde um ensino igualmente crítico  que demanda necessariamente uma forma 
crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo, leitura do 
texto e leitura do contexto. 
A forma crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do 
mundo está, de um lado, na não negação da linguagem simples, “desarmada”, ingênua, 
na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianeidade, no 
mundo da experiência sensorial; de outro, na  recusa  ao que se chama de “linguagem 
difícil”, impossível, porque desenvolvendo-se em torno de conceitos abstratos. Pelo 
contrário, a forma crítica de compreender e de realizar a leitura do texto e a do contexto 
não exclui nenhuma das duas formas de linguagem ou de sintaxe. Reconhece, todavia, 
que o escritor que usa a linguagem científica, acadêmica, ao dever  procurar tornar-se 
acessível, menos fechado, mais claro, menos difícil, mais simples, não pode ser 
simplista. 
Ninguém que lê, que estuda, tem o direito de abandonar a leitura de um texto 
como difícil porque não entendeu o  que significa, por exemplo, a palavra 
epistemologia. 
Assim como um pedreiro não pode prescindir de um conjunto de instrumentos de 
trabalho, sem os quais não levanta as paredes da casa que está sendo construída, assim 
também o leitor estudioso precisa de instrumentos fundamentais sem os quais não pode 
ler ou escrever com eficácia. Dicionários, entre eles o etimológico, o de regimes de 
verbos, o de regimes de substantivos e adjetivos, o filosófico, o de sinônimos e de 
antônimos, enciclopédias. A leitura comparativa de texto, de outro autor que trate o 
mesmo tema cuja linguagem seja menos complexa.                                                
 Usar esses instrumentos de trabalho não é como às vezes se pensa, uma perda de 
tempo. O tempo que eu uso, quando leio ou escrevo ou escrevo e leio, na consulta de 
dicionários e enciclopédias, na leitura de capítulos, ou trechos de livros que podem me 
ajudar na análise mais crítica de um tema é tempo fundamental de meu trabalho, de 
meu ofício gostoso de ler ou de escrever. 
Enquanto leitores, não temos o direito de esperar, muito menos de exigir, que os 
escritores façam sua tarefa, a de escrever, e quase a nossa, a de compreender o escrito, 
explicando a cada passo, no texto ou numa nota ao pé da página, o que quiseram dizer 
com isto ou aquilo. Seu dever, como escritores, é escrever simples, escrever  leve,  é 
facilitar e não dificultar a compreensão do leitor, mas não dar a ele as coisas feitas e 
prontas. 
A compreensão do que se está lendo, estudando, não estala assim, de repente, 
como se fosse um milagre. A compreensão  é trabalhada, é forjada, por quem lê, por 
quem estuda que, sendo sujeito dela, se deve instrumentar para melhor fazê-la. Por isso 
mesmo, ler, estudar,  é um trabalho paciente, desafinar, persistente. Não é tarefa para 
gente demasiado apressada ou pouco humilde que, em lugar de assumir suas 
deficiências, as transfere para o autor ou autora do livro, considerado como impossível 
de ser estudado. 
É preciso deixar claro, também, que há  uma relação necessária entre o nível do 
conteúdo do livro e o nível da atual formação do leitor. Estes níveis envolvem a 
experiência intelectual do autor e do leitor. A compreensão do que se lê tem que ver 
com essa relação. Quando a distância entre aqueles níveis é demasiado grande, quando 
um não tem nada que ver com o outro, todo esforço em busca da compreensão é inútil. 
Não está havendo, neste caso, uma consonância entre o indispensável tratamento dos 
temas pelo autor do livro e a capacidade de apreensão por parte do leitor da linguagem 
necessária àquele tratamento. Por, isso mesmo é que estudar é urna preparação para 
conhecer, é um exercício paciente e impaciente de quem, não pretendendo tudo de uma 
vez, luta para fazer a vez de conhecer. 
A questão do uso necessário de instrumentos indispensáveis à nossa leitura e a 
nosso trabalho de escrever levanta o problema do poder aquisitivo do estudante e das 
professoras e professores em face dos custos elevados para obter dicionários básicos da 
língua, dicionários filosóficos etc. Poder consultar todo esse material é um direito que 
têm alunos e professoras a que corresponde o dever das escolas de fazer-lhes possível a 
consulta, equipando ou criando suas bibliotecas, com horários realistas de estudo. 
Reivindicar esse material é um direito e um dever de professores e estudantes. 
Gostaria de voltar a algo a que fiz referência anteriormente: a relação entre ler e 
escrever, entendidos como processos que  não podem separar-se. Como processos que 
se devem organizar de tal modo que ler e escrever sejam percebidos como necessários 
para algo, como sendo alguma coisa de que a criança, como salientou Vygotsky, 
necessita e nós também.                    
 Em primeiro lugar, a oralidade precede a grafia, mas a traz em si desde o primeiro 
momento em que os seres humanos se tornaram socialmente capazes de ir exprimindose através de símbolos que diziam algo  de seus sonhos, de seus medos, de sua 
experiência social, de suas esperanças, de suas práticas. 
Quando aprendemos a  ler,  o fazemos sobre a escrita de alguém que antes 
aprendeu a ler e a escrever. Ao aprender a ler nos preparamos para imediatamente 
escrever a fala que socialmente construímos. 
Nas culturas letradas, sem ler e sem escrever, não se pode estudar, buscar 
conhecer, apreender a substantividade do objeto, reconhecer criticamente a razão de ser 
do objeto. 
Um dos equívocos que cometemos está em dicotomizar ler de escrever e, desde o 
começo mesmo da experiência em que as crianças ensaiam seus primeiros passos na 
prática da leitura e da escrita tomarmos esses processos como algo desligado do 
processo geral de conhecer. Essa dicotomia entre ler e escrever nos acompanha sempre, 
como estudantes e professores. “Tenho uma dificuldade enorme de fazer minha 
dissertação. Não  sei escrever”, é a afirmação comum que se ouve nos cursos de pósgraduação de que tenho participado. No fundo, isso lamentavelmente revela o quanto 
nos achamos longe de uma compreensão crítica do que é estudar e do que é ensinar. 
É preciso que o nosso corpo, que socialmente vai se tornando atuante, consciente, 
falante, leitor e “escritor” se aproprie critica-mente de sua forma de vir sendo que faz 
parte de sua natureza, histórica e socialmente constituindo-se. Quer dizer, é necessário 
que não apenas nos demos conta de  como estamos sendo mas nos assumamos 
plenamente, como estes “seres programados para aprender”, de que nos fala François 
Jacob
 É necessário então que aprendamos a aprender, vale dizer, que entre outras 
coisas, demos à linguagem oral e escrita, a seu uso, a importância que lhe vem sendo 
cientificamente reconhecida. 
Aos que estudamos, aos que ensinamos e, por isso, estuda-mos também, se nos 
impõe, ao lado da necessária leitura de textos, a redação de notas, de fichas de leitura, a 
redação de pequenos textos sobre as leituras que fazemos. A leitura de bons escritores, 
de bons romancistas, de bons poetas, dos  cientistas, dos filósofos que não temem 
trabalhar sua linguagem à procura da boniteza, da simplicidade e da clareza.
Se nossas escolas, desde a mais tenra idade de seus alunos se entregassem ao 
trabalho de estimular neles o gosto da leitura e o da escrita, gosto que continuasse a ser 
estimulado durante todo o tempo de sua escolaridade, haveria possivelmente um 
número bastante menor de pós-graduandos falando de sua insegurança ou de sua 
incapacidade de escrever. 
Se estudar para nós não fosse quase sempre um  fardo,  se ler não fosse uma 
obrigação amarga a cumprir, se, pelo contrário, estudar e ler fossem fontes de alegria e                                           de prazer, de que resulta também o indispensável conhecimento com que nos movemos 
melhor no mundo, teríamos índices melhor reveladores da qualidade de nossa 
educação. 
Este é um esforço que deve começar na pré-escola, intensificar-se no período da 
alfabetização e continuar sem jamais parar. 
A leitura de Piaget, de Vygotsky, de Emilia Ferreiro, de Madalena F. Weffort, 
entre outros, assim como a leitura de especialistas que tratam não propriamente da 
alfabetização mas do processo de leitura como Marisa Lajolo e Ezequiel T. da Silva é 
de indiscutível importância. 
Pensando na relação de intimidade entre pensar, ler e escrever e na necessidade 
que temos de viver intensamente essa relação, sugeriria a quem pretenda rigorosamente 
experimentá-la que, pelo menos, três vezes por semana, se entregasse à tarefa de 
escrever algo. Uma nota sobre uma leitura, um comentário em torno de um 
acontecimento de que tomou conhecimento pela imprensa, pela televisão, não importa. 
Uma carta para destinatário inexistente.  É interessante datar os pequenos textos e 
guardá-los e dois ou três meses depois submetê-los a uma avaliação crítica. 
Ninguém escreve se não escrever, assim como ninguém nada se não nadar. 
Ao deixar claro que o uso da linguagem escrita, portanto o da leitura, está em 
relação com o desenvolvimento das condições materiais da sociedade, estou 
sublinhando que minha posição não é idealista. 
Recusando qualquer interpretação  mecanicista  da  História,  recuso igualmente a 
idealista.  A primeira reduz a consciência à pura  cópia das estruturas materiais da 
sociedade; a segunda submete tudo ao todo-poderosismo da consciência. Minha posição 
é outra. Entendo que estas relações entre consciência e mundo são dialéticas.
O que não é carreto, porém, é esperar que as transformações materiais se 
processem para que depois comecemos a encarar corretamente o problema da leitura e 
da escrita. 
A leitura crítica dos textos e do mundo tem que ver com a sua mudança em 
processo.
Segunda carta 
Não deixe que o medo do difícil paralise você 
Creio que o melhor ponto para começar é considerar a questão da dificuldade, a 
questão do difícil, em face de que o medo se situa. 
Diz-se de alguma coisa que é difícil  quando enfrentá-la ou lidar com ela se faz 
algo penoso, quer dizer, quando apresenta obstáculo de algum nível. “Medo”, define o 
Dicionário Aurélio, é um “sentimento de inquietação ante a noção de um perigo real ou 
imaginário”. Medo de enfrentar a tempestade. Medo da solidão. Medo de não poder 
contornar as dificuldades para, finalmente, entender um texto. 
Há sempre uma relação entre medo e dificuldade, medo e  difícil.  Mas, nesta 
relação, obviamente, se acha também a figura do sujeito que tem medo do difícil ou da 
dificuldade. Sujeito que teme a tempestade, que teme a solidão ou que teme não poder 
contornar as dificuldades para finalmente entender o texto, ou produzir a inteligência do 
texto. 
Nesta relação entre o sujeito que teme a situação ou o objeto do medo  há ainda 
outro elemento componente que é o sentimento de  insegurança  do sujeito temeroso. 
Insegurança para enfrentar o obstáculo. Falta de força física, falta de equilíbrio 
emocional, falta de competência científica, real ou imaginária, do sujeito. 
A questão que se coloca não é, de um lado, negar o  medo,  mesmo quando o 
perigo que o gera é fictício. O medo, porém, em si é concreto. A questão que se 
apresenta é não permitir que o medo facilmente nos paralise ou nos persuada de desistir 
de enfrentar a situação desafiante sem luta e sem esforço. 
Diante do medo, seja do que for, é preciso que, primeiro, nos certifiquemos, com 
objetividade, da existência das razões que nos provocam o medo. Segundo, se 
existentes, realmente, compará-las com as possibilidades de que dispomos para 
enfrentá-las com probabilidade de êxito. Terceiro, o que podemos fazer para, se for o 
caso, adiando o enfrentamento do obstáculo,  nos tornemos mais capazes para fazê-lo 
amanhã. 
Com estas reflexões quero sublinhar que o difícil ou a dificuldade está sempre em 
relação com a capacidade de resposta do sujeito que, em face do difícil e da avaliação 
de si mesmo quanto à capacidade de resposta, terá mais ou menos  medo  ai nenhum 
medo  ou  medo  infundado ou, reconhecendo que c desafio ultrapassa os limites do 
medo, se afunda no pânico. C pânico é o estado de espírito que paralisa o sujeito em 
face de um desafio reconhecido sem nenhuma dificuldade como absolutamente superior 
a qualquer tentativa de resposta. Tenho medi da solidão e me sinto em  pânico  numa 
cidade açoitada pela violência de um terremoto. 
Gostaria, aqui, de me fixar apenas nas reflexões em torno do  medo  de não 
entender um texto de cuja inteligência necessitamos no processo de conhecimento em 
que estamos envolvidos em nossa formação. O medo paralisante que nos vence antes 
mesmo de tentar, mais energicamente, a compreensão do texto. 28
Se tomo um texto, cuja compreensão devo trabalhar, necessito de saber: 
a) se minha capacidade de resposta está  à altura do desafio, que é o texto a ser 
compreendido 
b) se minha capacidade de resposta está aquém e  
c) se minha capacidade de resposta está além. 
Se está  aquém minha capacidade de resposta, não devo nem posso permitir que 
meu medo de não entender me imobilize e, considerando minha tarefa impossível de ser 
realizada, simplesmente a abandone. Se minha capacidade de resposta se acha aquém 
das dificuldades de compreensão do texto, devo, com a ajuda de alguém e não só do 
professor ou professora que indicou a leitura, procurar superar, pelos menos, algumas 
das limitações que me dificultam a tarefa. Às vezes a leitura de um texto exige alguma 
convivência anterior com outro que nos prepara para um passo mais acima. 
Um dos erros mais funestos que podemos cometer, enquanto estudamos, como 
alunos ou professores, é recuar em face do primeiro obstáculo com que nos 
defrontamos. É o de não assumirmos a responsabilidade que a tarefa de estudar nos 
impõe, como, de resto, qualquer tarefa o faz a quem a deve cumprir. 
Estudar é um que-fazer exigente em cujo processo se dá uma sucessão de dor, 
Que prazer, de sensação de vitórias, de derrotas, de dúvidas e de alegria. Mas estudar, 
por isso mesmo, implica a formação de uma disciplina rigorosa que forjamos em nós 
mesmos, em nosso corpo consciente. Não pode esta disciplina ser doada ou imposta a 
nós por ninguém sem que isto signifique desconhecer a importância do papel do 
educador em sua criação. De qualquer maneira, ou somos sujeitos dela ou ela vira pura 
justaposição a nós. Ou aderimos ao estudo como deleite, ou o assumimos como 
necessidade e prazer ou o estudo é puro fardo e, como tal, o abandonamos na primeira 
esquina. 
Quanto mais assumimos esta disciplina tanto mais nos fortalecemos para superar 
algumas ameaças a ela e, portanto, à capacidade de estudar eficazmente. 
Uma dessas ameaças é, por exemplo, a concessão que fazemos a nós próprios de 
não consultar nenhum instrumento auxiliar de trabalho como dicionários, enciclopédias 
etc. Deve-ríamos incorporar à nossa disciplina intelectual o hábito de consultar estes 
instrumentos a tal ponto que, sem eles, tivéssemos dificuldade para estudar. 
Fugir ao primeiro embate é permitir que o medo de não chegar a bom termo no 
processo de inteligência do texto, nos imobilize. Daí a acusar o autor ou autora de 
incompreensível é um passo. 
Outra ameaça ao estudo sério, que é uma das formas mais negativas de fugir à 
superação das dificuldades que temos e não o texto em si próprio é proclamar a ilusão 
de que estamos entendendo, sem, contudo, pôr à prova nossa afirmação. 29
Não tenho por que me envergonhar pelo  fato de não estar entendendo algo que 
estou lendo. Se, porém, o texto que não estou compreendendo faz parte de uma relação 
bibliográfica tida como fundamental, até para que eu perceba e concorde ou não com 
que é mesmo fundamental, eu tenho de superar as dificuldades e entender o texto. 
Não é exagerado repetir que ler como  estudo, não é passear disponivelmente 
sobre as frases, as sentenças e as palavras do texto sem nenhuma preocupação com 
saber aonde elas nos podem levar. 
Outra ameaça ao cumprimento da tarefa difícil e prazerosa de estudar que resulta 
da falta da disciplina de que falei é a tentação que nos persegue de, durante a leitura, 
largarmos a página impressa e voarmos com a imaginação para bem longe. De repente, 
estamos fisicamente com o livro em frente a nós e o lemos maquinalmente apenas. 
Nosso corpo está aqui, mas o nosso gosto está numa praia tropical distante. Assim, 
realmente, não é possível estudar. 
Temos de estar prevenidos para o fato  de que raramente um texto se entrega 
facilmente à curiosidade do leitor. Por outro lado, não é qualquer curiosidade a que 
penetra ou se adentra na intimidade do texto para desnudar suas verdades, seus 
mistérios, suas inseguranças. Mas, a curiosidade epistemológica – a que, tomando 
distância do objeto, dele se “aproxima” com o ímpeto e o gosto de desvelá-lo. E essa 
curiosidade fundamental ainda não basta.  É preciso que, servindo-nos dela, que nos 
“aproxima” do texto para seu exame, a ele nos demos também ou a ele nos 
entreguemos. Para isso, é necessário que evitemos igualmente outros  medos  que o 
cientificismo  nos inoculou. O  medo,  por exemplo, de nossos sentimentos, de nossas 
emoções, de nossos desejos, o medo de que ponham a perder nossa cientificidade. O 
que eu sei, sei com meu corpo inteiro: com minha mente crítica mas também com meus 
sentimentos, com minhas intuições, com minhas emoções. O que eu não posso é parar 
satisfeito ao nível dos sentimentos, das emoções, das intuições. Devo submeter os 
objetos de minhas intuições a um tratamento sério, rigoroso mas nunca desprezá-los. 
Em última análise, a leitura de um texto é uma transação entre o sujeito leitor e o 
texto, como mediador do encontro cio --.leitor com o autor do texto. É uma composição 
entre o leitor e o autor em que o leitor, esforçando-se com lealdade no sentido  de não 
trair o espírito do autor, “reescreve” o texto. E não é possível fazer isso sem a 
compreensão crítica do texto que, por sua vez, exige a superação do medo de ler e se 
vai dando no processo de criação daquela disciplina intelectual de que falei. 
Insistamos na disciplina referida. Ela tem que ver com a leitura e, por isso mesmo, 
com a escrita. Não é possível ler sem escrever e escrever sem ler.  
Outro aspecto importante e que desafia mais ainda o leitor enquanto “re-criador” 
do texto que lê é que a  compreensão  do texto não se acha depositada, estática, 
imobilizada nas suas páginas à espera de que o leitor a c1esoculte. Se fosse totalmente 
assim, não poderíamos dizer que ler criticamente é “reescrever” o lido. Por isso, falei 
unes na leitura como  composição  entre o leitor e o autor em que a significação mais 
profunda do texto é também criação do leitor. Este ponto nos traz à necessidade da 
leitura também como experiência dialógica, em que a discussão do texto realizada por 
sujeitos leitores esclarece, ilumina e cria a compreensão grupal do lido. No fundo, a 30
leitura em grupo faz emergir diferentes pontos de vista que, expondo-se uns aos outros 
enriquecem a produção da inteligência do texto. 
Das melhores práticas com a leitura que tenho tido no Brasil e fora dele eu citaria 
as que realizei coordenando o grupo de leitura em torno do texto. 
O que tenho observado é que a timidez  em face da leitura ou o próprio medo 
tendem a ser superados e as tentativas de invenção do sentido do texto e não só de sua 
descoberta são liberadas. 
Antes da leitura em grupo, obviamente, corno preparação para ela, cada 
participante faz sua leitura individual. Consulta este ou aquele instrumento auxiliar. 
Estabelece esta ou aquela interpretação de um ou de outro trecho da leitura. O processo 
de criação da compreensão do que se vai lendo vai sendo construído no diálogo entre os 
diferentes pontos de vista em torno do desafio, que é o núcleo significativo do autor. 
Como autor, mais do que satisfeito, eu exultaria se viesse a saber que este texto 
provocara no seus leitores e leitoras algum tipo de leitura comprometida como as sobre 
que venho insistindo no corpo inteiro deste  livro. No fundo, este deve ser o sonho 
legítimo de todo autor – ser lido, discutido, criticado, melhorado, reinventado, por seus 
leitores. 
Voltemos um pouco a este aspecto da leitura crítica segundo o qual o leitor se 
torna ou vai se tornando igualmente produtor da inteligência do texto. O leitor será tão 
mais produtor da compreensão do texto quanto se faça realmente  apreensor  da 
compreensão do autor. Ele produz a inteligência do texto na medida em que ela se torna 
conhecimento que o leitor criou c não conhecimento que lhe foi justaposto pela leitura 
do livro. 
Quando eu apreendo a compreensão do objeto em lugar de memorizar o perfil do 
conceito do objeto, eu conheço o objeto, eu produzo o conhecimento do objeto. Quando 
o leitor alcança criticamente a inteligência cio objeto de que o  autor fala, o leitor 
conhece  a inteligência do texto e se torna co-autor desta inteligência. Não fala dela 
corno quem apenas dela ouviu falar. O leitor trabalhou e retrabalhou a inteligência do 
texto por isso ela não estava lá, imobilizada, à sua espera. Nisto se encontra o difícil e o 
apaixonante do ato de ler. 
Infelizmente, de modo geral, o que se vem fazendo nas escolas é levar os alunos a 
apassivar-se ao texto. Os exercícios de interpretação da leitura tendem a ser quase sua 
cópia oral. A criança cedo percebe que sua imaginação não joga: é quase algo proibido, 
uma espécie de pecado. Por outro lado, sua capacidade cognitiva é desafiada de 
maneira distorcida. Ela não é convidada, de um lado, a reviver imaginativamente a 
estória contada no livro; de outro, a apropriar-se aos poucos, da significação do 
conteúdo do texto. 
Seria certamente através da experiência de recontar a estória, deixando sua 
imaginação, seus sentimentos, seus sonhos e seus desejos livres para criar que a criança 
terminaria por arriscar-se a produzir a inteligência mais complexa dos textos. 31
Nada ou quase nada se faz no sentido de despertar e manter acesa, viva, curiosa, a 
reflexão conscientemente crítica, indispensável à leitura criadora, quer dizer, a leitura 
capaz de desdobrar-se na reescrita do texto lido. 
Essa curiosidade necessária a ser estimulada pela professora ou professor no 
aluno leitor contribui decisivamente para a produção do conhecimento do conteúdo do 
texto que, por sua vez, se torna fundamental para a criação da sua significação. 
É bem verdade que, se o conteúdo da leitura tem que ver com um dado concreto 
da realidade social ou histórica ou da biologia, por exemplo, a interpretação da leitura 
não pode trair o dado concreto. Mas isto  não significa dever  o estudante leitor 
memorizar textualmente o lido e repetir o discurso do autor mecanicamente. Esta seria 
uma “leitura bancária” em que o leitor “comeria” o conteúdo do texto do autor com a 
ajuda do “professor nutricionista”. 
Insisto na indiscutível importância  da educadora no aprendizado da leitura 
indicotomizável da escrita a que os educandos devem entregar-se. A disciplina de 
mapear tematicamente o texto que não deve ser exclusivamente realizada pela 
educadora, mas também pelos educandos, desvelando interações dos temas uns com os 
outros na continuidade do discurso do autor, o chamamento da atenção dos leitores para 
as citações feitas no texto e para o papel  das mesmas, a necessidade de sublinhar o 
momento estético da linguagem do autor,  de seu domínio sobre a linguagem, sobre o 
vocabulário e que implica superar a desnecessária repetição de uma mesma palavra três, 
quatro vezes numa única página do texto. 
Exercício de muita riqueza de que tenho tido notícia, vez ou outra, mesmo que 
não realizado em escolas, é possibilitar a dois ou três escritores, de ficção ou não, falar 
a alunos leitores deles sobre como produziram seus textos. Como lidaram com a 
temática ou com os tramas que envolvem seus temas, como trabalharam sua linguagem, 
como perseguiram a boniteza no dizer, no descrever, no deixar algo em suspenso para 
que o leitor exercite sua imaginação. Como jogam com a passagem de um tempo a 
outro nas suas estórias. Afinal, como os escritores se lêem a si mesmos e como lêem a 
outros escritores. 
É preciso, finalmente, que os educandos, experimentando--se cada vez mais 
criticamente na tarefa de ler e de escrever percebam as tramas sociais em que se 
constitui e se reconstitui a linguagem, a comunicação e a produção do conhecimento. 
Terceira carta  
“Vim fazer o curso do magistério porque não tive 
outra possibilidade” 
A 1guns anos atrás, convidado por um dos cursos de formação do magistério de 
São Paulo para uma conversa com as alunas, ouvi de várias delas a afirmação que dá 
título a esta carta. Mas ouvi também de  muitas outras terem optado pelo curso de 
formação do magistério para, enquanto o faziam, esperar comodamente por um 
casamento. 
Estou absolutamente convencido de que a prática educativa, de que tenho falado e 
a cuja boniteza e importância tenho me referido tanto, também não pode ter para sua 
preparação as razões de ser ou as motivações referidas É possível até que alguns dos 
cursos de formação do magistério venham sendo irresponsavelmente meros “caçaníqueis”, Isto é possível, mas não significa que a prática educativa deva ser uma espécie 
de marquise sob a qual a gente espera a chuva passar. E para passar uma chuva numa 
marquise não necessitamos de formação. 
A prática educativa, pelo contrário, é algo muito sério. Lida-mos com gente, com 
crianças, adolescentes ou adultos. Participamos de sua formação. Ajudamo-los ou os 
preju6icamos nesta busca. Estamos intrinsecamente a eles ligados no seu processo de 
conhecimento. Podemos concorrer com nossa incompetência, má preparação, 
irresponsabilidade, para o seu fracasso. Mas podemos, também, com nossa 
responsabilidade, preparo científico  e gosto do ensino, com nossa seriedade e 
testemunho de luta contra as injustiças, contribuir para que os educandos vão se 
tornando presenças marcantes no mundo. 
Em suma, ainda que não possamos afirmar que aluno de professor incompetente e 
irresponsável é necessariamente incapaz e faltoso de responsabilidade ou que aluno de 
professor competente e sério é automaticamente sério e capaz, devemos assumir com 
honradez nossa tarefa docente, para o que a nossa formação tem que ser levada em 
conta rigorosamente. 
A segunda razão alegada para explicar a opção em favor do curso de formação do 
magistério coincide com, e ao mesmo tempo reforça, a ideologia que reduz a professora 
como profissional à condição de tia. 
Tenho certeza de que um dos saberes indispensáveis à luta das professoras e 
professores é o saber que devem forjar neles, que devemos forjar em nós próprios, da 
dignidade e da importância de nossa tarefa. Sem esta convicção, entramos quase 
vencidos na luta por nosso salário e contra o desrespeito. Obviamente, reconhecer a 
importância de nossa tarefa não significa  pensar que ¿ ela é a mais importante entre 
todas. Significa reconhecer  que ela é fundamental. Algo mais: indispensável à vida 
social. Eu não posso, porém, formar-me para a docência apenas porque não houve outra 
chance para mim, menos ainda, somente porque, enquanto me “preparo”, espero um 
casamento. Com estas motivações, que sugerem mais ou menos o perfil que faço da 
prática educativa, fico nela como quem  passa uma chuva. Daí que, na maioria dos 
casos, possivelmente, não veja por que deva lutar.  33
Daí que não me sinta mal com o esvaziamento de minha profissionalidade e aceite 
ser avô, como muitas companheiras e companheiros aceitam ser tias e tios. 
A necessidade que temos de poder lutar cada vez mais eficazmente em defesa de 
nossos direitos, ele ser competentes e estar convencidos da importância social e política 
de nossa tarefa, reside no fato de que, por exemplo, a indigência de nossos salários não 
depende apenas das condições econômico-financeiras do Estado ou das empresas 
particulares. Tudo isso está muito ligado a uma certa compreensão  colonial  de 
administração, de como lidar com os gastos públicos, hierarquizar as despesas e 
priorizar os gastos. 
É urgente que superemos argumentos como este: “Podemos dar um aumento 
razoável aos procuradores, pensemos agora ao acaso, porque eles são apenas setenta. Já 
não podemos fazer o mesmo com as professoras. Elas são vinte mil”. Não. Isso não é 
argumento. O que quero saber primeiro é se as professoras são importantes ou não são. 
Se seus salários são ou não são insuficientes. Se sua tarefa é ou não é indispensável. E é 
em torno disso que deve insistir esta  luta, difícil e prolongada, e que implica a 
impaciente paciência dos educadores e a  sabedoria política de suas lideranças. É 
importante brigarmos contra as tradições coloniais que nos acompanham. É 
indispensável pelejarmos em defesa da relevância de nossa tarefa, relevância que deve 
aos poucos, mas tão rapidamente quanto possível, fazer parte do conhecimento geral da 
sociedade, do rol de seus conhecimentos óbvios. 
Quanto mais aceitamos ser  tias  e  tios,  tanto mais a sociedade estranha que 
façamos greve e exige que sejamos bem comportados. 
Tanto mais, pelo contrário, a sociedade reconhece a relevância de nosso que-fazer 
quanto mais nos dará apoio. 
É urgente que engrossemos as fileiras da luta pela escola pública neste país. 
Escola pública e popular, eficaz, democrática e alegre com suas professoras e 
professores bem pagos, bem formados e permanentemente formando-se. Com salários 
em distância nunca mais astronáutica, como hoje, frente aos de presidentes e diretores 
de estatais. 
É preciso que façamos deste tema algo tão nacional e fundamental para a presença 
histórica do Brasil no mundo no próximo milênio que inquietemos a bem comportada e 
insensível consciência dos burocratas ensopados, dos pés à cabeça, de idéias coloniais, 
até quando se dizem modernizantes. 
Não é possível que continuemos, nas vésperas da chegada do novo milênio, com 
déficits tão alarmantes em nossa educação, o quantitativo e o qualitativo. Com milhares 
de professores chamados leigos, até em áreas do sul do país, ganhando às vezes menos 
da metade de um salário mínimo. Gente heróica, dadivosa, amorosa, inteligente, mas 
desprezada pelas oligarquias nacionais. 
Não é possível continuarmos, na última década deste milênio, com oito milhões 
de Carlinhos e de Josefas proibidos de ter escola e com outros milhões sendo expulsos 
dela e dele ainda se dizendo que se evadem. 34
Não nos espanta, por exemplo, quando sabemos que “até Independência não havia 
um sistema de instrução” no país Não só não havia sistema de instrução popular como 
as manifestações culturais eram proibidas. Até a chegada da Família Real era proibido 
o estabelecimento de tipografias no país, sol as mais severas penas. 
“Ao ser feita a Independência, a nascente nação via-s mergulhada na mais 
profunda ignorância; o ensino popular então existente não passava 6e umas tantas 
escola salpicadas pelas capitanias. O ensino secundário público era dado nas chamadas 
‘aulas régias’ onde se misturava um ensino estéril e pedante de latim, grego, retórica, 
filosofia racional e moral e coisas semelhantes. O livro era raro e mesmo as pessoas 
mais qualificadas não possuíam hábito ele ler”.  
É preciso acompanharmos a atuação da pessoa em que votamos, não importa se 
para vereador, deputado estadual, federal, prefeito, senador, governador ou presidente; 
vigiar seus passos, gestos, decisões, declarações, votos, omissão, conivência com a 
desvergonha. Cobrar suas promessas, avaliá-los com rigor para neles de novo votar ou 
negar-lhes o nosso voto. Negar-lhes o nosso voto e comunicar-lhes a razão de no: 
posição. Mais ainda, tornar, tanto quanto possível pública, nossa posição. 
Se não fôssemos o país do desperdício de que tornamos ciência quase diariamente 
pela imprensa e pela TV, desperdício pelo desaproveitamento do lixo, desperdício pelo 
desrespeito acintoso à coisa pública, instrumentos de milhões de dólares ao relento ou 
desusados, desperdício pelas obras iniciadas, hospitais, creches, viadutos, passarelas, 
edifícios enormes e um dia paralisadas para, pouco tempo depois, darem a impressão de 
descobertas arqueológicas de velhas civilizações até então sepultadas; desperdício 
milionário com verduras e frutas nos grandes centros de distribuição do país. Valeria a 
pena calcular esse desperdício todo e ver o que com ele, se ele não existisse, se poderia 
fazer no campo da educação. 
Este passado colonial, presente no arbítrio dos poderosos, na''empáfia de 
administradores arrogantes é uma das explicações para o sentimento de impotência, 
para o fatalismo com que reagem muitos de nós. É possível que tudo isso amoleça o 
ânimo de muita professora que, assim, “aceita” ser  tia  em lugar de assumir-se 
profissionalmente. Pode ser isso também  que, em parte, explique a posição de 
professorandas que fazem o curso de preparação para o magistério enquanto “esperam 
um casamento”. 
O que vale contra esse estado de coisas é a luta política organizada, é a superação 
de uma compreensão corporativista ¿ por  parte dos sindicatos, é a vitória sobre as 
posições sectárias,,'‘ é a pressão junto aos partidos progressistas, de linha pós-moderna 
e não de tradicionalismo esquerdista. E não deixar-nos cair num fatalismo que, pior do 
que obstaculizar a solução, reforça o problema. 
É óbvio que problemas ligados à educação, não são apenas problemas 
pedagógicos. São problemas políticos e éticos tanto quanto os problemas financeiros.                                              
Os recentes desfalques descobertos no Fundo de Garantia por Tempo de Serviço 
davam, segundo um sério comentarista da  televisão, para construir 600 mil casas 
populares em todo o país. 
Quando falta dinheiro para um setor mas não falta para outro, a razão está na 
política dos gastos. Falta dinheiro, por exemplo, para tornar a vida da favela menos 
insuportável mas não falta para ligar um bairro rico a outro através de majestoso túnel. 
Isso não é problema tecnológico: é opção política. E isso nos acompanha ao longo da 
História. Em 1852, protestando contra o salário do professor primário, quando assumiu 
pela primeira vez a província do Paraná, o conselheiro Zacarias de Vasconcelos falava 
do absurdo daquele salário: menos de 800 réis diários. Segundo Berlinck: 
“A conseqüência da deficiência das dotações era que o magistério não seduzia. Só 
ia ser professor quem não dava para mais nada, era a sentença repetida por muitos 
presidentes de províncias. Se era urgente valorizar a instrução entre os habitantes do 
Brasil, dificilmente se poderia descobrir processo menos condizente com essa 
finalidade do que a parca remuneração dos professores.”
Creio que os sindicatos dos trabalhadores do ensino deve-riam juntar, à sua 
reivindicação salarial e de melhoria Das condições materiais no exercício da docência, 
uma outra, a longo prazo. A que, esmiuçando a política dos gastos públicos, que inclui 
os descompassos entre o salário dos professores primários e o de outros profissionais, 
analisa também as comissões e gratificações que, após algum tempo, são incorporadas 
ao salário. Seria necessário um sério estudo de política salarial substantivamente 
democrática, não colonial, com que, de um lado, se fizesse justiça ao magistério, de 
outro, se sanassem desigualdades aviltantes. 
Nos anos 50, visitando o Recife, disse  o padre Lebret, cria-dor do movimento 
Economia e Humanismo, que entre as coisas que mais o haviam escandalizado entre 
nós estava a distância alarmante entre  o salário dos aquinhoados e o salário dos 
renegados. Hoje, a disparidade continua.  Não se pode compreender a desproporção 
entre o que recebe um presidente de estatal, independentemente da importância de seu 
trabalho, e o que recebe uma professora de primeiro grau. Professora de cuja tarefa o 
presidente da estatal de hoje necessitou ontem. 
É urgente que o magistério brasileiro seja tratado com dignidade para que possa a 
sociedade esperar dele que atue com eficácia e exigir tal atuação. 
Seríamos, porém, ingênuos se descartássemos a necessidade da luta política. A 
necessidade de esclarecer a opinião pública  sobre a situação do magistério em todo o 
país. A necessidade de comparar os salários de diferentes profissionais e a disparidade 
entre eles. 
É bem verdade que a educação não é a alavanca da trans-formação social, mas 
sem ela essa transformação não se dá. 
Nenhuma nação se afirma fora dessa louca paixão pelo conhecimento, sem que se 
aventure, plena de emoção, na reinvenção constante de si mesma, sem que se arrisque 
criadoramente. 
Nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da 
pesquisa, da tecnologia, do ensino. E tudo isso começa com a pré-escola. 
Quarta carta 
Das qualidades indispensáveis ao melhor 
desempenho de professoras e professores 
progressistas 
Gostaria de deixar claro que as qualidades de que vou falar e que me parecem 
indispensáveis às educadoras e aos educadores progressistas são predicados que vão se 
gerando na sua prática. Mais ainda, são gerados na prática em coerência com a opção 
política, de natureza crítica do educa-dor. Por isso, as qualidades de que falarei não são 
algo com que nascemos ou que encarnamos por decreto ou recebemos de presente. Por 
outro lado, ao serem alinhadas neste texto, não quero atribuir à ordem em que apareçam 
nenhum juízo de valor. Todas são necessárias à prática educativa progressista. 
Começarei pela humildade  que, de modo algum, significa falta de acato a nós 
mesmos, acomodação, covardia. Pelo contrário, a humildade exige coragem, confiança 
em nós mesmos, respeito a nós mesmos e aos outros. 
A humildade nos ajuda a reconhecer esta coisa óbvia: ninguém sabe tudo; 
ninguém ignora tudo. Todos sabemos algo;  todos ignoramos algo. Sem humildade 
dificilmente ouviremos com respeito a quem consideramos demasiadamente longe de 
nosso nível de competência. Mas a humildade que nos faz ouvir o considerado menos 
competente do que nós não é um ato de  condescendência de  nossa parte ou um 
comportamento de quem paga uma promessa feita com fervor: “Prometo a Santa Luzia 
que, se o problema de meus olhos não for algo sério, vou ouvir com atenção os rudes e 
ignorantes pais de meus alunos.” Não. Não é isso. Ouvir com atenção a quem nos 
procura, não importa seu nível intelectual, é dever humano e gosto democrático, nada 
elitista. 
De fato, não vejo como conciliar a adesão ao sonho democrático, a superação dos 
preconceitos, com a postura inumilde, arrogante, na qual nos sentimos cheios de nós 
mesmos. Como ouvir o outro, como dialogar,  se só ouço a mim mesmo, se só vejo a 
mim mesmo, se ninguém que não seja eu mesmo me move ou me comove. Se, humilde, 
não me minimizo nem aceito humilhação, por outro lado, estou sempre aberto a 
aprender e a ensinar. A humildade me ajuda a jamais deixar-me prender no circuito de 
minha verdade. Um dos auxiliares fundamentais da humildade é o bom senso que nos 
adverte estarmos próximos, com certas atitudes, de ir mais além do limite a partir do 
qual nos perdemos. 
A arrogância do “sabe com quem está falando?”, a empáfia do sabichão incontido 
no gosto de fazer conhecido e reconhecido o seu saber, nada disso tem que ver com a 
mansidão,  não com a apatia, do humilde. É que a humildade não floresce na 
insegurança das pessoas, mas na segurança insegura dos cautos. Por isso é que uma das 
expressões da humildade é a segurança insegura, a certeza incerta e não a certeza 
demasiado certa de si mesma. A postura do autoritário, pelo contrário, é sectária. A sua 
é a única verdade que necessariamente deve ser imposta aos demais. É na sua verdade 
que reside a salvação dos demais. O seu saber é “iluminador” da “obscuridade” ou da 
ignorância dos outros, que por isso mesmo devem estar submetidos ao saber e à 
arrogância do autoritário ou da autoritária. 38
Retomo agora a análise do autoritarismo, não importa se dos pais e mães, se das 
professoras ou professores. Autoritarismo frente ao qual podemos esperar nos filhos e 
alunos ora posições rebeldes,  refratárias a quaisquer limites, disciplina ou autoridade, 
mas também apatia, obediência exagerada,  anuência sem crítica ou resistência ao 
discurso do autoritário, renúncia a si mesmo, medo à liberdade. 
Ao dizer que do autoritarismo se pode esperar vários tipos de reação, entendo que, 
felizmente, no domínio do humano as coisas não se dão mecanicamente. Desta forma, é 
possível a certas crianças passar quase ilesas à rigorosidade do arbítrio, o que não nos 
autoriza a jogar com esta possibilidade e a não nos esforçar por ser menos autoritários 
se não por causa do sonho democrático, em nome do respeito do ser em formação de 
nossos filhos e filhas de nossos alunos e alunas. 
Mas é preciso juntar à humildade com que a professora atua e se relaciona com 
seus alunos, uma outra qualidade, a  amorosidade,  sem a qual seu trabalho perde o 
significado. E amorosidade não apenas aos alunos, mas ao próprio processo de ensinar. 
Devo confessar que, sem nenhuma cavilação,  não acredito que, sem uma espécie de 
“amor armado”, como diria o poeta Tiago  de Melo, educadora e educador possam 
sobre-viver às negatividades de seu que-fazer. Às injustiças, ao descaso do poder 
público, expresso na sem-vergonhice dos salários, no arbítrio com que professoras e 
não  tias  que se rebelam e participam de manifestações de protesto através de seu 
sindicato, são punidas mas apesar disso continuam entregues ao trabalho com seus 
alunos. 
É preciso contudo que esse amor seja, na verdade, um “amor armado”, um amor 
brigão de quem se afirma no direito ou no dever de ter o direito de lutar, de denunciar, 
de anunciar. É essa a forma de amar indispensável ao educador progressista e que 
precisa de ser aprendida e vivida por nós. 
Acontece, porém, que a amorosidade de que falo, o sonho pelo qual briga e para 
cuja realização me preparo  permanentemente, exigem que eu invente em mim, na 
minha experiência social, outra qualidade: a coragem  de lutar ao lado da coragem de 
amar. 
A coragem, como virtude, não é algo que se ache fora de mim. Enquanto 
superação do meu medo ela o implica. 
Em primeiro lugar, quando falamos sobre o medo devemos estar absolutamente 
seguros de que estamos falando sobre algo muito concreto. Isto é, o medo nao é uma 
abstração. Em segundo lugar, creio que devemos saber que estamos falando sobre uma 
coisa muito normal. Outro ponto que me vem à mente é que, quando pensamos em 
medo, somos levados a refletir sobre a necessidade de sermos muito claros a respeito 
cìe nossas opções, o que exige certos procedimentos e práticas concretas que são as 
próprias experiências que provocam o medo. 
Na medida em que tenho mais e mais clareza a respeito de minha opção, de meus 
sonhos, que são substantivamente políticos e adjetivamente pedagógicos, na medida em 
que reconheço que, enquanto educador, sou um político, também entendo melhor as 
razões pelas quais tenho medo e percebo  o quanto temos ainda de caminhar para 39
melhorar nossa democracia. É que, ao pôr em prática um tipo de educação que provoca 
criticamente a consciência  do educando necessariamente  trabalhamos contra alguns 
mitos que nos deformam. Ao contestar esses mitos enfrentamos também o poder 
dominante pois que eles são expressões desse poder, de sua ideologia. 
Quando começamos a ser envolvidos por medos concretos, tais como o de perder 
o emprego, o de não ser promovidos, sentimos a necessidade de estabelecer certos 
limites a nosso medo. Antes de tudo, reconhecemos que sentir medo é manifestação de 
que estamos vivos. Não tenho que esconder meus temores. Mas, o que não posso 
permitir é que meu medo me imobilize. Se estou seguro do meu sonho político, com 
táticas que talvez diminuam os riscos que corro, devo prosseguir na luta. Daí, a 
necessidade de comandar meu medo, de  educar  meu medo, de que nasce finalmente 
minha coragem
Por isso é que não posso, de um lado, negar meu medo; de outro, 
abandonar-me a ele. Mas preciso controlá-la e é no exercício desse controle que minha 
coragem necessária vai sendo partejada. 
É por isso que há medo sem coragem,  que é o medo que nos avassala, que nos 
paralisa, mas não há coragem sem medo, que é o medo que, “falando” de nós como 
gente, vem sendo por nós limitado, submetido, controlado. 
Outra virtude é a tolerância. Sem ela é impossível um trabalho pedagógico sério, 
sem ela é inviável uma experiência democrática autêntica, sem ela a prática educativa 
progressista se desdiz. A tolerância não é, porém, posição irresponsável de quem faz o 
jogo do faz-de-conta. 
Ser tolerante não é ser conivente com o intolerável, não é acobertar o desrespeito, 
não é amaciar o agressor, disfarçá-lo. A tolerância é a virtude que nos ensina a conviver 
com o diferente. A aprender com o diferente, a respeitar o diferente. 
Num primeiro momento, falar em tolerância é quase como se estivéssemos 
falando em favor. É como se ser tolerante fosse uma forma cortês, delicada, de aceitar, 
de tolerar a presença não muito desejada de meu contrário. Uma maneira civilizada de 
consentir numa convivência que de fato me repugna. Isso é hipocrisia, não tolerância. 
Hipocrisia é defeito, é desvalor. Tolerância é virtude. Por isso mesmo se a vivo devo 
vivê-la como algo que assumo. Como algo que me faz coerente, primeiro, com o ser 
histórico, inconcluso que estou sendo, segundo, com minha opção político-democrática. 
Não vejo como possamos ser democráticos sem experimentar, como princípio 
fundamental, a tolerância, a convivência com o diferente. 
Ninguém aprende tolerância num clima de irresponsabilidade, no qual não se faz 
democracia. O ato de tolerar implica o clima de estabelecimento de limites, de 
princípios a serem respeitados. Por isso a tolerância não é conivência com o intolerável. 
Sob regime autoritário, em que a autoridade se exacerba ou sob regi-me licencioso, em 
que a liberdade não se limita, dificilmente aprendemos a tolerância. A tolerância requer 
respeito, disciplina, ética. O autoritário, empapado de preconceitos de sexo, de classe, 
de raça, jamais pode ser tolerante se não vencer antes seus preconceitos. É por isso que 
o discurso progressista do preconceituoso, em contraste com sua prática, é um discurso                                           
 falso. É por isso também que o cientificista é igualmente intolerante porque toma ou 
entende a ciência como a verdade última, daí que fora dela nada valha, pois é ela a que 
nos dá a certeza de que não se pode duvidar. Não há como ser tolerantes se estamos 
imersos no cientificismo, o que não nos deve levar à negação da ciência. 
Gostaria agora de agrupar a  decisão,  a  segurança,  a tensão entre  paciência e 
impaciência  e a  alegria de viver  como qualidades a serem cultivadas por nós, se 
educadores ou educadoras progressistas. 
A capacidade de decisão da educadora ou do educador é absolutamente necessária 
a seu trabalho formador. É testemunhando sua habilitação para decidir que a educadora 
ensina a difícil virtude da decisão. Difícil na medida em que decidir é romper para 
optar. Ninguém decide a não  ser por uma coisa contra a outra, por um ponto contra 
outro, por uma pessoa contra outra. Por isso é que toda opção que se segue à decisão 
exige uma criteriosa avaliação no ato de comparar para optar por um dos possíveis 
pólos ou pessoas ou posições. É a avaliação com todas as implicações que ela engendra, 
que me ajuda, finalmente, a optar. 
Decisão é ruptura nem sempre fácil de ser vivida. Mas não é possível existir sem 
romper, por mais difícil que nos seja romper. 
Uma das deficiências de uma educadora é a sua incapacidade de decidir. Sua 
indecisão,  que os educandos entendem como fraqueza moral ou como incompetência 
profissional. A educadora democrática, só  por ser democrática, não pode anular-se; 
pelo contrário, se não pode assumir sozinha a vida de sua classe não pode, em nome da 
democracia, fugir à sua responsabilidade ele tomar decisões. O que não pode é ser 
arbitrária nas decisões que toma. O testemunho, enquanto autoridade de não assumir o 
seu dever, deixando-se tombar na licenciosidade é certamente mais funesto do que o de 
extrapolar os limites de sua autoridade. 
Há muitas ocasiões em que o bom exemplo pedagógico, na direção da 
democracia, é tomar a decisão com os alunos, depois da análise do problema. Em 
outros momentos, em que a decisão a ser tomada deve ser da alçada da educadora, não 
há por que não assumi-la, não há por que omitir-se. 
A indecisão revela falta de segurança, uma qualidade indispensável a quem quer 
que tenha responsabilidade no governo, não importa se de uma classe, de uma família, 
de uma instituição, de uma empresa ou do Estado. 
A  segurança,  por sua vez, demanda competência científica, clareza política e 
integridade ética. 
Não posso estar seguro do que faço se não sei como fundamentar cientificamente 
a minha ação se não tenho pelo menos algumas idéias em torno do que faço, de por que 
faço, para que faço. Se pouco ou nada sei sobre ou a favor de que e de quem, de contra 
que e contra quem faço o que estou fazendo ou  farei. Se não me move em nada, se o 
que faço fere a dignidade das pessoas com quem trabalho, se as exponho a situações 
vexatórias que posso e devo evitar, minha  insensibilidade ética, meu cinismo me 
contra-indicam a encarnar a tarefa do  educador. Tarefa que exige uma forma 
criticamente disciplinada de atuar com que a educadora desafia seus educandos. Forma 
disciplinada que tem que ver, de um lado,  com a competência que a professora vai 41
revelando aos educandos, discreta e humildemente, sem estardalhaços arrogantes; de 
outro, com o equilíbrio com que a educadora exerce sua autoridade – segura, lúcida, 
determinada. 
Nada disso, porém, pode ser concretizado se falta à educadora o gosto da procura 
permanente de justiça. Ninguém pode proibi-la de gostar mais de um aluno, por  n 
razões, do que dos outros. É um direito seu. O que ela não pode é preterir o direito dos 
outros em prol do seu preferido. 
Há outra qualidade fundamental que não pode faltar à educadora progressista e 
que exige dela a sabedoria com que se dê  à experiência de viver a tensão entre a 
paciência  e a  impaciência.  Nem a  paciência  sozinha nem a  impaciência  solitária. A 
paciência  sozinha pode levar a educadora a posições de acomodação, de 
espontaneísmo, com que nega seu sonho democrático. A  paciência  desacompanhada 
pode conduzir ao imobilismo, à inação. A impaciência, sozinha, por outro lado, pode 
levar a educadora ao ativismo cego, à ação  por si mesma, à prática em que não se 
respeitam as necessárias relações entre tática. e estratégia. A paciência isolada tende a 
obstaculizar a consecução dos objetivos da  prática, tornando-a  “tenra”, “macia” e 
inoperante. Na impaciência insulada ameaçamos o êxito da prática que se perde na 
arrogância de quem se julga dono da história. A paciência só, se exaure no puro blá-blá-
blá; a impaciência a sós, no ativismo irresponsável. 
A virtude não está, pois, em nenhuma  delas sem a outra, mas em viver a 
permanente tensão entre elas. Viver e atuar impacientemente paciente, sem jamais se 
dar a uma ou a outra, isoladamente. 
Ao lado desta forma de ser e de atuar, equilibrada, harmoniosa, se impõe outra 
qualidade que venho chamando parcimônia verbal. A parcimônia verbal está implicada 
na assunção da tensão paciência-impaciência. Quem vive a impaciente paciência 
dificilmente, a não ser em casos excepcionais, perde o controle sobre sua fala, 
dificilmente extrapola os limites do discurso ponderado mas enérgico. Quem 
preponderantemente vive a paciência apenas abafa sua legítima raiva que expressa num 
discurso frouxo e acomodado. Quem, pelo contrário, descontroladamente é só 
impaciência tende ao destempero no discurso. O discurso do  paciente  é sempre  bem 
comportado enquanto o discurso do impaciente, de modo geral, vai mais além do que a 
realidade mesma suportaria. 
Ambos estes discursos, o muito controlado como o em nada disciplinado, 
contribuem para a preservação do status quo. O primeiro por estar demasiado aquém da 
realidade; o segundo, por ir mais além do limite suportável. 
O discurso e a prática benevolente do só paciente na classe sugere aos educandos 
que tudo ou quase tudo é possível. Há no ar, uma paciência às portas do inesgotável. O 
discurse nervoso, arrogante, incontrolado, irrealista, sem limite, se acha empapado de 
inconseqüência, de irresponsabilidade. 
Em nada esses discursos ajudam na formação dos educandos. 
Há ainda os que são excessivamente temperados em seu discurso mas, de vez em 
quando, se destemperam. Da só paciência passam inesperadamente para a incontida 42
impaciência, criando um clima de insegurança nos demais, com resultados 
indiscutivelmente péssimos. 
Há um sem-número de mães e pais que se comportam assim. De uma 
licenciosidade em que a fala e a ação são coerentes hoje, mas transformam o dia 
seguinte num universo de desatinos, de discursos e ordens autoritárias que deixam as 
filhas e os filhos estupefatos, mas sobretudo inseguros. A ondulação no comportamento 
dos pais limita nos filhos o equilíbrio emocional de que precisam para crescer. Amar 
não basta, precisamos de saber amar. 
Me parece importante, reconhecendo a incompletude das reflexões em torno das 
qualidades, discutir um pouco a alegria de viver como virtude fundamental da prática 
educativa democrática.
É me dando plenamente à vida e não à morte – o que não significa, de um lado, 
negar a morte, de outro, mitificar a vida – que me entrego, disponivelmente, à alegria 
de viver. E é a minha entrega à alegria de viver, sem que esconda a existência de razões 
para tristeza na vida, que me prepara para estimular e lutar pela alegria na escola. 
É vivendo, não importa se com deslizes, com incoerências, mas disposto a superá-
los, a humildade, a amorosidade, a coragem, a tolerância, a competência, a capacidade 
ele decidir, a segurança, a eticidade, a justiça, a tensão entre paciência e impaciência, a 
parcimônia verbal, que contribuo para criar, para forjar a escola feliz, a escola alegre. 
A escola que é aventura, que marcha, que não tem medo do risco, por isso que recusa o 
imobilismo. A escola em que se pensa, em que se atua, em que se cria, em que se fala, 
em que se ama, se adivinha, a escola que apaixonadamente diz  sim  à vida. E não a 
escola que emudece e me emudece. 
A solução realmente mais fácil para encarar os obstáculos, o desrespeito do poder 
público, o arbítrio da autoridade anti-democrática e a acomodação fatalista em que 
muitos de nós se instalam. 
“Que posso fazer, se é sempre assim? Me chamem professora ou tia eu continuo 
mal paga, desconsiderada, desatendida. Pois que assim seja.” Esta é na verdade a 
posição mais cômoda, mas é também a posição de quem se demite da luta, da História. 
É a posição de quem renuncia ao conflito, sem o qual negamos a dignidade da vida. 
Não há vida nem humana existência sem briga e sem conflito. O conflito
 parteja a nossa consciência. Negá-la é desconhecer os mais mínimos pormenores da experiência 
vital e social. Fugir a ele é ajudar a preservação do status quão. 
Por isso, não vejo outra saída senão a da unidade na diversidade de interesses não 
antagônicos dos educadores e elas educadoras na defesa de seus direitos. Direito à sua 
liberdade docente, direito à sua fala, direito a melhores condições de trabalho 
pedagógico, direito a tempo livre e remunerado para dedicar à sua formação 
permanente, direito ele ser coerente, direito de criticar as autoridades sem medo de 
punição a que corresponde o dever de responsabilizar-se pela veracidade de sua crítica, 
direito de ter o dever de ser sérios, coerentes, de não mentir para sobreviver. 
Para que esses direitos sejam mais do que reconhecidos – respeitados e 
encarnados – é preciso que lutemos. Às vezes, que lutemos ao lado do sindicato e até 
contra ele se sua lide-rança é sectária, de direita ou de esquerda. Mas também às vezes 
é preciso que lutemos enquanto administração progressista contra as raivas 
endemoniadas dos retrógrados, dos tradicionalistas entre os quais alguns se julgam 
progressistas e dos neo-liberais para quem a História parou neles. 
Quinta carta 
Primeiro dia de aula 
Gostaria de entregar-me agora sem  espontaneísmo mas com espontaneidade a 
uma série de problemas com que não apenas a inexperiente professora mas também a já 
veterana, vez ou outra se defronta e a que tem de dar resposta. 
Não que, ao escrever esta carta, passe por minha cabeça ter eu  a resposta  a ser 
dada aos problemas ou às dificuldades  que irei apontando. Não, também, por outro 
lado, que não creia ter alguma sugestão útil a dar, produto de minha experiência e de 
meu conhecimento sistematizado. Se, ao escrever, não só esta carta, mas o livro 
mesmo, me achasse assaltado pela idéia de que possuo a verdade inteira sobre os 
diferentes tópicos discutidos, estaria traindo minha compreensão do processo de 
conhecimento como processo social e inconcluso, como devir. 
Por outro lado, se julgasse não ter nada com que contribuir para a formação de 
quem se prepara para assumir-se como professor e de quem já se acha inserida na 
prática docente, não deveria ter escrito o livro, por infantil. 
Não tenho  a verdade –  este livro  tem verdades  e meu sonho é que elas, 
provocando ou desafiando as posições assumidas por seus leitores, os engajem num 
diálogo crítico que tenha como campo referencial sua  prática,  sua compreensão da 
teoria que a funda e as análises que faço. Jamais escrevi até hoje nenhum livro com a 
intenção de que fosse o seu conteúdo deglutido por seus possíveis leitores ou leitoras. 
Daí que tenha insistido tanto numa das cartas, no indeclinável papel do leitor na 
produção da inteligência do texto. 
Algo mais que gostaria de aclarar: na andarilhagem que farei em torno dos temas 
que tratarei, nas idas e voltas em que os vou pinçando, deverei  voltar a alguns antes 
referidos. Me esforçarei, porém, para, em lugar de redundante, ser esclarecedor. 
Começarei por comentar a situação de quem, pela primeira vez se expõe inteira 
aos alunos. 
Dificilmente este primeiro dia estará  isento de inseguranças, de timidez ou 
inibições, sobretudo se a professora ou o professor, mais do que se pensar inseguro, está 
realmente inseguro, e se sente tocado pelo  medo  de não ser capaz de conduzir os 
trabalhos e de contornar as dificuldades. No fundo, de repente, a situação concreta que 
ela ou ele enfrentam na sala não tem quase nada que ver com as preleções teóricas que 
se acostumaram a ouvir. Às vezes, até que há alguma relação entre o que ouviram e 
estudaram, mas a incerteza demasiado grande que os assalta os deixa aturdidos e 
confusos. Não sabem como decidir. 
De fato, o  medo  é um direito mas a que corresponde o dever de educá-lo, de 
assumi-la para superá-lo. Assumir o medo é não fugir dele, é analisar a sua razão de ser, 
é medir a relação entre o que o causa e a nossa capacidade de resposta. Assumir o medo 
é não escondê-la, somente assim podemos vencê-la. 45
Ao longo de minha vida nunca perdi nada por expor a mim e a meus sentimentos, 
obviamente dentro de certos limites. Em uma situação como esta, creio que, em lugar 
da expressão de uma falsa segurança, em lugar de um discurso que, de tão dissimulado, 
desvela nossa fraqueza, o melhor é enfrentar nosso sentimento. O melhor é dizer aos 
educandos, numa demonstração de que somos humanos, limitados, o que 
experimentamos na hora. É falar a eles sobre o próprio direito do medo, que não pode 
ser negado à figura da educadora ou do educa-dor. Tanto quanto o educando, eles têm 
direito a ter medo. O educador não é um ser invulnerável. É tão gente, tão sentimento e 
emoção quanto o educando. O que o contra-indica, em face ao medo, a ser educador, é 
a incapacidade de lutar para sobrepujar o medo e não o fato de tê-lo ou de senti-lo. O 
medo  de como se sair no seu primeiro dia de  aula diante, muitas vezes, de alunos já 
experimentados e que adivinham a insegurança do professor novato é algo mais do que 
natural. 
Falando de seu medo, de sua insegurança, o educador vai fazendo, de um lado, 
uma espécie de catarse indispensável ao  controle do medo, de outro, vai ganhando a 
confiança dos educandos. Em lugar de  procurar esconder  o medo com disfarces 
autoritários  facilmente reconhecíveis pelos educandos, o professor o manifestou com 
humildade. Falando de seu sentimento,  se revelou e se assumiu como gente. 
Testemunhou o seu desejo de aprender também com os educandos. É óbvio que esta 
postura necessária da educadora em face dos educandos e em função de seu  medo 
requer dela a paz que a humildade lhe dá. Mas requer também, profunda confiança – 
não ingênua, mas crítica – nos outros e uma opção, coerentemente vivida, pela 
democracia. Uma educadora elitista, autoritária, dessas para quem a democracia dá 
sintomas de se deteriorar quando as classes populares começam a encher as ruas com 
seus protestos, jamais entende a humildade de assumir o medo, a não ser como 
covardia. Na verdade, a assunção do  medo  é o começo de sua transformação em 
coragem. 
Outro aspecto fundamental ligado às primeiras experiências docentes das jovens 
professoras e a que as escolas de formação, se não dão, deviam dar imensa atenção é o 
da formação das professorandas para “leitura” da classe de alunos como se esta fosse 
um texto a ser decifrado, a ser compreendido. 
A jovem professora deve estar atenta a tudo, aos mais inocentes movimentos dos 
alunos, à inquietação de seus corpos, ao olhar surpreso, à reação mais agressiva ou mais 
tímida deste aluno ou aluna. 
Os gostos de classe, os valores, a linguagem, a prosódia, a sintaxe, a ortografia, a 
semântica, quando a inexperimentada professora de classe média assume seu trabalho 
em áreas periféricas da cidade, tudo isto é quase sempre tão contraditório que a choca e 
assusta. É preciso, porém, que ela saiba que a sintaxe de seus alunos, sua prosódia, seus 
gostos, sua forma de dirigir-se a ela e a seus colegas, as regras com que brincam o 
brigam entre si, tudo isso faz parte de sua identidade cultural que jamais falta um corte 
de classe. E tudo isso tem de ser acatado para que o próprio educando, reconhecendo-se 
democraticamente respeitado no direito de dizer “menas gente”, possa aprendi a razão 
gramatical dominante por que deve dizer “menos gente”. 
Boa disciplina intelectual para esse exercício de leitura “leitura” da classe como 
se fosse um texto seria a de criar na professora o hábito, que virasse gosto e não pura 46
obrigação, de fazer fichas diárias com o registro do reações comportamentais, com 
anotações diárias com o registro de frases e seu significado ao lado, com gestos não 
claramente reveladores de carinho ou de recusa. E por que não sugerir também aos 
educandos como uma espécie de jogo em que fizessem, em função do domínio de sua 
linguagem, suas observações também em torno do comportamento de seus colegas etc. 
A cada quinze dias se faria uma espécie de seminário avaliativo, com certas conclusões 
que deviam ser aprofundadas e postas em prática. 
Se quatro professoras de uma mesma escola conseguirem fazer um trabalho como 
este com suas classes, podemos imaginar o que se conseguiria de crescimento em todos 
os sentidos entre alunos e professoras. 
Uma observação importante a fazer. Se, para a leitura de textos, necessitamos de 
instrumentos auxiliares de trabalho como dicionários de  vários tipos e  enciclopédias, 
também para a “leitura” das classes, como se fossem textos, precisamos de 
instrumentos menos fáceis de usar. Precisamos, por exemplo, de bem observar, bem 
comparar, bem intuir, bem imaginar, bem liberar nossa sensibilidade, crer nos outros 
mas não demasiado no que pensamos dos outros. Precisamos exercitar a capacidade de 
observar, registrando o que observamos. Mas  registrar não se esgota no puro ato de 
fixar com pormenores o observado tal qual para nós se deu. Significa também arriscarnos a fazer observações críticas e avaliativas a que não devemos contudo, emprestar 
ares de certeza. Todo esse material deve sempre estar sendo estudado e reestudado pela 
professora que o produz e pela sua classe de alunos. A cada estudo e a cada reestudo 
que se faça, em diálogo com os educandos,  ratificações e retificações se vão fazendo. 
Cada vez mais a “classe como texto” vai tendo sua “compreensão” produzida por si 
mesma e pela educadora. E a produção da compreensão atual implica a reprodução da 
compreensão anterior que pode levar  a classe, através do conhecimento do 
conhecimento anterior de si mesma, a um novo conhecimento. 
Não temer os sentimentos, as emoções, os desejos e lidar com eles com o mesmo 
respeito com que nos damos a uma prática cognitiva integrada com eles. Estar 
advertidos e abertos à compreensão das relações entre os fatos, os dados, os objetos na 
compreensão do real. Nada disso pode escapar à tarefa docente da educadora na 
“leitura” de sua classe e com que ela testemunha a seus alunos que sua prática docente 
não se atém apenas ao ensino mecânico dos conteúdos. Mais ainda, que o necessário 
ensino desses conteúdos não pode prescindir do crítico conhecimento das condições 
sociais, culturais, econômicas do contexto dos educandos. 
E é esse conhecimento crítico do contexto dos educandos que  explica, mais do 
que a dramaticidade, a tragicidade com que vive um sem-número deles e delas. 
Tragicidade na qual convivem com a morte muito mais do que com a vida e em que a 
vida passa a ser quase puro pretexto para morrer. 
“Você costuma sonhar?”, perguntou certa vez um repórter de TV a uma criança 
de uns dez anos, bóia-fria, no interior de São Paulo. “Não”, disse a criança espantada 
com a pergunta. “Eu só tenho pesadelo.” 
O mundo afetivo desse sem-número de crianças é roto,  quase esfarelado, 
vidraça estilhaçada. Por isso mesmo essas crianças precisam de professoras e de 47
professores profissionalmente competentes e amorosos e não de puros tios e de 
tias. 
É preciso não ter medo do carinho, não fechar-se à carência afetiva dos seres 
interditados de estar sendo. Só os mal-amados e as mal-amadas entendem a atividade 
docente como um que-fazer de insensíveis, de tal maneira cheios de racionalismo que 
se esvaziam de vida e de sentimentos. 
Creio, pelo contrário, que a sensibilidade em face da dor imposta às classes 
populares brasileiras pelo descaso malvado com que são tratados, nos empurra, nos 
estimula à luta política pela mudança radical do mundo. 
Nada disso é fácil de ser feito e eu não gostaria de dar a impressão aos leitores e 
leitoras de que basta querer para mudar o mundo. Querer é fundamental mas não é 
suficiente. É preciso também saber querer, aprender a saber querer, o que implica 
aprender a saber lutar politicamente com táticas adequadas e coerentes com os nossos 
sonhos estratégicos. O que não me parece possível é nada ou muito pouco fazer diante 
dos descompassos terríveis que nos marcam. E em matéria de contribuir para fazer o 
mundo, o nosso mundo, menos ruim, não temos por que distinguir entre ações modestas 
ou retumbantes. Tudo o que se puder fazer com competência, lealdade, clareza, 
persistência, somando forças para enfraquecer as forças do desamor, do egoísmo, da 
malvadez, é importante. Nesse sentido, é tão válida e necessária a presença atuante de 
um líder sindical numa fábrica, explicando  na madrugada, em frente aos portões da 
empresa, as razões da greve em processo, quanto a indispensável é a prática docente de 
uma professora que, numa escola da periferia, fala a seus alunos sobre o direito de 
defender a sua identidade cultural. O líder operário, no portão da fábrica; a professora, 
na sua escola, têm ambos muito o que fazer. 
Sinto imperiosa necessidade de dizer que, longe de mim, pretender reduzir a 
prática educativa progressista a um esforço puramente político-partidário. O que digo é 
que não pode haver ensinamento de conteúdos como se estes, em si mesmos, fossem 
tudo. 
É necessário que a professora ou o professor deixem voar criadoramente sua 
imaginação, obviamente de forma disciplinada. E isto desde o primeiro dia de aula, 
demonstrando aos alunos a importância da imaginação em nossa vida. A imaginação 
ajuda a curiosidade e a inventividade da mesma forma como aguça a curiosidade e a 
inventividade da mesma forma como aguça a aventura, sem o que não criamos. A 
imaginação naturalmente livre, voando  ou andando ou correndo livre. No uso dos 
movimentos do corpo, na dança, no ritmo, no desenho, na escrita, desde o momento 
mesmo em que a escrita é pré-escrita - é garatuja. Na oralidade, na repetição dos contos 
que se reproduzem dentro de sua cultura. A imaginação, que nos leva a sonhos 
possíveis ou impossíveis, é necessária sempre. É preciso estimular a imaginação dos 
educandos, usa-la no “desenho” da escola com que eles sonham. Por que não por em 
prática, na própria sala, parte da escola com que sonham? Por que, ao discutir a 
imaginação, os projetos, não sublinhar aos educandos os obstáculos concretos, alguns 
por enquanto, intransponíveis para a realização da imaginação? Por que não introduzir 
conhecimentos científicos aos quais direta ou indiretamente se acham ligados retalhos 
da imaginação? Por que não enfatizar o direito a imaginar, sonhar e brigar pelo sonho? 
Porque a imaginação que se entrega ao sonho possível e necessário da liberdade tem de 48
se enfrentar com as forças reacionárias para quem a liberdade lhes pertence como 
direito exclusivo. Afinal, é preciso deixar claro que a imaginação não é exercício de 
gente desligada do real, que vive no ar. Pelo contrário, ao imaginarmos algo, o fazemos 
condicionados precisamente pela carência de nosso concreto. Quando a criança imagina 
uma escola alegre e livre é porque a sua lhe nega liberdade e alegria. 
Até antes de deixar o Recife li vários volumes da literatura de cordel em que os 
poetas exploravam exatamente as carências de seu contexto. 
Nunca esqueço de um daqueles livros que descrevia um “cuscuz” com mais de 
mil metros de altura com que a população de um distrito se banqueteava. Essa não era 
assim uma imaginação louca mas a loucura de uma população faminta. O sonho que 
tomava forma na poesia, de maneira abundante, era a expressão de uma concreta falta. 
Imaginemos agora uma classe que, coma  presença coordenadora, sensível e 
inteligente da professora, imaginasse,  em diálogo, um sistema de princípios 
desciplinares, de regras abrangentes que regulassem a vida em grupo da classe. 
Possivelmente, até com alguns dos princípios  rígidos além da conta. A colocação em 
prática desta “meia constituição” se fundaria num princípio básico – a possibilidade de, 
por maioria, se poder alterar o sistema de  regras. Haveria, naturalmente, mecanismos 
reguladores do funcionamento das regras mas tudo com um decisivo gosto 
democrático. Numa sociedade como a nossa, de tradição tão robustamente autoritária, é 
algo de relevante importância encontrar caminhos democráticos para o estabelecimento 
de limites à liberdade e á autoridade com que evitemos a licenciosidade que nos leva ao 
“deixa como está pra ver como fica” ou ao autoritarismo todo-poderoso. 
A questão da sociabilidade, da imaginação, do sentimentos, dos desejos, do medo, 
da coragem, do amor, do ódio, da pura raiva, da sexualidade, da cognoscitividade nos 
leva a necessidade de fazer uma “leitura” do corpo como se fosse um texto, nas interrelações que compõem o seu todo. 
Leitura do corpo com os educandos, interdisciplinarmente, rompendo dicotomias, 
rupturas inviáveis e deformantes. 
Minha presença no mundo, com o mundo e  com os outros implica o meu 
conhecimento inteiro de mim mesmo. E quanto melhor me conheça nesta inteireza 
tanto mais possibilidade terei de, fazendo História e por ela sendo feito, como ser no 
mundo e com o mundo, a “leitura” de meu corpo como a de qualquer outro humano 
implica a leitura do espaço.
 Neste sentido, o espaço da classe que acolhe os medos, os 
receios, as ilusões, os desejos, os sonhos de professoras e de educandos deve constituirse em objeto de “leitura” de professora e de educandos, como enfatiza Madalena Freire Weffort
 O espaço da classe que se alonga ao do recreio, ao das redondezas da escola, 
ao da escola toda. 
Percebe-se o absurdo do autoritarismo  quando concebe e determina que esses 
espaços todos pertencem por direito às autoridades escolares, aos educadores e 
educadoras, não porque simplesmente sejam gente adulta, pois gente adulta são também 
as cozinheiras, os zeladores, os vigias e são puros servidores destes espaços. Espaços 
que não lhes pertencem como não pertencem aos educandos. É como se os educandos 
estivessem apenas neles, mas não com eles. 
Imaginemos agora uma classe que, com a presença coordenadora, sensível e 
inteligente da professora, imaginasse,  em diálogo, um sistema de princípios 
disciplinares, de regras abrangentes que regulassem a vida em grupo da classe. 
Possivelmente, até com alguns dos princípios  rígidos além da conta. A colocação em 
prática desta “meia constituição” se fundaria num princípio básico – a possibilidade de, 
por maioria, se poder alterar o sistema de  regras. Haveria, naturalmente, mecanismos 
reguladores do funcionamento das regras mas tudo com um decisivo gosto 
democrático. Numa sociedade como a nossa, de tradição tão robustamente autoritária, é 
algo de relevante importância encontrar caminhos democráticos para o estabelecimento 
de limites à liberdade e à autoridade com que evitemos a licenciosidade que nos leva ao 
“deixa como está para ver como fica” ou ao autoritarismo todo-poderoso. 
A questão da sociabilidade, da imaginação, dos sentimentos, dos desejos, do 
medo, da coragem, do amor, do ódio, da pura raiva, da sexualidade, da 
cognoscitividade nos leva à necessidade de fazer uma “leitura” do corpo como se fosse 
um texto, nas inter-relações que compõem o seu todo. 
Leitura do corpo com os educandos, interdisciplinarmente, rompendo dicotomias, 
rupturas inviáveis e deformantes. 
Minha presença  no  mundo,  com  o mundo e  com  os outros implica o meu 
conhecimento inteiro de mim mesmo. E quanto melhor me conheça nesta inteireza 
tanto mais possibilidade terei de, fazendo História, me saber sendo  por ela refeito. E, 
porque fazendo História e por ela sendo feito, como ser no mundo e com o mundo, a 
“leitura” de meu corpo como a de qualquer outro humano implica a leitura do espaço
Neste sentido, o  espaço  da classe que acolhe os medos,  os receios, as ilusões, os 
desejos, os sonhos de professoras e de educandos deve constituir-se em objeto de 
“leitura” de professora e de educandos, como enfatiza Madalena Freire Weffort
O espaço da classe que se alonga ao do recreio, ao das redondezas da escola, ao da escola 
toda. 
Percebe-se o absurdo do autoritarismo  quando concebe e determina que esses 
espaços todos pertencem por direito às autoridades escolares, aos educadores e 
educadoras, não porque simplesmente sejam gente adulta, pois gente adulta são também 
as cozinheiras, os zeladores, os vigias e são puros servidores  destes espaços. Espaços 
que não lhes pertencem como não pertencem aos educandos. É como se os educandos 
estivessem apenas neles, mas não com eles. 
É preciso que a escola progressista, democrática, alegre, capaz, repense toda essa 
questão das relações entre  corpo consciente  e  mundo.  Que reveja a questão da 
compreensão do  mundo,  enquanto produzindo-se historicamente no mundo mesmo e 
também sendo produzida pelos corpos conscientes em suas interações com ele. Creio 
que desta compreensão resultará uma nova maneira de entender o que é ensinar, o que é 
aprender, o que é conhecer de que Vygotsky não pode estar ausente. 
Sexta carta  
Das relações entre a educadora e os educandos 
Passo a me centrar na análise das relações entre educadora-. e educandos. Elas 
incluem a questão do ensino, da aprendizagem, do processo de conhecer-ensinaraprender, da, autoridade, da liberdade, da leitura, da escrita, das virtudes da educadora, 
da identidade cultural dos educandos e do respeito devido a ela. Todas essas questões se 
acham envolvidas nas relações educadora-educandos. 
Considero o testemunho como um “discurso” coerente e permanente da educadora 
progressista. Tentarei pensar o testemunho como a melhor maneira de chamar a atenção 
do educando para a validade do que se propõe, para o acerto do que se valora, para a 
firmeza na luta, na busca da superação das dificuldades. À prática educativa em que 
inexiste a relação coerente entre o que a educadora diz e o que ela faz é, enquanto 
prática educativa, um desastre. 
O que se pode esperar para a formação dos educandos de uma professora que 
protesta contra as restrições à sua liberdade por parte da direção da escola mas ao 
mesmo tempo, cerceia .a liberdade dos educandos, afrontosamente? Felizmente, no 
plano humano, nenhuma explicação mecanicista elucida nada. Não se pode afirmar que 
os educandos de tal educadora se tornem necessariamente apáticos ou vivam em 
permanente rebelião. Mas, muito melhor seria para eles se semelhante ' descompasso 
entre o que se diz e o que se faz não lhes fosse imposto. E entre o testemunho de dizer e 
o de fazer, o mais forte é o do fazer porque este tem ou pode ter efeitos imediatos. O 
pior, porém, para a formação do educando é que, diante da contradição entre fazer e 
dizer, o educando tende a não acreditar no que a educadora diz. Se, agora, ela afirma 
algo, ele espera a próxima ação para detectar a próxima contradição. E isso corrói o 
perfil da educadora que ela mesma vai fazendo de si e revelando aos educandos. 
As crianças têm uma sensibilidade enorme para perceber que a professora faz 
exatamente o contrário do que diz. O “faça o que eu digo e não o que eu faço” é uma 
tentativa quase vã de remediar a contradição e a incoerência. “Quase vã” porque nem 
sempre o que se diz e está sendo contraditado pelo que se faz é completamente 
esmagado. O que se diz tem, às vezes, uma tal força em si mesma, que o defende da 
hipocrisia de quem, dizendo-o,  faz o contrário. Mas, exatamente porque está apenas 
sendo dito e não vivido, perde muito de sua força. Quem vê a incoerência cm processo 
bem que pode dizer-se a si mesmo: “Se esta coisa que está sendo proclamada mas, ao 
mesmo tempo, tão fortemente negada na prática, fosse real-mente boa, ela não seria 
apenas dita mas vivida”. 
Uma das coisas mais negativas nisto tudo é a deterioração  das relações entre 
educadora e educandos. 
E que dizer da professora que testemunha constantemente fraqueza, dubiedade, 
insegurança, nas suas relações com os educandos? Que não se assume jamais como 
autoridade na classe? 
Me lembro de mim mesmo, adolescente, e do quanto me fazia mal presenciar o 
desrespeito que um de nossos professores com raiva de si próprio ao ser objeto de 
chacotas de grande parte dos alunos sem  nenhuma condição para impor ordem. Sua 
aula era a segunda da manhã e ele já entrava vencido na sala onde a malvadez de alguns 
adolescentes o esperava para fustigá-lo, para maltratá-la. Ao terminar o seu arremedo 
de aula, ele não podia dar as costas aos  alunos e marchar para a porta. A vaia 
estrondosa cairia sobre ele, pesada e arestosa,  e isto devia gelá-la. No canto da sala 
onde me sentava via-o pálido, diminuído, recuando até a porta. Abrindo-a rápido, sumia 
envolto na sua insustentável fraqueza. 
Nas minhas memórias de adolescente  guardo a figura daquele homem fraco, 
indefeso, pálido, que carregava consigo o medo daqueles meninos que faziam da 
fraqueza dele um brinquedo junto com o  medo de perder o emprego, no medo dos 
meninos gerado. 
Enquanto assistia à ruína de sua autoridade eu, que sonhava com tornar-me 
professor, prometia a mim mesmo que jamais me entregaria assim à negação de mim 
próprio. Nem o todo-poderosismo do professor autoritário, arrogante, cuja palavra é 
sempre a última, nem a insegurança e a falta completa de presença e de poder que 
aquele professor exibia. 
Outro testemunho que não deve faltar em  nossas relações com os alunos é o da 
permanente disposição em favor da justiça, da liberdade, do direito de ser. A nossa 
entrega à defesa dos mais fracos, submetidos à exploração dos mais fortes. É 
importante, também, neste empenho de todos os dias, mostrar aos alunos como há 
boniteza na luta ética. Ética e estética se dão as mãos. Não se diga, porém, que em áreas 
de pobreza imensa, de carência profunda, essas coisas não podem ser feitas. As 
experiências que a professora Madalena F. Weffort viveu pessoalmente durante três 
anos numa favela de São Paulo, em que ela, mais do que em qualquer outro contexto, se 
tornou plenamente educadora e pedagoga, foram experiências em que isto foi possível. 
Em torno de suas experiências em contexto faltoso de tudo que nossa apreciação e o 
nosso saber de classe consideram indispensáveis, mas farto de muitos outros elementos 
que nosso saber de classe menospreza, ela prepara um livro. Nele, certamente, contará e 
analisará a estória de Carlinha de que, tendo falado em um texto meu, a reproduzo 
agora. 
“Rondando a escola, perambulando pelas ruas da vila, semi-nua, sujo na cara, que 
escondia sua beleza, alvo de zombaria das outras crianças e  dos adultos também, 
vagava perdida e, o pior, perdida de si mesma, uma espécie de menina de ninguém.” 
Um dia, disse-me Madalena, a avó da menina a procurou pedindo que recebesse a 
neta na escola, dizendo também que  não poderia pagar a quota quase simbólica 
estabelecida pela direção popular da escola. 
“Não creio que haja problema com relação ao pagamento. Tenho, porém, uma 
exigência para poder aceitar Carlinha: que me chegue aqui limpa, banho tomado, com 
“Alfabetização como elemento de formação da cidadania”. Conferência pronunciada 
em Brasília em reunião patrocinada pela UNESCO e pelo Ministério de Educação – 
1987. 53
um mínimo de roupa. E que venha assim todos os dias e não só amanhã”, disse 
Madalena. A avó aceitou e prometeu que cumpriria. No dia seguinte Carlinha chegou à 
sala completamente mudada. Limpa, cara bonita, feições descobertas, confiante. 
A limpeza, a cara livre das marcas do sujo, sublinhavam sua presença na sala. 
Carlinha começou a confiar nela mesma. A avó começou a acreditar também não só em 
Carlinha, mas nela igualmente. Carlinha se descobriu; a avó se redescobriu. 
Uma apreciação ingênua diria que a intervenção da educadora teria sido pequenoburguesa, elitista, alienada – afinal, como exigir de uma criança favelada que venha à 
escola de banho tomado? 
Madalena, na verdade, cumpriu o seu  dever de educadora progressista. Sua 
intervenção possibilitou à criança e à sua avó a conquista de um espaço – o de sua 
dignidade, no respeito dos outros. Amanhã  será mais fácil a Carlinha se reconhecer 
também como membro de uma classe toda, a trabalhadora, em busca de melhores dias. 
Sem intervenção democrática do educador ou da educadora, não há educação 
progressista. 
Assim como foi possível à professora intervir nas questões ligadas à higiene do 
corpo que, por sua vez, se estendem à boniteza do corpo e à boniteza do mundo, de que 
resultou a descoberta de Carlinha e a redescoberta da avó, não há por que não se possa 
intervir nos problemas a que antes me referia. 
Creio que a questão fundamental diante  de que devemos estar, educadoras e 
educadores, bastante lúcidos e cada vez mais competentes, é que nossas relações com 
os educandos são um dos caminhos de que dispomos para exercer nossa intervenção na 
realidade a curto e a longo prazo. Neste sentido e não só neste, mas em outros também, 
nossas relações com os educandos, exigindo nosso respeito a eles, demandam igualmente o nosso conhecimento das condições  concretas de seu contexto, o qual os 
condiciona. Procurar conhecer a realidade e¿ que vivem nossos alunos é um dever que a 
prática educativa nos impõe: sem isso não temos acesso à maneira como pensam, 
dificilmente então podemos perceber o que sabem e como sabem. 
Minha convicção é que não há temas ou valores de que não se possa falar nesta ou 
naquela área. De tudo podemos falar e sobre tudo podemos testemunhar. A linguagem 
que usamos para falar disto ou daquilo e a forma como testemunhamos se acham, 
porém, atravessadas pelas condições sociais,  culturais e históricas do contexto onde 
falamos e testemunhamos. Vale dizer, estão condicionados pela cultura de classe, pela 
concretude daqueles com quem e a quem falamos e testemunha-mos. 
Enfatizemos a importância do testemunho de seriedade, de disciplina no fazer as 
coisas, de disciplina no estudo. Testemunho no cuidado com o corpo, com a saúde. 
Testemunho na honradez com que o educador realiza sua tarefa. Na esperança com que 
luta por seus direitos, na persistência com que briga contra o arbítrio. As educadoras e 
os educadores deste país têm muito o que ensinar, ao lado dos conrefirlos, aos meninos 
e meninas, não importa a que classe pertençam. Têm muito o que ensinar pelo exemplo 
de combate em favor das mudanças fundamentais de que precisamos, de combate 
contra o autoritarismo e em favor da democracia. 
Nada disso é fácil mas isso tudo constitui uma das frentes da luta maior de 
transformação profunda da sociedade brasileira. Os educadores progressistas precisam 
convencer-se de que não são puros ensinantes – isso não existe – puros especialistas da 
docência. Nós somos militantes políticos porque somos professores e professoras. 
Nossa tarefa não se esgota no ensino da matemática, da geografia, da sintaxe, da 
história. Implicando a seriedade e a competência com que ensinemos esses conteúdos, 
nossa tarefa exige o nosso compromisso e  engajamento em favor da superação das 
injustiças sociais. 
É necessário desmascarar a ideologia de um certo discurso neo-liberal, chamado 
às vezes de modernizante que, falando do tempo histórico atual, tenta convencer-nos de 
que a vida é assim mesmo. Os mais capazes organizam o mundo, produzem; os menos, 
sobrevivem. E que “essa conversa de sonho, de utopia, de mudança radical” só faz 
atrapalhar a labuta incansável dos que realmente produzem. Deixemo-los trabalhar em 
paz sem os transtornos que nossos discursos sonhadores lhes causam e um dia se terá 
uma grande sobra a ser distribuída. 
Esse inaceitável discurso contra a esperança, a utopia e o sonho é o que defende a 
preservação de uma sociedade como a nossa, que funciona para um terço de sua 
população, como se fosse possível agüentar por muito tempo tamanho descompasso. O 
que me parece que o novo tempo nos coloca é  a morte do sectarismo mas a vida da 
radicalidade. As posturas sectárias nas quais nos pretendemos senhores da verdade, 
que não pode ser contestada, estas sim  – que ainda são tomadas em nome da 
democracia – têm cada vez menos a ver com um tempo novo. Neste sentido, os partidos 
progressistas não têm muito a escolher. Ou se recriam e se reinventam na radicalidade 
em torno de seus sonhos ou, entregues aos sectarismos castradores, fenecem com seu 
corpo sufocado no figurino stalinista. Voltam  a ser, ou não deixam de ser, velhos 
partidos de esquerda, sem alma, fadados a morrer de frio. E é uma lástima que esse 
risco exista. 
Voltemos às relações entre educadoras e educandos. À força e à importância do 
testemunho da educadora como fator de formação dos educandos. Da radicalidade com 
que atua, com que decide, mas o testemunho que se dá, sem dificuldade de que pode e 
deve rever a posição que assumiu em face de novos elementos que a fizeram mudar. E 
será tão mais eficaz o seu testemunho quanto mais lucidamente, de forma objetiva, ela 
deixar claro aos educandos: 
1. que mudar de posição é legítimo  
2. as razões que a fizeram mudar. 
Não estou pensando que educadores e educadoras devam ser santos, perfeitos. É 
exatamente como seres humanos, com seus valores e suas falhas, que devem 
testemunhar sua luta pela seriedade, pela  liberdade, pela criação da indispensável 
disciplina de estudo de cujo processo devem fazer parte como auxiliares, pois que é 
tarefa dos educandos gerá-la em si mesmos. 
Inaugurado o processo testemunhal pelo educador, a pouco e pouco educandos o 
vão assumindo também. Esta participação efetiva dos educandos é sinal de que o 
testemunho da educadora está operando. É possível, porém, que  alguns educandos 
pretendam testar a educadora para se certificar de se ela é ou não coerente. Seria um 
desastre se, neste caso, a educadora reagisse mal ao desafio. No fundo, a maioria dos 
educandos que a testam o fazem ansiosos para que ela não os decepcione. O que eles 
querem é que ela confirme que é verdadeira. Ao testa-lo, não estão querendo seu 
fracasso. Mas há também os que provocam porque querem o fracasso do educador. 
Um dos equívocos da educadora, gerado no seu sentimento de auto-estima 
exorbitante que a faz pouco humilde, seria sentir-se ferida pela conduta dos educandos 
por não admitir que ninguém possa duvidar dela. 
Humildemente, pelo contrário, é bom admitir que somos todos seres humanos, por 
isso, inacabados. Não somos perfeitos e infalíveis. 
Me lembro de experiência que tive, recém-chegado do exílio, numa turma de 
estudantes de pós-graduação da PUC de São Paulo. 
No primeiro dia de aula, falando de como via o processo de nossos encontros, me 
referi a como gostaria de que fossem abertos, democráticos, livres. Encontros em que 
exercêssemos o direito à nossa curiosidade,  o direito de perguntar, de discordar, de 
criticar. 
Uma estudante, em tom agressivo, disse: “Gostaria de seguir o curso atentamente, 
não faltarei a nenhum encontro, para ver se  o diálogo de que o professor falava será 
mesmo vivido”. 
Quando ela terminou, fiz um breve comentário em torno do direito que lhe assistia 
de duvidar de mim, bem como o de expressar publicamente a sua dúvida. A mim me 
cabia o dever de provar, ao longo do semestre, que era coerente com o meu discurso. 
Na verdade, a jovem senhora jamais faltou a nenhum encontro. Participou de 
todos, revelou suas posições  autoritárias que deviam embasar sua repulsa a meu 
passado e a meu presente anti-governo militar. Nunca nos aproximamos mas 
mantivemos um clima de mútuo respeito até o fim. 
No caso dela, o que realmente lhe movia o ânimo é que eu me desdissesse no 
primeiro dia. E eu não me desdisse. É que não me ofendo se me põem à prova. Não me 
sinto infalível. Me sei inconcluso. O que me irrita é a deslealdade. É a crítica infundada. 
É a falta de ética nas acusações. 
Em suma, as relações entre educadores e educandos são complexas, 
fundamentais, difíceis, sobre que devemos pensar constantemente. Que bom seria, aliás, 
se tentássemos criar o hábito de avaliá-las ou de nos avaliar nelas enquanto educadores 
e educandos também. 
Que bom seria, na verdade, se trabalhássemos, metodicamente, com os 
educandos, a cada par de dias, durante algum tempo que dedicaríamos à análise crítica 
de nossa linguagem, de nossa prática. Aprenderíamos e ensinaríamos juntos um 
instrumento indispensável  ao ato de estudar: o  registro  dos fatos e o que a eles se 
prende. A prática de registrar nos leva a  observar, comparar, selecionar, estabelecer 
relações entre fatos e coisas.  Educadora e educandos se obrigariam, diariamente, a 
anotar os momentos que mais os haviam desafiado positiva ou negativamente durante o 
intervalo de um encontro ao outro. 
Estou convencido, aliás, de que tal experiência formadora poderia ser feita, com 
nível de exigência adequado à idade das crianças, entre aquelas que ainda não 
escrevem. Pedir-lhes que falassem de como estão sentindo o andamento de seus dias na 
escola lhes possibilitaria engajar-se numa  prática de educação dos sentidos. Exigiria 
delas a atenção, a observação, a seleção de fatos. Com isso desenvolveríamos também a 
sua oralidade que, guardando em si a etapa seguinte, a da escrita, jamais dela se deve 
dicotomizar. A criança que, em condições pessoais normais, fala é aquela que escreve. 
Se não escreve, torna-se  proibida  de fazê-la e, só em casos excepcionais, 
impossibilitada. 
Quando secretário municipal de Educação de São Paulo vivi uma experiência de 
que jamais esquecerei. Em duas escolas municipais, durante duas horas, conversei com 
cinqüenta alunos de 5-série numa tarde e com quarenta no dia seguinte. A temática 
central dos encontros era como os adolescentes viam sua escola e que escola eles e elas 
gostariam de ter. Como se viam e como viam as professoras. 
Assim que começamos os trabalhos, no primeiro encontro, um dos adolescentes 
me indagou: “Paulo, o que você acha de  uma professora que põe um aluno de pé, 
‘cheirando’ a parede, mesmo que ele tivesse feito uma coisa errada, como reconheço 
que fez?”. Respondi: “Acho que a professora errou”. 
“Que é que você faria se encontrasse uma professora fazendo isso?” 
“Espero – disse eu – que você e seus colegas não suponham que eu devesse fazer 
o mesmo com a professora. Isto seria um absurdo que jamais cometeria. Convidaria a 
professora para comparecer no dia seguinte a meu gabinete, juntamente com a diretora 
da escola, com a coordenadora pedagógica  e com alguém mais responsável pela 
formação permanente das professoras. Em minha conversa com ela lhe pediria que me 
provasse que seu comportamento era correto, pedagogicamente, cientificamente, 
humanamente e politicamente. Caso ela não conseguisse provar – o que seria o óbvio – 
faria então um apelo, ouvindo antes a diretora da escola sobre sua opinião em torno da 
professora faltosa, no sentido de que não repetisse seu erro.” 
“Muito bem. Mas, e se ela repetisse o mesmo procedimento?”, disse o garoto. 
“Neste caso pediria à assessoria jurídica da Secretaria que estudasse o caminho 
legal para punir a professora. Aplicaria rigorosamente a lei”, respondi. 
O grupo todo entendeu e eu percebi que aqueles adolescentes não pretendiam um 
clima licencioso mas recusavam radicalmente o arbítrio. Queriam relações 57
democráticas, de respeito mútuo. Se recusavam a obediência cega, imposta pelo poder 
sem limites do autoritário, rejeitavam a irresponsabilidade do espontaneísmo. 
Possivelmente alguns deles vieram às ruas, recentemente, com suas caras pintadas 
gritando que vale a pena sonhar. 
No dia seguinte, com o outro grupo, ouvi um comentário de uma adolescente 
inquieta e numa linguagem bem articulada: “Eu queria uma escola, Paulo, que não 
fosse parecida com minha mãe. Uma escola que acreditasse mais nos moços e que não 
pensasse que uma porção de gente anda à espera da gente só para fazer mal.” 
Foram quatro horas, com noventa adolescentes que reforçaram em mim a alegria 
de viver e o direito de sonhar. 





                                                
Sétima carta 
De falar ao educando a falar a ele e com ele; de 
ouvir o educando a ser ouvido por ele 
Partamos da tentativa de inteligência do enunciado acima, em cujo primeiro corpo 
se diz: “De falar  ao  educando a falar a ele e  com  ele”. Poderíamos organizar este 
primeiro corpo sem prejudicar-lhe o sentido, assim: “Do momento em que falamos ao 
educando ao momento em que falamos  com  ele”; ou “Da necessidade de falar  ao 
educando à necessidade de falar  com  ele”; ou ainda “É importante vivermos a 
experiência equilibrada, harmoniosa, entre falar  ao  educando e falar  com  ele”. Quer 
dizer, há momentos em que a professora, enquanto autoridade, fala ao educando, diz o 
que deve ser feito, estabelece limites sem os quais a própria liberdade do educando se 
perde na licenciosidade, mas estes momentos, de acordo com a opção política da 
educadora, se alternam com outros em que a educadora fala com o educando. 
Não é demais repetir aqui essa afirmação, ainda recusada por muita gente, apesar 
de sua obviedade,  a educação é um ato político.  A sua não neutralidade exige da 
educadora que se assuma como política e viva coerentemente sua opção progressista, 
democrática ou autoritária,  reacionária, passadista ou também espontaneísta, que se 
defina por ser democrática ou autoritária.  É que o espontaneísmo, que às vezes dá a 
impressão de que se inclina pela liberdade termina por trabalhar contra ela. O clima de 
licenciosidade que ele cria, de vale-tudo, reforça as posições autoritárias. Por outro 
lado, certamente, o espontaneísmo nega a formação do democrata, do homem e da 
mulher libertando-se na e pela luta em favor do ideal democrático assim como nega a 
“formação” do obediente, do adaptado, com que sonha o autoritário. O espontaneísta é 
anfíbio – vive na água e na terra – não tem inteireza, não se define consistentemente 
pela liberdade nem pela autoridade. 
Seu clima é o da licenciosidade em que curte seu medo à liberdade. Daí que eu 
tenha falado na necessidade de o espontaneísta, superando sua indecisão política, 
finalmente se definir em favor da liberdade, vivendo-a autenticamente ou contra ela. 
Este é, como estamos vendo na análise que realizamos, um problema em que se 
insere a questão da liberdade e da autoridade em suas relações contraditórias. Questão 
muito mais mal compreendida entre nós do que lucidamente entendida. 
O fato mesmo de estarmos sendo uma sociedade marcadamente autoritária, com 
forte tradição mandonista, com inequívoca  inexperiência democrática enraizada na 
nossa história, pode explicar nossa ambigüidade em face da liberdade e da autoridade. 
É importante notar, também, que essa ideologia autoritária, mandonista, de que 
nossa cultura se acha empapada, corta as classes sociais. O autoritarismo do ministro, 
do presidente, do general, do diretor da escola, do professor universitário é o mesmo 
autoritarismo do peão, do cabo ou do sargento, do porteiro do edifício. Quaisquer dez 
centímetros de poder entre nós viram facilmente mil metros de poder e de arbítrio. 
Mas, precisamente porque não fomos ainda capazes, na prática social, de resolver 
esse problema, de tê-la claro diante de nós, tendemos a confundir o uso certo da
autoridade com autoritarismo e, assim, porque negamos esse, caímos na licenciosidade 
ou no espontaneísmo pensando que, pelo contrário, estamos respeitando as liberdades, 
fazendo, então, democracia. Outras vezes, somos autoritários mesmo, mas nos pensamos e nos proclamamos progressistas. 
De fato, porém, porque recuso o autoritarismo não posso cair na licenciosidade da 
mesma forma como, rejeitando a licenciosidade, não posso me entregar ao 
autoritarismo. Certa vez afirmei: um não  é o contrário positivo do outro. O contrário 
positivo quer do autoritarismo manipulador quer do espontaneísmo licencioso é a 
radicalidade democrática. 
Creio que estas considerações vêm aclarando o tema desta carta. Posso afirmar 
agora que, se a professora é coerente-mente autoritária, ela é sempre o sujeito da fala, 
enquanto os alunos são continuamente a incidência de seu discurso. Ela fala a, para e 
sobre os educandos. Fala de cima para baixo, certa de sua certeza e de sua verdade. E 
até quando fala com o educando é como se estivesse fazendo favor a ele, sublinhando a 
importância e o poder de sua voz. Esta não é a forma como a educadora democrática 
fala com o educando, nem sequer quando fala a ele. Sua preocupação é avaliar o aluno, 
é constatar se ele a segue ou não. A formação do educando, enquanto sujeito crítico que 
deve lutar constantemente pela liberdade, jamais move a  educadora autoritária. Se a 
educadora é espontaneísta, na posição do “deixa como está para ver como fica”, 
abandona os educandos a si mesmos e termina por nem falar  a  nem falar  com  os 
educandos. 
Se, porém, a opção da educadora é democrática e a distância entre seu discurso e 
sua prática vem sendo cada vez menor, vive, em sua cotidianeidade escolar, que 
submete sempre à sua análise crítica, a difícil mas possível e prazerosa experiência de 
falar  aos  educandos e  com  eles. Ela sabe que o diálogo não apenas em torno dos 
conteúdos a serem ensinados mas sobre a vida mesma, se verdadeiro, não somente é 
válido do ponto de vista do ato de ensinar, mas formador também de um clima aberto e 
livre no ambiente de sua classe. 
Falar a e com  os educandos é uma forma despretensiosa mas altamente positiva 
que tem a professora democrática de dar, em sua escola, sua contribuição para a 
formação de cidadãos e cidadãs responsáveis e críticos. Algo de que tanto precisamos, 
indispensável ao desenvolvimento de nossa democracia. A escola democrática, 
progressistamente pós-moderna e não a pós-modernamente tradicional e reacionária, 
tem um grande papel a cumprir no Brasil atual. 
Longe de mim, contudo, ao insistir na temática da escola pós-modernamente 
progressista, pensar que a “salvação” do Brasil está nela. Naturalmente, a viabilização 
do país não está apenas na escola democrática, formadora de cidadãos críticos e 
capazes, mas passa por ela, necessita dela, não se faz sem ela. E é nela que a professora 
que fala ao e com o educando ouve o educando, não importa a tenra idade dele ou não 
e, assim, é ouvida por ele. É ouvindo o educando, tarefa inaceitável pela educadora 
autoritária, que a professora democrática se prepara cada vez mais para ser ouvida pelo 
educando. Mas, ao aprender com o educando a falar com ele porque o ouviu, ensina o 
educando a ouvi-la também. 
As considerações anteriores em torno  da posição autoritária, da posição 
espontaneísta, da que chamo substantivamente democrática podem ser aplicadas, 
obviamente, ao problema de ouvir o educando e ser ouvido por ele. Esta é a questão 
crucial do direito à voz que têm educadoras e educandos. Ninguém vive plenamente a 
democracia nem tampouco a ajuda a crescer, primeiro, se é interditado no seu direito de 
falar, de ter voz, de fazer o seu discurso crítico; segundo, se não se engaja, de uma ou 
de outra forma, na briga em defesa deste direito, que, no fundo, é o direito também a 
atuar. 
Assim, porém, como a liberdade do educando, na classe, precisa de limites para 
que não se perca na licenciosidade, a voz  da educadora e dos educandos carece de 
limites éticos para que não  resvale para o absurdo. É tão imoral ter nossa voz 
silenciada, nosso “corpo interditado” quanto imoral é o uso da voz para falsear a 
verdade, para mentir, enganar, deformar. 
O meu direito à voz não pode ser um  direito ilimitado de dizer o que bem 
entender do mundo e dos outros. O de uma voz irresponsável que mente sem nenhum 
mal-estar desde que da mentira se espere  um resultado favorável aos desejos e aos 
planos do mentiroso. 
É preciso e até urgente que a escola vá se tornando um espaço acolhedor e 
multiplicador de certos gostos democráticos como o de ouvir os outros, não por puro 
favor mas por dever, o de respeitá-los, o da tolerância, o do acatamento às decisões 
tomadas pela maioria a que não falte contudo o direito de quem diverge de exprimir sua 
contrariedade. O gosto da pergunta, da crítica, do debate. O gosto do respeito à coisa 
pública que entre nós vem sendo tratada como coisa privada, mas como coisa privada 
que se despreza. 
É incrível a maneira como se desperdiçam as coisas entre nós e em que extensão e 
profundidade. Basta ler a imprensa diária e  acompanhar noticiários de televisão para 
nos dar conta dos milhões que se jogam fora pelo desuso de aparelhos caríssimos de 
hospitais, pelas obras que, por desonestidade na sua construção, se deterioram antes do 
tempo. Obras milionárias que quase misteriosamente se evaporam deixando apenas 
vestígios. Se os administradores responsáveis por tais descalabros fossem punidos, 
pagassem à nação e/ou fossem para a cadeia, obviamente com direito de defesa, a 
situação melhoraria. 
Uma atividade a ser incluída na vida  normal político-pedagógica da escola 
poderia ser a discussão, de quando em vez, de casos como os de que falei agora. A 
discussão com alunos sobre o que representa para nós, a curto e a longo prazo, 
semelhante sem-vergonhice. Do ponto de vista do desfalque material na economia da 
nação como do dano ético que esses descalabros nos causam a todos nós. É preciso 
mostrar as cifras às crianças, aos adolescentes e dizer-lhes com clareza e com firmeza 
que o fato de os responsáveis agirem assim, despudoradamente, não nos autoriza, na 
intimidade de nossa escola, a arrebentar as mesas, estragar o giz, desperdiçar a 
merenda, sujar as paredes. 
Não vale dizer: “Os poderosos fazem, por que não faço eu? Os poderosos roubam 
por que não roubo eu? Os poderosos mentem por que não minto eu?”. Não vale. 
Decididamente, não vale. 
Não se constrói nenhuma democracia séria, que implica mudar radicalmente as 
estruturas da sociedade, reorientar  a política da produção e do desenvolvimento, 
reinventar o poder, fazer justiça aos espoliados, abolir os ganhos indevidos e imorais 
dos todo-poderosos sem prévia e simultaneamente trabalhar esses gostos democráticos 
e essas exigências éticas. 
Um dos equívocos dos marxistas mecanicistas foi viver e não apenas pensar nem 
tampouco afirmar que, por ser supra--estrutura, a educação não tem o que fazer antes 
que a sociedade seja radicalmente transformada na sua infra-estrutura, nas suas 
condições materiais. Antes, o que se pode fazer é a  propaganda ideológica  para a 
mobilização e a organização das massas populares. Nisto, como em tudo, os 
mecanicistas falharam. Pior ainda, atrasaram  a luta em favor do socialismo que eles 
antagonizaram com a democracia. 
Um outro gosto democrático, de que  o seu contrário antagônico se acha 
entranhado em nossas tradições culturais autoritárias, é o gosto do respeito aos 
diferentes. O gosto da tolerância de que o racismo e machismo fogem como o diabo da 
cruz. 
O exercício desse gosto democrático, numa escola realmente aberta ou se abrindo 
teria que cercar o gosto autoritário, racista ou machista, primeiro, em si mesmo, como 
negação da democracia, das liberdades e dos direitos dos diferentes, como negação de 
um necessário humanismo. Segundo, como ex-pressão de tudo isso  e, ainda, como 
contradição incompreensível quando o gosto anti-democrático, não importa qual seja, 
se expressa na prática de homens ou de mulheres reconhecidos como progressistas. 
Que dizer, por exemplo, de um homem considerado como progressista que, apesar 
do discurso em favor das classes populares, se comporta  como proprietário de sua 
família? Homem cujo mandonismo asfixia mulher, filhos e filhas? 
Que dizer da mulher que luta na defesa dos interesses de sua categoria mas que, 
em casa, raramente agradece à cozinheira pelo copo de água que ela lhe traz e que, em 
conversas com amigas, chama a cozinheira de “essa gente”? 
É difícil, realmente, fazer democracia. É que a democracia, como qualquer sonh8, 
não se faz com palavras desencarnadas, mas com reflexão e prática. Não é o que digo o 
que diz que eu sou democrata, que não sou racista ou machista, mas o que faço. É 
preciso que o que eu diga não seja contraditado pelo que faço. É o que faço que diz de 
minha lealdade ou não ao que digo. 
Na luta entre o dizer e o fazer em que nos devemos engajar para diminuir a 
distância entre eles, tanto é possível refazer o dizer para adequá-la ao fazer quanto 
mudar o fazer para ajustá-lo ao dizer. Por isso a coerência termina por forçar uma nova 
opção. No momento em que descubro a incoerência entre o que digo e o que faço – 
discurso progressista, prática autoritária  – se, refletindo, às vezes sofridamente, 
apreendo a ambigüidade em que me acho, sinto não poder continuar assim e busco uma
saída. Desta forma, uma nova opção se impõe a mim. Ou mudo o discurso progressista 
por um discurso coerente com a minha prática reacionária ou mudo minha prática por 
uma democrática, adequando-a ao discurso progressista. Há final-mente uma terceira 
opção: a opção pelo cinismo assumido, que  consiste em encarnar lucrativamente a 
incoerência. 
Acho que uma das formas de ajudar a democracia entre nós é combater com 
clareza e segurança os argumentos ingênuos mas fundados no real ou em parte dele, 
segundo os quais não vale a pena votar; que política é sempre assim, esse descaramento 
geral, vergonhoso. Que todos os políticos  são iguais: “Por isso, vou votar agora em 
quem faz, mesmo que roube”. 
Na verdade, as coisas são diferentes. Esta é a forma que nos está sendo possível 
de fazer política, mas não é necessariamente esta a forma que sempre teremos de fazer 
política. Não é a política que nos faz assim. Nós é que fazemos esta política e 
indiscutivelmente a política que fazemos, agora, é de melhor qualidade do que a que se 
fez na minha infância. E, por fim, não são todos os políticos que fazem política assim 
nos diferentes níveis de governo e em diferentes partidos políticos. 
Como educadoras e educadores não podemos nos eximir de responsabilidade na 
questão fundamental da democracia brasileira e de como participar na busca de seu 
aperfeiçoamento. 
Como educadoras e educadores somos políticos, fazemos política ao fazer 
educação. E se sonhamos com a democracia, que lutemos, dia e noite, por uma escola 
em que falemos  aos e com  os educandos para que, ouvindo-os possamos ser por eles 
ouvidos também. 

Oitava carta 
Identidade cultural e educação 
Perguntar-nos em torno das relações entre a identidade cultural, que tem sempre 
um corte de classe social, dos sujeitos da educação e a prática educativa é algo que se 
nos impõe. É que a identidade dos sujeitos tem que ver com as questões fundamentais 
de currículo, tanto o oculto quanto o explícito e, obviamente, com questões de ensino e 
aprendizagem. 
Discutir, porém, a questão da identidade dos sujeitos da educação, educadores e 
educandos, me parece que implica desde o começo de tal exercício, salientar que, no 
fundo, a identidade cultural, expressão cada vez mais usada por nós, não pode pretender 
exaurir a totalidade da significação do fenômeno cujo conceito é identidade. O atributo 
cultural, acrescido do restritivo  de classe,  não esgota a compreensão do ter-mo 
“identidade”. No fundo, mulheres e homens nos tornamos seres especiais e singulares. 
Conseguimos, ao longo ele uma longa história, deslocar da espécie o ponto de decisão 
de muito do que somos e do que fazemos para nós mesmos individual-mente mas, na 
engrenagem social sem a qual não seríamos também o que estamos sendo. No fundo, 
nem somos só o que herdamos nem apenas o que adquirimos, mas a relação dinâmica, 
processual do que herdamos e do que adquirimos. 
Há algo no que herdamos e que François Jacob enfatiza em entrevista ao 
Courrier de L’UNESCO que é da mais alta importância para a compreensão de nosso 
tema. “Nós somos programados, mas, para aprender”, diz Jacob. E é exatamente porque 
nos foi possível, com a invenção da existência – algo mais que a vida mesma e que nós 
criamos com os materiais que a vida nos ofereceu – deslocar da espécie para nós o 
ponto de decisão de muito do que estamos e estaremos sendo. Mais ainda, porque, com 
a invenção social da linguagem, lado a lado com a operação sobre o mundo, alongamos 
o mundo natural, que não fizemos, em mundo cultural e histórico, produtos nossos, que 
nos tornamos animais permanentemente inscritos num processo de aprender e buscar. 
Processo que só se faz possível na medida em que “não podemos viver a não ser em 
função do amanhã.” Jacob, 1991). 
Aprender e buscar, a que necessariamente se juntam ensinar e conhecer que, por 
sua vez, não podem prescindir de liberdade, não enquanto doação mas enquanto algo 
indispensável e necessário, enquanto um “sine qua non” por que temos de brigar 
incessantemente, fazem parte de nossa forma de estar sendo no mundo. E é exatamente 
porque somos programados mas não determinados, somos condicionados mas, ao 
mesmo tempo, conscientes do condicionamento, é que nos tornamos aptos a lutar pela 
liberdade como processo e não como ponto de chegada. É por isso também que o fato 
de “cada ser conter, diz Jacob, em seus cromossomos todo o seu próprio futuro” não 
significa, de modo algum, que a nossa liberdade se afogue, se submerja nas estruturas 
hereditárias como se elas fossem o lugar certo para o sumiço de nossa possibilidade de 
vivê-la. 
Condicionados, programados mas não  determinados, movemo-nos com um 
mínimo de liberdade de que dispomos na moldura cultural para ampliá-la. Desta forma, 
através da educação como expressão também cultural, podemos “explorar, mais ou 
menos, as possibilidades inscritas nos cromossomos” Jacob, 1991. 
Fica clara a importância da identidade de cada um de nós como sujeito, educador 
ou educando, da prática educativa. E da identidade entendida nesta relação 
contraditória, que somos nós mesmos, entre o que herdamos e o que adquirimos. 
Relação contraditória em que, às vezes,  o que adquirimos em nossas experiências 
sociais, culturais, de classe, ideológicas, inter-fere de forma vigorosa, através do poder 
dos interesses, das emoções, dos sentimentos, dos desejos, do que se vem costumando 
chamar “a força do coração” na estrutura hereditária. Não somos, por isso, nem só uma 
coisa nem só a outra. Nem só, repitamos, o inato, nem tampouco o adquirido, apenas. 
A chamada “força do sangue”, para usar uma expressão popular, existe, mas não é 
determinante. Como a presença do cultural, sozinha, não explica tudo. 
No fundo, a liberdade como façanha criadora dos seres humanos, como aventura, 
como experiência de risco  e de criação, tem muito a ver com a relação entre o que 
herdamos e o que adquirimos. 
As interdições à nossa liberdade são muito mais produtos das estruturas sociais, 
políticas, econômicas, culturais, históricas, ideológicas do que das estruturas 
hereditárias. Não podemos ter dúvidas em torno do poder da herança cultural, de como 
nos conforma e nos obstaculiza de ser. Mas, o fato de sermos seres programados, 
condicionados e conscientes  do condicionamento e não determinados é que se faz 
possível superar a força das heranças culturais. A transformação do mundo material, 
das estruturas materiais a que se junte simultaneamente um esforço crítico-educativo é 
o caminho para a superação, jamais mecânica, desta herança. 
O que não é possível, porém, neste esforço de superação de certas heranças 
culturais que, repetindo-se de geração a geração dão às vezes a impressão de que se 
petrificam, é deixar de levar em consideração a sua existência. É, bem verdade que as 
mudanças infra-estruturais alteram às vezes rapidamente for-mas de ser e de pensar que 
há muito perduravam. Por outro lado, reconhecer a existência de heranças culturais 
deve implicar o respeito a elas. Respeito que não significa, de modo nenhum, a nossa 
adequação a elas. O nosso reconhecimento  delas e o nosso respeito por elas são 
condições fundamentais para o esforço de mudança. Por outro lado, é preciso estarmos 
claros com relação a algo óbvio: essas heranças culturais têm um  inegável corte de 
classe social. É nelas que vai se constituindo muito de nossa identidade que, por isso 
mesmo, está marcada pela classe social de que participamos. 
Pensemos um pouco na identidade cultural dos educandos e do necessário 
respeito que devemos a ela em nossa prática educativa. 
Creio que o primeiro passo na direção  deste respeito é o re-conhecimento de 
nossa identidade, o reconhecimento do que estamos sendo na atividade prática em que 
nos experimentamos. É na prática de fazer as coisas de uma certa maneira, de pensar, 
de falar uma certa linguagem (como por exemplo: “as canções de que mais gosto” e não 
“as canções  que  mais gosto”, sem a preposição  de,  regendo o pronome  que),  é na 
prática de fazer, de falar, de pensar, de ter certos gostos, certos hábitos, que termino por 
me reconhecer de uma certa forma, coincidente com outras gentes como eu. Essas 
outras gentes têm corte de classe idêntico ou próximo do meu. É na prática de 
experimentarmos as diferenças que nos descobrimos como eus e tus. A rigor, é sempre 
o outro enquanto tu que me constitui como eu na medida em que eu, como tu do outro, 
o constituo como eu. 
Forte tendência nossa é a que nos empurra no sentido de afirmar que o diferente 
de nós é inferior. Partimos de que a nossa forma de estar sendo não é apenas boa mas é 
melhor do que a dos outros, diferentes de nós. A intolerância é isso. É o gosto 
irresistível de se opor às diferenças. 
A classe dominante, porém, devido a  seu próprio poder de perfilar a classe 
dominada, primeiro, recusa a diferença  mas, segundo, não pretende ficar igual ao 
diferente; terceiro, não tem a intenção de que o diferente fique igual a ela. O que ela 
pretende é, mantendo a diferença e guardando a distância, admitir e enfatizar na prática, 
a inferioridade dos dominados. 
Um dos desafios aos educadores e às educadoras progressistas, em coerência com 
sua opção é não se sentirem nem procederem como se fossem seres inferiores a 
educandos das classes dominantes da rede privada que, arrogantes, destratam e 
menosprezam o professor de classe média. Mas também, em oposição, não se sentirem 
superiores, na rede pública, aos educandos das favelas, aos meninos e às meninas 
populares; aos meninos sem conforto, que não comem bem, que não “vestem bonito”, 
que não “falam certo”, que falam com outra sintaxe, com outra semântica e outra 
prosódia. 
O que se coloca à educadora progressista, coerente, nos dois casos não é, no 
primeiro, assumir uma posição agressiva de quem puramente revida e, no segundo, 
deixar-se tentar pela hipótese de que as crianças, pobrezinhas, são naturalmente 
incapazes. Nem uma posição de revanche nem de submissão no primeiro caso, mas a de 
quem assume sua responsável autoridade  de educadora, nem, no segundo caso, um 
atitude paternalista ou depreciadora das crianças populares. 
O ponto de partida para esta prática compreensiva é saber, é estar convencida de 
que a educação é uma prática política. Daí, repetirmos, a educadora é  política.  Em 
conseqüência, é imperioso que a educadora seja coerente com sua opção, que é política. 
Em continuação, que a educadora seja cada vez mais competente cientificamente o que 
a faz saber o quanto é importante conhecer o mundo concreto em que seus alunos vivem. A cultura em que se acha em ação sua linguagem, sua sintaxe, sua semântica, sua 
prosódia, em que se vêm formando certos hábitos, certos gostos, certas crenças, certos 
medos, certos desejos não necessariamente  facilmente aceitos no mundo concreto da 
professora. 
Pensar que é possível a realização de um tal trabalho em que o contexto teórico se 
separa de tal modo da experiência dos educandos no seu  contexto concreto  só é 
concebível a quem julga que o ensino dos conteúdos se faz indiferentemente  ao  e 
independentemente  do que  os educandos já sabem a partir de suas experiências 
anteriores à escola. E não para quem, com  razão, recusa essa dicotomia insustentável 
entre contexto concreto e contexto teórico. 
O ensino dos conteúdos não pode ser  feito, a não ser autoritariamente, 
vanguardistamente, como se fossem coisas, saberes, que se podem superpor ou justapor 
ao corpo consciente dos educandos, ensinar, aprender, conhecer não têm nada que ver 
com essa prática mecanicista. 
As educadoras precisam saber o que se passa no mundo das crianças com quem 
trabalham. O universo de seus sonhos, a linguagem com que se defendem, 
manhosamente, da agressividade de seu mundo. O que sabem  e  como sabem 
independentemente da escola. 
Dois ou três anos atrás, dois professores da UNICAMP, o físico Carlos Arguelo e 
o matemático Eduardo Sebastiani Ferreira, participaram de um encontro universitário 
no Paraná em que se discutiu o ensino da Matemática c da Ciência em geral. Ao voltar 
para o hotel, após a primeira manhã  de atividades, encontraram num campo 
abandonado um grupo de crianças empinando papagaio. Aproximaram-se dos meninos 
e com eles começaram a conversar. 
“Quantos metros de linha você costuma soltar para empinar o papagaio?”, 
perguntou Sebastiani. 
“Mais ou menos cinqüenta metros”, disse um menino chamado Gelson. 
“Como você calcula para saber que solta mais ou menos cinqüenta metros de 
linha?”, indaga Sebastiani, 
“A cada tanto, de dois metros mais ou menos, disse o garoto, faço um nó na linha. 
Quando a linha vem correndo na minha mão, vou contando os nós e aí sei quantos 
metros tenho de linha solta”. 
“E em que altura você acha que está o papagaio agora?”, perguntou o matemático. 
“Quarenta metros”, disse o garoto. 
“Como você calculou?” 
“No quanto eu dei de linha e na barriga que a linha fez”. 
“Poderíamos calcular esse problema fundados na Trigonometria ou por 
semelhança de triângulos”, cariz Sebastiani. 
O garoto, no entanto, disse: 
“Se o papagaio estivesse alto, bem em cima de minha cabeça, ele estaria, em 
altura, os mesmos metros que soltei de linhas, mas como o papagaio está longe de 
minha cabeça, inclinado, ele está menos do que os metros soltos de linha”. 
“Houve aí um raciocínio de graus”, diz Sebastiani.
Em seguida, indaga Arguelo ao menino sobre a construção do molinete e Gelson 
responde fazendo uso das quatro operações  fundamentais. Ironicamente, arremata o 
físico, Gelson (tão gente quanto Gerson, digo eu), havia sido reprovado na escola em 
Matemática. Nada do que ele sabia tinha valor para a escola porque o que ele sabia 
havia aprendido na sua experiência, na concretude de seu contexto, Ele não falava de 
seu saber na linguagem formal e bem comportada, mecanicamente memorizada, que a 
escola reconhece como a única legítima. 
Coisa pior se dá no domínio da linguagem em que quase sempre se desrespeitam 
totalmente a sintaxe, a ortografia, a semântica, a prosódia de  classe das crianças 
populares. 
Jamais disse ou sequer sugeri que as crianças das classes populares não devessem 
aprender o chamado “padrão culto” da língua portuguesa do Brasil, como às vezes se 
afirma. O que tenho dito é que os problemas da linguagem envolvem sempre questões 
ideológicas e, com elas, questões de poder. Por exemplo, se há um “padrão culto” é 
porque há outro considerado inculto. Quem perfilou o inculto como tal? Na verdade, o 
que tenho dito e por que me bato é que se ensine aos meninos e meninas populares o 
padrão culto, mas, ao fazê-la, que se ressalte: 
a) que sua linguagem é tão rica e tão bonita quanto a dos que falam o padrão culto, 
razão por que não têm que se envergonhar de como falam. 
b) que mesmo assim é fundamental  que aprendam a sintaxe e a prosódia 
dominantes para que: 
1. diminuam as desvantagens na luta pela vida; 
2. ganhem um instrumento fundamental  para a briga necessária contra as 
injustiças e as discriminações de que são alvo. 
É pensando e agindo assim que me sinto coerente com minha opção progressista, 
anti-elitista. Não sou dos que contra--indicaram Lula para a Presidência da República 
porque diz “menas verdade” e votaram em Collor com tanta verdade de menos. 
Em conclusão, a escola democrática não apenas deve estar permanentemente 
aberta à realidade contextual de seus alunos, para melhor compreendê-los, para melhor 
exercer sua atividade docente, mas também disposta a aprender de suas relações com o 
contexto concreto. Daí, a necessidade de,  professando-se democrática, ser realmente 
humilde para poder reconhecer-se aprendendo muitas vezes com quem sequer se 
escolarizou. 
A escola democrática de que precisamos  não é aquela em que só o professor 
ensina, em que só o aluno aprende e o diretor é o mandante todo-poderoso. 

Nona carta 
Contexto concreto – contexto teórico 
Nesta carta vou tomar como objeto de minha reflexão não só as relações que o 
contexto concreto e o teórico estabelecem entre si, mas também a maneira como, em 
cada um deles, nos comportamos. 
O sentido, ou um dos sentidos principais, que me motiva a tratar este tema é 
sublinhar a importância da  relação  em tudo o que fazemos na nossa experiência 
existencial enquanto experiência social e histórica. A importância da relação das coisas 
entre elas, dos objetos entre eles, das palavras entre elas na composição das frases e 
destas entre si, na estrutura do texto. Da importância das relações entre as pessoas, da 
maneira como se ligam – a agressividade, a amorosidade, a indiferença, a recusa ou a 
discriminação sub-reptícia ou aberta. As relações entre educadoras e educandos, entre 
sujeitos cognoscentes e objetos cognoscíveis. Deixemos claro, desde logo, não ser 
objetivo desta carta tratar todo este conjunto de relações que ensaiamos e com que nos 
envolvemos diariamente, mas algumas delas que se acham englobadas nas que se dão 
entre o contexto concreto e o teórico, em relação um com o outro. 
Creio que uma das afirmações a serem feitas é que a  relação  em si, no mundo 
animado e no inanimado, é condição fundamental da vida mesma e da vida com o seu 
contrário. 
Somos, porém, os únicos seres capazes de poder ser objetos e sujeitos das 
relações que travamos com os outros e com a História que fazemos e nos faz e refaz. 
Entre nós e o mundo as relações podem ser criticamente percebidas, ingenuamente 
percebidas ou magicamente percebidas, mas, entre nós há uma consciência destas 
relações a um nível como não há entre nenhum outro ser vivo com o mundo. 
Entre nós a prática no mundo, na medida em que começamos não só a saber que 
vivíamos  mas o  saber  que  sabíamos  e que, portanto, podíamos  saber mais, iniciou o 
processo de gerar o saber da própria prática, É nesse sentido, de um lado, que o mundo 
foi deixando de ser para nós, puro suporte sobre que estávamos, de outro, se tornou 
ou veio se tornando o  mundo  com o qual estamos em relação e de que finalmente o 
puro mexer nele se converteu em prática nele. É, assim que a prática veio se tornando 
uma ação sobre o mundo, desenvolvida por sujeitos a pouco e pouco ganhando 
consciência do próprio fazer sobre o mundo. Foi a prática que fundou a fala sobre ela e 
a consciência ciclo, prática. Não haveria prática, mas puro mexer no mundo se quem, 
mexendo no mundo, não se tivesse tornado capaz ele ir sabendo o que fazia ao mexer 
no mundo c para que  mexia.  Foi a consciência do  mexer  que promoveu o  mexer  ì 
categoria de  prática  e fez com que a  prática  gerasse necessariamente o  sabei dela. 
Neste sentido, a  consciência da prática  implica a  ciência  da prática embutida, 
anunciada nela. Desta forma, fazer ciência é descobrir, desvelar verdades em torno do 
mundo, dos seres vivos, das coisas, que repousavam à espera do desnudamento, é dar
sentido objetivo a algo que novas necessidades emergentes da prática social colocam às 
mulheres e aos homens. 
A ciência, que-fazer humano que se dá na História que mulheres e homens fazem 
com sua prática não é, por isso mesmo, um “a priori” da História. 
A  prática  de que temos consciência exige e gesta a ciência dela. Daí que não 
possamos esquecer as relações entre a produção, a técnica indispensável a ela e a 
ciência. 
“Uma das ciências que mais se beneficiou da produção – diz Adolfo Vasquez – é 
a Física. Seu nascimento como tal é tardio: não a conheceram em seu estado 
característico nem a Antiguidade grega nem a Idade Média. O fraco desenvolvimento 
das forças produtivas na sociedade escravista grega e sob o feudalismo determinava que 
não se sentisse na época a necessidade de criar a Física. 
A ciência Física surge na Idade Moderna com Galileu, correspondendo a 
necessidades práticas da indústria nascente”.
Saliento a necessidade de que, coentro do contexto teórico, tornemos distância cio 
concreto, no sentido de perceber como, na prática nele exercida, se acha embutida a sua 
teoria ele que, às vezes, não suspeitamos ou que mal sabemos. 
O professor Adão Cardoso, biólogo da UNICAMP, me relatou que foi convidado 
por um jovem índio do interior da Amazônia a aprender a usar arpão na pescaria. 
Respondendo à indagação provocadora do cientista que lhe perguntara por que atirava o 
arpão não no peixe mas entre o peixe e a lateral do barco, respondeu: “Não. Atirei no 
peixe. Você não viu certo porque às vezes os olhos mentem.” O índio explicava à sua 
maneira, ao nível da “ciência’ que sua prática permitia, o fenômeno ela refração. 
À custa de sua prática e da prática ele sua aldeia, o jovem índio tinha intimidade 
com o fenômeno e o operava com acerto.  Não tinha, porém, a “raison d’être” do 
fenômeno. 
Há ainda algo que gostaria de comentar com relação a esses dois contextos e 
como neles nos comportamos. 
Comecemos pelo contexto concreto. Pensemos em momentos importantes de um 
dia nosso no contexto de nossa cotidianeidade. Despertamos, tornamos o banho 
matinal, saímos ele casa para o trabalho. Cruzamos gentes conhecidas ou não. 
Obedecemos aos semáforos. Se estão verdes, atravessamos as ruas; se vermelhos, 
paramos à espera. Fazemos tudo isso sem contudo nos perguntar uma vez sequer por 
que fizemos. Nos damos conta do que fazemos mas não indagamos das razões por que 
fazemos. É isso o que caracteriza o nosso mover-nos no mundo concreto da 
cotidianeidade. Agimos nele com uma série de saberes que ao terem sido aprendidos ao 
longo de nossa sociabilidade viraram  hábitos  automatizados. E porque agimos assim 
nossa mente não funciona epistemologicamente. Nossa curiosidade não se “arma” em 
 Ver a esse propósito: Kosik, Karel. Dialética do concreto – Paz e Terra – Rio – 1976.70
busca da razão de ser dos fatos. Simplesmente se acha capaz de perceber que algo não 
ocorreu como era de se esperar ou que se processou diferentemente. É capaz de cedo, 
quase instantaneamente, nos advertir de que há algo errado. 
Andemos um pouco mais e vejamos como nos movemos no contexto concreto de 
nosso trabalho, em que as. relações entre  g prática  e o  saber  da  prática  são 
indicotomizáveis. Mas, mesmo que indicotomizáveis, no contexto prático, concreto, 
não atuamos o tempo todo epistemologicamente curiosos. Fazemos as coisas, porque 
temos certos hábitos de fazê-las. brinda que, assumindo a curiosidade típica de quem 
busca a razão de ser das coisas mais amiúde do que na situação descrita da experiência 
na cotidianeidade, preponderantemente não o fazemos. O ideal na nossa formação 
permanente está em que nos convençamos de, e nos preparemos para, o uso mais 
sistemático de nossa curiosidade epistemológica. 
A questão central que se coloca a nós, educadoras e educa-dores, no capítulo de 
nossa formação permanente, é como, do contexto teórico, tomando distância de nossa 
prática, desembutimos dela o saber dela. A ciência que a funda. Em outras palavras, é 
como do  contexto teórico  “tornamos distância” de nossa prática e nos tornamos 
epistemologicamente curiosos para então apreendê-la na sua razão ele ser. 
É desvelando o que fazemos desta ou daquela forma, à luz de conhecimento que a 
ciência e a filosofia oferecem hoje, que nos corrigimos e nos aperfeiçoamos. É a isso 
que chamo pensar a prática e é pensando a prática que aprendo a pensar e a praticar 
melhor. E quanto mais penso e atuo assim, mais me convenço, por exemplo, de que é 
impossível ensinarmos conteúdos sem saber  como pensam os alunos no seu contexto 
real, na sua cotidianeidade. Sem saber o que eles sabem independentemente da escola 
para que os ajudemos a saber melhor o que já sabem, de um lado e, de outro, para, a 
partir daí, ensinar-lhes o que ainda não sabem. 
Não podemos deixar de levar em consideração as condições materiais 
desfavoráveis que muitos alunos de escolas  da periferia da cidade experimentam. A 
precariedade de suas habitações, a deficiência de sua alimentação, a falta em seu 
cotidiano de atividades  de leitura da palavra, de estudo escolar, a convivência com a 
violência, com a morte de que se tornam quase sempre íntimos. Tudo isso é, de modo 
geral, pouco levado em consideração não apenas pela escola básica, de primeiro grau, 
em que essas crianças estudam, mas também nas escolas de formação para o 
magistério. Tudo isso, porém, tem enorme papel na vida dos Carlos, das Marias, das 
Carmens. Tudo isso marca, inegavelmente,  a maneira cultural de estar sendo dessas 
crianças. 
Certa vez, fui procurado – o que de vez em quando acontece – por um grupo de 
jovens que concluíam o curso de magistério de uma escola de São Paulo. 
Eram jovens de classe média, com boas condições de vida. Sc declaravam 
assustadas, quase como se estivessem sendo ameaçadas, em face da possibilidade de, 
cedo ou tarde, assumirem alguma classe numa escola da periferia. 
“Atravessamos o nosso curso todo sem que jamais se tivesse falado a nós do que é 
uma favela, Dos meninos e meninas faveladas. O que sabemos dessas áreas da cidade, 71
pela televisão e pelos jornais, é que elas são palco de absoluta violência e que as 
crianças cedo, se tornam marginais”, diziam elas. 
As jovens me falavam da favela como se ela se gerasse a si mesma e não como 
resultado da luta pela sobrevivência a que as estruturas injustas de uma sociedade 
empurram os “demitidos da vida”. Me falavam da favela como o recanto do desvio 
ético e como o sítio dos perdidos. E me falavam das meninas e dos meninos favelados 
quase sem esperança. 
Em face de tudo isso, eu m pelo menos, não vejo outro caminho para caminhar 
coma minha raiva legítima,  com minha justa ira, com  minha indignação necessária 
senão o da luta político-democrática de que possam vir resultando as indispensáveis 
transformações na sociedade brasileira, sem as quais esse estado de coisas se agrava em 
lugar de desaparecer. 
Grandes obras para mim, por isso, não são os grandes túneis atravessando a 
cidade de um bairro a outro ou os parques cheios de verde, postos nas áreas felizes da 
cidade. São tudo isso também,  desde, porém, que prioritariamente se trabalhe pela 
humanização da vida de quem vem sendo proibido de ser desde a “invenção” do Brasil: 
as classes populares. 
No contexto teórico, o da formação permanente da educação, é indispensável a 
reflexão crítica sobre os condicionamentos que o contexto cultural tem sobre nós, sobre 
nossa maneira de agir, sobre  nossos valores. A influência  que as nossas dificuldades 
econômicas exercem sobre nós, como podem obstaculizar nossa capacidade de 
aprender, ainda que careçam de poder para nos “emburrecer”. O contexto teórico, 
formador, não pode jamais, como às vezes se pensa ingenuamente, transformar-se num 
contexto de puro fazer. Ele é, pelo contrário, contexto de  que-fazer,  de práxis, quer 
dizer, de prática e de teoria. 
A dialeticidade entre a prática e teoria deve ser plenamente vivida nos contextos 
teóricos da formação e quadros. Essa idéia de que é possível formar uma educadora 
praticamente, ensinando-lhe como dizer “bom dia” a seus alunos, a como moldar a mão 
do educando no traçado de uma linha, sem nenhuma convivência será com a teoria é 
tão cientificamente errada quando a de fazer discursos, preleções teorias, sem levar em 
consideração a realidade concreta, ora das  professoras, ora das professoras e seus 
alunos. Quer dizer, desrespeitar o contexto  da prática que explica a maneira como se 
pratica, de que resulta o saber da própria prática; desconhecer que o discurso teórico, 
por mais correto que seja não pode superpor-se ao  saber  gerado na  prática de outro 
contexto. 
Tudo isso implica uma compreensão distorcida da prática mesma, da teoria. Os 
pacotes, a que me referi em carta anterior, são um exemplo excelente desta 
compreensão distorcida da prática e da  teoria. Um exemplo excelente até como 
progressistas podem atuar reacionalmente. 
Há quarenta anos, quando diretor de Educação do Serviço Social da Indústria de 
Pernambuco, SESI, uma das lutas em que me empenhei foi a de enfrentar a insistência                                            
com que pais e mães proletários exigiam de nós que seus filhos aprendessem a ler e a 
escrever a partir do A, B, C. A partir do  alfabeto, das letras  e não das frases que 
implicam palavras em relação, na estrutura do pensamento. 
“Foi assim, com a carta do A, B, C, na mão, decorando as letras que todo mundo 
que eu conheço e que sabe ler, aprendeu. Meu avô aprendeu assim. Meu pai aprendeu 
assim. Eu também. Por que não meu filho?”, diziam quase em coro nos chamados 
círculos de pais e professores que eu coordenava. Foi participando daqueles encontros, 
daqueles debates, que fui tomando conhecimento, de um lado, que a prática social de 
que fazemos parte vai gerando um saber dela mesma que a ela corresponde; de outro, o 
“saber de experiência feito” tem de ser respeitado. Mais ainda, sua superação passa por 
ele. 
Me lembro, hoje ainda, de como fui aprendendo a ser coerente e de que a 
coerência não é conivência. De um lado, já naquela época, defendia o direito de 
participação das famílias no debate da própria política educacional da escola, mas, de 
ouro, reconhecia o muito de desacerto dos pais, como, por exemplo, a exigência de que 
alfabetizássemos as crianças a partir das letras ou as solicitações constantes no sentido 
de sermos duros com as crianças. Muitos dos pais diziam: 
“Pancada é que faz homem macho. Castigo é que ensina o menino a aprender.” 
Estas idéias ou algumas delas às vezes eram compartidas por professoras que 
“hospedavam” na intimidade de seu corpo a ideologia autoritária dominante. No fundo, 
tanto quanto (ou quase) os pais, algumas professoras tinham medo e raiva da liberdade, 
medo dos educandos e se fechavam para perceber o quanto há, no processo de 
conhecer, de demandante, mas também, de apaixonante, de gratificante, de provocador 
de alegria. 
Minha passagem pelo SESI foi um tempo de profundo aprendizado. Aprendi, por 
exemplo, que a minha coerência não estaria, de um lado, em atender aos pais e às mães 
que nos exigiam os desacertos referidos nem, de outro, em silenciá-los com, no 
mínimo, o poder de nosso discurso. Não poderíamos, de um lado, rechaçá-los dizendo 
um não contundente a tudo, afirmando que não era científico nem aceitar tudo para dar 
exemplo de respeito democrático. Não podíamos ser “mornos”. Precisávamos dar 
suporte às iniciativas deles já que os convidáramos e lhes disséramos que tinham direito 
a opinar, a criticar, a sugerir. Mas, por outro lado, não poderíamos dizer sim a tudo. A 
saída era político-pedagógica. Era o debate, a conversa franca com que procurássemos 
esclarecer a nossa posição em face de seus pleitos. 
Tenho na memória, agora, a cara de espanto, de surpresa, de interesse, de 
curiosidade da enorme maioria de mães e de pais de todas as escolas que mantínhamos 
quando, durante sessões de nossos círculos de  pais e professoras, lhes pedi que me 
dissessem se conheciam alguma criança que tivesse começado a falar dizendo F, L, M. 
Depois de algum silêncio, cortado por  sorrisos indecisos, depois de alguns 
movimentos de cotovelos golpeando de leve o braço do vizinho como quem dissesse 
“sai dessa!”, um deles, com a anuência dos demais, falou: “Eu, pelo menos, já vi muito 
menino começar a falar, mas nunca vi nenhum deles começar dizendo letras. Sempre 
dizendo mamãe, pão, não, quero.” 
Gostaria então que pensássemos no seguinte: w mulheres e homens, quando 
criancinhas, começaram a falar não dizendo letras, e sim palavras que valem frases – 
quando o neném chora e diz “mamã”, o neném estará querendo dizer: “Mamãe, tenho 
fome” ou “mamãe, estou molhado”. Estas palavras com que os bebês começam a falar 
se chamam “frases mono-palábricas”, isto é, frases de ou com uma só  palavra.  Pois 
bem, se é assim que todos nós começamos a falar, como, então, no momento de 
aprender a escrever e a ler, devemos começar através de decoração das letras? 
Ninguém rigorosamente ensina ninguém a falar. A gente aprende no mundo, na 
casa da gente, na sociedade, na rua, no bairro, na escola. A fala, a linguagem da gente, é 
uma aquisição. A gente adquire a fala socialmente. A fala vem muito antes da escrita, 
assim como uma certa “escrita” ou o anúncio dela vem muito antes do que a gente 
chama escrita. E assim como é preciso falar para falar, é preciso escrever para escrever. 
Ninguém escreve se não escreve, assim como ninguém aprende a andar se não andar. 
Por isso mesmo, devemos estimular ao máximo as crianças para que falem e para 
que escrevam. É das garatujas, uma forma indiscutível de escrita, que devemos elogiar, 
que elas partem para a escrita a ser estimulada. Que escrevam, que contem suas 
estórias, que as inventem e reinventem os contos populares de seu contexto. 
Foi com conversas mais ou menos assim, que fomos trans-formando os círculos 
de pais e professoras num  contexto teórico  em que procurávamos a razão de ser das 
coisas. 
Me lembro de uma conversa que tive em particular com uma angustiada mãe. Me 
falou de seu menino de dez anos, que considerou “impossível”, “brabo”, desobediente, 
“diabólico”, insuportável. “A única saída que tenho é amarrar ele num tronco de árvore 
no quintal de casa”, concluiu com uma cara como se estivesse naquele instante 
amarrando o menino. Eu disse: 
“Por que você não muda um pouco a forma de castigar? Veja, não lhe digo que 
acabe de uma vez com o castigo. Pedrinho até que estranharia se, a partir de amanhã, 
você nada mais fizesse para puni-la. Digo só que mude o castigo. Escolha alguma 
forma de fazê-lo sentir que você recusa um certo comportamento dele. Mas, através de 
uma forma menos violenta. Por outro lado,  você precisa ir demonstrando a Pedrinho, 
primeiro, que você o ama, segundo, que ele  tem direitos e deveres. Direito, por 
exemplo, de brincar, mas tem o dever de respeitar os outros. Direito de achar o estudo 
aborrecido, cansativo, mas também tem o dever de cumprir com suas obrigações. 
Pedrinho, como todos nós, precisa de  limites.  Ninguém pode fazer o que quer. Sem 
limites a vida social seria impossível. 
Mas não é amarrando Pedrinho ou fazendo uma  ladainha  diária a ele sobre os 
‘erros’ dele que você vai ajudar seu filho a ser melhor ele mesmo. Para isso é preciso 
mudar aos poucos a forma de ser ou de estar sendo da própria casa. É preciso ir 
mudando as relações com Pedrinho para que a vida dele muc1e também. É preciso 
vencer a dificuldade de conversar com ele”. 
O pai de Pedrinho deixara a casa havia  um ano. A mãe trabalhava duramente 
como lavadeira caie duas ou três famílias e era ajudada por uma irmã mais moça. 
Quando nos despedimos, ela me apertou a mão. Parecia esperançosa, 
Um mês depois, ela estava na primeira  fila da sala, na reunião de pais e 
professoras. No meio da reunião, se pôs de pé para defender a moderação dos castigos, 
a maior tolerância dos pais, a conversa mais amifóide entre eles e os filhos, mesmo que 
reconhecesse o quanto isto era difícil, muitas vezes, considerando as dificuldades 
concretas de suas vidas. Na saída, apertou minha mão e disse: “Obrigada. Já não uso o 
tronco.” Sorriu segura de si e se foi entre outras mães que deixavam igualmente a 
escola. 
Como contexto prático-teórico a escola não pode prescindir de conhecimentos em 
torno do que se passa no contexto concreto de seus alunos e das famílias deles. De que 
forma entender as dificuldades durante o processo de alfabetização de alunos sem saber 
o que se passa em sua experiência em casa, bem como em que extensão é ou vem sendo 
escassa a convivência com palavras escritas em seu contexto sócio-cultural? 
Uma coisa é a criança filha de intelectuais que vê seus pais lidando com a leitura e 
escrita, outra é a criança de pais que não lêem a palavra e que, mais ainda, não vêem 
mais de cinco ou seis faixas de propaganda eleitoral e uma ou outra propaganda 
comercial. 
Quando fui secretário municipal de  Educação no governo de Luiza Erundina 
(1989-1991) levantei, numa das muitas entrevistas que dei, a questão da possibilidade 
de que alguma empresa, com a orientação pedagógica da Secretaria, aceitasse o projeto 
de “plantar frases"’ em lugares significativos de localidades iletradas. A intenção era 
provocar a curiosidade das crianças e dos adultos. Frases que tivessem que ver com a 
prática social da área e não fossem estranhas a ela. Frases que seriam também 
aproveitadas pelas escolas em volta da região da experiência. 
Quando vivi e trabalhei no Chile como exilado, havia visto surpreso e feliz, numa 
zona de reforma agrária em que se desenvolvia o trabalho de alfabetização de adultos, 
frases e palavras gravadas em troncos de árvores pelos alfabetizandos. A socióloga 
Maria Edi Ferreira denominou aqueles camponeses de “semeadores de palavras”. 
Não quero que se pense que uma comunidade iletrada hoje se torne letrada 
amanhã só porque “plantamos palavras e frases” nela. Não! Uma comunidade vai se 
tornando letrada à medida que o exigem novas necessidades sociais, de natureza 
material e também espiritual. É possível, porém, antes que as mudanças ocorram, que 
possamos ajudar as crianças a ler e a escrever usando artifícios como “plantar frases”. 
A formação permanente das educadoras,  que implica a re-flexão crítica sobre a 
prática, se funda exatamente nesta dialeticidade entre prática e teoria. Os grupos de 
formação, em que essa prática de mergulhar na prática para, nela, iluminar o que nela 
se dá e o processo em que se dá o que se dá, são, se bem realizados, a melhor maneira . O primeiro ponto a ser afirmado com relação aos 
grupos de formação na perspectiva progressista em que me situo é que eles não 
produzem sem a necessária existência de uma liderança democrática, alerta, curiosa, 
humilde e cientificamente competente. Sem essas qualidades, os grupos de formação 
não se realizam como verdadeiros  contextos teóricos.  Sem essa liderança, cuja 
competência científica deve estar aci-ma da dos grupos, não se faz o desvelamento da 
intimidade da prática nem se pode mergulhar nela e, iluminando-a, perceber os 
equívocos e os erros cometidos, as “traições” da ideologia ou  os obstáculos que 
dificultam o processo de conhecer. 
Um segundo aspecto que tem que ver com a operação dos grupos é o que se 
prende ao conhecimento que os grupos devem ter de si mesmos. É o problema de sua 
identidade, sem o que dificilmente se constituem solidamente. E, se não o conseguem 
ao longo de sua experiência, não lhes é possível saber com clareza o que querem, como 
caminhar para tratar o que querem, que implica saber para quê, contra que, a favor de 
quê, de quem se engajam na melhora de seu próprio saber.
A prática de pensar a prática e de estudá-la nos leva à percepção da percepção 
anterior ou ao conhecimento do conhecimento anterior que, de modo geral, envolve um 
novo conhecimento. 
À medida que marchamos no contexto  teórico dos grupos de formação, na 
iluminação da prática e na descoberta  dos equívocos e erros, vamos também, 
necessariamente, ampliando o horizonte do conhecimento científico sem o qual não nos 
“armamos” para superar os equívocos cometidos e percebidos. Este necessário 
alargamento de horizontes que nasce da tentativa de resposta à necessidade primeira 
que nos fez refletir sobre a prática tende a aumentar seu espectro. O esclarecimento de 
um ponto aqui desnuda outro ali que precisa igualmente ser desvelado. Esta é a 
dinâmica do processo de pensar a prática. É por isso que pensar a prática ensina a 
pensar melhor da mesma forma como ensina a praticar melhor. 
Neste sentido, o trabalho intelectual em um contexto teórico exige pôr em prática, 
em sua plenitude, o ato de estudar de que não pode deixar de fazer parte a leitura crítica 
do mundo, envolvendo a leitura e a escrita da palavra. Ler e escrever textos de tal 
maneira se completam – mais do que isso, se identificam nos contextos teóricos – que 
neles não cabe dizer se são eficazes: “Não sei escrever, não sei ler.” 
Gostaria de sublinhar ainda a importância da leitura de jornais, de revistas, 
estabelecendo conexões entre os fatos comentados, ocorrências, desgovernos, e a vida 
da escola. A importância da audiência de certos programas de TV, devida-mente 
gravados em vídeo, da feitura deliberada de vídeos fixando retalhos de práticas, até 
mesmo de uma das sessões de trabalho do grupo. Nenhum recurso que possa ajudar a 
reflexão sobre a prática, de que possa resultar sua melhora pela produção de mais 
conhecimento, pode ou deve ser posto de lado.                                              
  A Secretaria Municipal de Educação trabalhou durante toda a  gestão da prefeita 
Luiza Erundina na formação permanente de seus quadros de educadores e educadoras, 
em cooperação com a Universidade de São Paulo, com a Universidade de Campinas e 
com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, através de grupos de formação a 
que a professora Madalena F. Weffort juntou sua contribuição original. 76
Para evitar o risco de um negativo especialismo  dos grupos de estudo enquanto 
contextos teóricos, é importante fazer reuniões interdisciplinares periódicas juntando 
diferentes grupos para o debate de um mesmo tema, visto sob prismas diferentes, mas 
concernentes. 
Prática interessante seria a permuta de vídeos entre diferentes grupos de 
formação, incluindo vídeos sobre os trabalhos de formação dos próprios grupos. O 
grupo A encaminhava ao B um vídeo em que se havia fixado uma de suas sessões de 
estudo e recebia do B um outro com material semelhante. Ambos os grupos se 
comprometiam a gravar suas reações às atividades um do outro. As experiências de 
reflexão se amplia-riam de maneira extraordinária. 
Conheci na 'I'anzânia, África Equatorial, uma experiência de eficácia enorme. Um 
cineasta canadense filmava a discussão entre uma comunidade camponesa c o 
agrônomo Sobre a produção da próxima temporada agrícola. Em seguida, mostrando o 
filme a outra comunidade a cem quilômetros, filmava o debate sobre o debate da 
comunidade anterior. Voltava depois à primeira a quem mostrava a reação cios 
companheiros que eles sequer conheciam. 
Desta forma, ele diminuía as distâncias entre as comunidades, aumentava o 
conhecimento em torno do país, estabeleça laços necessários entre elas e possibilitava 
um nível mais crítico de compreensão da realidade nacional. 
Dentro de pouco tempo, me disse o cineasta, ele cobria grande parte da Tanzânia, 
o que lhe criou, obviamente, certos problemas junto a áreas mais retrógradas do país. 
Desafiar o povo a ler criticamente o mundo é sempre uma prática incômoda para 
os que fundam o seu poder na “inocência” dos explorados. 
Quem ajuíza o que faço é minha prática. Mas minha prática iluminada 
teoricamente.

Décima carta 
Mais uma ver a questão da disciplina 
Já me referi à necessidade da disciplina intelectual a ser construída pelos 
educandos em si mesmos com a colaboração da educadora. Disciplina sem a qual não 
se cria o trabalho intelectual, a leitura séria de' textos, a escrita cuidada, a observação e 
a análise dos fatos, o estabelecimento de relações entre eles. E que não falte a tudo isso 
o gosto da aventura, da ousadia, mas a que não falte igualmente a noção do limite, para 
que a aventura e a ousadia de criar não virem irresponsabilidade licenciosa. É preciso 
afastar a idéia de que existem disciplinas diferentes e separadas. Uma, a intelectual, 
outra, a disciplina do corpo, que tem que ver com horários e treinos. Mais outra, a 
disciplina ético-religiosa etc. O que pode haver é que determinados objetivos exijam 
caminhos disciplinares diferentes. O fundamental porém é  que, se sadia a disciplina 
exigida, se sadia a compreensão da disciplina, se democrática a forma de criá-la e de 
vivê-la, se sadios os sujeitos forjadores da indispensável disciplina, ela sempre implica 
a experiência dos limites, o jogo contraditório entre a autoridade e a liberdade e jamais 
prescinde de sólida base ética. Neste sentido, jamais pude compreender que, em nome 
de nenhuma ética, possa a autoridade impor uma disciplina absurda simplesmente para 
exercitar na liberdade  acomodando-se  a sua capacidade de ser leal, a experiência de 
uma obediência castradora. 
Não há disciplina no imobilismo, na autoridade indiferente, distante, que entrega à 
liberdade os destinos de si mesma. Na autoridade que se demite em nome do respeito à 
liberdade. 
Mas não há também disciplina no imobilismo  da liberdade,  à qual a autoridade 
impõe sua vontade, suas preferências como sendo as melhores para a liberdade. 
Imobilismo a que se submete a liberdade intimidada ou movimento da pura sublevação. 
Só há disciplina, pelo contrário, no  movimento  contraditório entre a  coercibilidade 
necessária da autoridade e a busca desperta da liberdade para assumir-se. Por isso é que 
a autoridade que se hipertrofia em autoritarismo ou se atrofia em licenciosidade, 
perdendo o  sentido do movimento,  se perde a si mesma  e ameaça a liberdade. Na 
hipertrofia da autoridade seu  movimento  se robustece a tal ponto que  imobiliza  ou 
distorce  totalmente o  movimento  da liberdade. A liberdade imobilizada por uma 
autoridade arbitrária ou chantagista é a liberdade que, não se tendo assumido, se perde 
na falsidade de movimentos inautênticos. 
Para que haja disciplina é preciso que a liberdade não apenas tenha o direito mas 
o exerça de dizer “não” ao que se lhe propõe como a verdade e  o certo. A liberdade 
precisa aprender a afirmar negando, não por puro negar, mas como critério de certeza. 
É neste movimento de ida e volta que a liberdade termina por internalizar a autoridade e 
se torna uma liberdade com autoridade somente como, enquanto autoridade, respeita a 
liberdade. A responsabilidade que temos, enquanto seres sociais e históricos, portadores 
de uma subjetividade que joga papel importante na História, no processo deste 
movimento  contraditório entre autoridade e liberdade, é de indiscutível importância. 
Responsabilidade política, social, pedagógica,  ética, estética, científica. Mas, ao 
reconhecer a responsabilidade política, superemos a politiquice, ao sublinhar a 
responsabilidade social, digamos “não” aos  interesses puramente individualistas, ao 78
reconhecer os deveres pedagógicos, deixemos de lado as ilusões pedagogistas, ao 
demandar a eticidade, fujamos da feiúra do puritanismo e nos entreguemos à invenção 
da boniteza da pureza. Finalmente ao aceitarmos a responsabilidade científica, 
recusemos a distorção cientificista. 
Talvez algum leitor ou leitora mais “existencialmente cansado” e “historicamente 
anestesiado” diga que eu estou sonhando demasiado. Sonhando, sim, pois que, como 
ser hist6-rico, se não sonho não posso  estar sendo. Demasiado, não. Acho até que 
sonhamos pouco com esses sonhos, tão fundamentalmente indispensáveis à vida ou à 
solidificação de nossa democracia. A disciplina no ato de ler, de escrever, de escrever e 
de ler, no de ensinar e aprender, no processo prazeroso mas difícil de conhecer; a 
disciplina no respeito e no trato da coisa pública; no respeito mútuo. 
Não vale dizer que, enquanto professor ou professora, “não importa o grau em 
que trabalhe, pouca importância terá o que eu faça ou não faça, pouca importância terá 
em vista do que os poderosos fazem em favor de si mesmos e contra os interesses 
nacionais”. Esta não é uma afirmação ética. É simples-mente interesseira e acomodada. 
Pior é que, se acomodado, minha  imobilidade  se converte em motor de mais 
desvergonha. Minha imobilidade produzida ou  não por motivos fatalistas, funciona 
como eficaz ação em favor das injustiças que se perpetuam, dos descalabros que nos 
afligem, do retardamento de soluções urgentes. 
Não se recebe democracia de presente. Luta-se pela democracia. Não se rompem 
as amarras que nos proíbem de ser com uma paciência bem comportada, mas com Povo 
mobilizando--se, organizando-se, conscientemente crítico. Com as maiorias populares 
não apenas  sentindo  que vêm sendo exploradas desde que se inventou o Brasil mas 
também juntando ao sentir o saber que estão sendo exploradas, o saber que lhes dá a 
“raison d’être” do fenômeno que alcançam preponderantemente ao nível da 
sensibilidade dele. 
Ao falar em sensibilidade do fenômeno e em apreensão crítica do fenômeno não 
estou, de modo nenhum, sugerindo nenhuma ruptura entre  sensibilidade, emoções  e 
atividade cognoscitiva.  Já disse que conheço com meu  corpo inteiro: sentimentos, 
emoções, mente crítica. 
Deixemos claro que Povo mobilizando-se, Povo organizando-se, Povo 
conhecendo em termos críticos, Povo aprofundando e solidificando a democracia contra 
qualquer aventura autoritária é Povo igualmente forjando a necessária disciplina sem a 
qual a democracia não funciona. No Brasil, quase sempre, oscilamos entre a ausência 
da disciplina pela negação da liberdade ou  a ausência de disciplina pela ausência da 
autoridade. 
Falta-nos disciplina em casa, na escola, nas ruas, no tráfego. É assombroso o 
número dos que morrem, nos fins de semana, por pura indisciplina, o que o país gasta 
nesses acidentes, nos desastres ecológicos.                                           
 Outra falta de respeito ostensivo aos outros, tão nefasta quanto a maneira como 
vimos sendo indisciplinados, é a licenciosidade, a irresponsabilidade com que se mata 
impunemente neste país. 
Dominadas e exploradas no sistema capitalista, as classes populares precisam – ao 
mesmo tempo em que se engajam no processo de formação de uma disciplina 
intelectual – ir criando uma disciplina social, cívica, política, absolutamente 
indispensável à democracia que vá além da pura democracia burguesa e liberal. Uma 
democracia que, afinal, persiga a superação dos níveis de injustiça e de 
irresponsabilidade do capitalismo. 
Esta é uma das tarefas a que devemos nos entregar e não à mera tarefa de ensinar, 
no sentido errôneo de transmitir o saber aos educandos. 
O professor deve ensinar. É, preciso fazê-la. Só que  ensinar  não é  transmitir 
conhecimento. Para que o ato de ensinar se constitua como tal, é preciso que o ato de 
aprender  seja precedido do, ou concomitante ao, ato de  apreender  o conteúdo ou o 
objeto cognoscível, com que o  educando se tonta produtor também do conhecimento 
que lhe foi ensinado. 
Só na medida em que o educando se torne sujeito cognoscente e se assuma como 
tal, tanto quanto sujeito cognoscente é também o professor, é possível ao educando 
tornar-se sujeito produtor da significação ou do conhecimento do objeto. É neste 
movimento dialético que ensinar e aprender vão se tornado conhecer e reconhecer. O 
educando vai conhecendo o ainda não conhecido e o educador, re-conhecendo o antes 
sabido. 
Esta forma de não apenas compreender o processo de ensinar e de aprender mas 
de vivê-lo exige a disciplina de que  venho falando, Disciplina que não pode 
dicotomizar-se da disciplina política, indispensável à invenção da cidadania. Sim, a 
cidadania, sobretudo numa sociedade como  a nossa, de tradições  tão autoritárias e 
discriminatórias do ponto de vista do sexo,  da raça e da classe, a cidadania é mesmo 
uma invenção,  uma  produção política.  Neste sentido, o exercício pleno da cidadania 
por quem sofre qualquer elas discriminações ou todas a um só tempo não é algo de que 
usufruam como direito pacífico e reconhecido. Pelo contrário, é um direito a ser 
alcançado e cuja conquista faz crescer substantivamente a democracia. A cidadania que 
implica o uso de liberdade – de trabalhar, de comer, de vestir, de calçar, de dormir em 
uma casa, de manter-se e à família, liberdade de amar, de ter raiva, de chorar, ele 
protestar, de apoiar, de locomover-se, de participar desta ou daquela religião, deste ou 
daquele partido, de educar-se e à família, liberdade de banhar-se não importa em que 
mar de seu país. A cidadania não chega por acaso: é uma construção coque, jamais 
terminada, demanda briga por ela. Demanda engajamento, clareza política, coerência, 
decisão. Por isso mesmo é que uma educação democrática não se pode realizar à parte 
de uma cochicação da cidadania e para ela. 
Quanto mais respeitamos os alunos e alunas independente-mente de sua cor, sexo, 
classe social, quanto mais testemunho dermos de respeito em nossa vida diária, na 
escola, em nossas relações com os colegas, com zeladores, cozinheiras, vigias, pais e 
mães de alunos, quanto mais diminuirmos a distância entre o que dizemos e o que 
fazemos, tanto mais estaremos contribuindo  para o fortalecimento de experiências 80
democráticas. Estaremos desafiando-nos a  nós próprios a mais lutar em favor da 
cidadania e de sua ampliação. Estaremos forjando em nós a indispensável disciplina 
intelectual sem a qual obstaculizamos  nossa formação bem como a não menos 
necessária disciplina política, indispensável à luta para a invenção da cidadania. 

Últimas palavras 
Saber e crescer – tudo a ser 
Fecho este livro com um texto, apresentado num Congresso realizado no Recife 
em abril/92 e em que clarifico algumas análises em torno do  contexto concreto  da 
cotidianeidade. Refletir sobre o tema implícito na frase é a tarefa que me foi proposta 
pelos organizadores deste encontro. 
O ponto de partida de minha reflexão deve incidir na frase “saber e crescer – tudo 
a ver”, tomada como objeto de minha curiosidade epistemológica. Isto significa 
procurar, num primeiro momento, apreender a inteligência da frase que, por sua vez, 
demanda a compreensão que as palavras têm nela, em suas relações umas com as 
outras. 
Em primeiro lugar, nos defrontamos com dois blocos de pensamento:  saber e 
crescer e tudo a ver. Os dois verbos do primeiro bloco que poderiam ser substituídos 
por dois substantivos,  sabedoria  e  crescimento,  se acham ligados pela partícula 
coordenativa  e.  No fundo, estes dois blocos guardam em si a possibilidade de um 
desdobramento de que resultaria: o processo de saber e o processo de crescer têm tudo a 
ver um com o outro. Ou ainda, o processo de saber implica o de crescer. Não é possível 
saber sem uma certa forma de crescimento. Não é possível crescer sem uma certa forma 
de sabedoria. 
Saber é um verbo transitivo. Um verbo que expressa uma ação que, exercida por 
um sujeito, incide ou recai diretamente num objeto sem regência preposicional. Daí que 
o complemento deste verbo se chame objeto direto. Quem sabe, sabe alguma coisa. Só 
eu sei a dor que me fere. Dor é o objeto direto de “sei”, a incidência de minha ação de 
saber. 
Crescer, ao contrário, é um verbo intransitivo. Não necessita de complementação 
que sele sua significação. O que se pode fazer, e quase sempre se faz, em função das 
exigências do pensar do sujeito, com a significação de verbos assim, é juntar a ele 
elementos ou significações circunstanciais, adverbiais. Cresci  sofridamente.  Cresci 
mantendo viva minha curiosidade  em que “sofridamente” e “mantendo viva minha 
curiosidade” adverbializam modalmente meu processo de crescer. 
Fixemo-nos agora, um pouco, no processo de saber. 
Uma afirmação inicial que poderemos fazer ao nos indagar em torno do processo 
de saber, tomado agora como fenômeno vital é que, em primeiro lugar, ele se dá na vida 
e não apenas na existência que nós, mulheres e homens, criamos ao longo da História, 
com os materiais que a vicia nos ofereceu. Mas, é o saber de que nos tornamos capazes 
de gestar que nos interessa aqui e não de certo tipo de reação que se verifica nas 
relações que se cimo na vida não humana. 
No nível da existência, a primeira afirmação a ser feita é que o processo de saber 
é social, cuja dimensão individual  porém não pode ser esquecida ou sequer 
subestimada. 
O processo de saber, que envolve o corpo consciente todo, sentimentos, emoções, 
memória, afetividade, mente curiosa de  forma epistemológica, voltada ao objeto, 
envolve igualmente outros sujeitos cognoscentes, quer dizer, capazes de conhecer e 
curiosos também. Isto significa simplesmente que a relação chamada cognoscitiva não 
se encerra na relação sujeito cognoscente-objeto cognoscível porque se estende a outros 
sujeitos cognoscentes. 
Outro aspeto que me parece interessante  sublinhar aqui é o que diz respeito à 
maneira espontânea com que nos move-mos no mundo, de que resulta um certo tipo 
de saber, de perceber, de ser sensibilizado pelo mundo, pelos objetos, pelas presenças, 
pela fala dos outros. Nesta forma espontânea de nos movermos no mundo, percebemos 
as coisas, os fatos, sentimo-nos advertidos, temos este, aquele comportamento em 
função dos sinais, cujo significado internalizamos. Ganha-mos deles um saber imediato 
mas não apreendemos a  razão de ser  fundamental dos mesmos. Nossa mente, neste 
caso, na orientação espontânea que fazemos no mundo não opera epistemologicamente. 
Não se direciona criticamente, indagadoramente, metodicamente, rigorosamente ao 
mundo ou aos objetos a que se inclina. Este é o “saber de experiência feito” (Camões), 
a que falta, porém, o crivo da criticidade. É a sabedoria ingênua, do senso comum, 
desarmada de métodos rigorosos de aproximação ao objeto, mas que, nem por isso, 
pode ou deve ser por nós desconsiderada. Sua necessária superação passa pelo respeito 
a ela e tem nela o seu ponto de par-tida. 
Talvez seja interessante tomar uma  manhã nossa como objeto de nossa 
curiosidade e perceber a diferença entre estas duas maneiras de nos mover no mundo: a 
espontânea e a sistemática. 
Amanhecemos. Despertamos, Escovamos os dentes. Torna-mos o primeiro banho 
do dia a que se segue o café da manhã. Conversamos com a mulher ou a mulher com o 
marido. Informamo-nos das primeiras notícias. Saímos de casa. Andamos na rua. 
Cruzamos com pessoas que vão, que voltam. Paramos no semáforo, Esperamos a luz 
verde cuja significação  aprendemos na infância e em momento nenhum nos 
perguntamos ou nos indagamos em torno de nada das coisas que fizemos. Dos dentes 
que escovamos, da ducha que tornamos, do café que bebemos (a não ser que tenhamos 
reclamado algo coque saiu da rotina), da cor vermelha cio semáforo por causa da qual 
paramos sem também nos perguntar, em outras palavras: imersos  na cotidianeidade, 
marchamos nela, nas suas “ruas”, nas suas “calçadas”. Sem maiores necessidades de 
nos indagar sobre nada. Na cotidianeidade nossa mente não opera 
epistemologicamente. 
Se prosseguirmos um pouco mais na análise da cotidianeidade desta manhã que 
estamos analisando ou em que nos analisamos, observaremos que, para havermos 
tomado uma manhã qualquer nossa, como objeto de nossa curiosidade foi necessário 
que o fizéssemos fora da experiência da cotidianeidade. Foi preciso que dela 
emergíssemos para, então, “tomarmos distância” dela ou da maneira como nos 
movemos no mundo em nossas manhãs. É interessante observar, também, que é, na 
operação de “tomar distância” do objeto, que dele nos “aproximamos”. A “tomada de 
distância” do objeto é a “aproximação” epistemológica que a ele fazemos. Só assim                                              
podemos “admirar” o objeto, no nosso caso, a manhã, em cujo tempo analisamos como 
nos movemos no mundo. 
Nos dois casos aqui referidos me parece fácil perceber a diferença substantiva de 
posição que ocupamos, enquanto “corpos conscientes”, movendo-nos no mundo. No 
primeiro caso, aquele em que me vejo de acordo com o relato que eu mesmo faço em 
torno de como me movo na manhã e, no segundo, o em que me percebo como o sujeito 
que descreve seu próprio mover-se. No primeiro momento, o da experiência da e na 
cotidianeidade, meu corpo consciente se vai expando aos fatos, aos feitos, sem contudo, 
interrogando-se sobre eles, alcançar a sua “razão de ser”. Repito que o saber – porque 
também o há – que resulta destas tramas é o de pura experiência feito. No segundo 
momento, em que nossa mente opera epistemologicamente, a rigorosidade 
metodológica com que nos aproximamos do objeto, tendo dele “tomado distância”, isto 
é, tendo-o objetivado, nos oferece um outro  tipo de saber. Um saber cuja exatidão 
proporciona ao investigador ou ao sujeito cognoscente uma margem de segurança que 
inexiste no primeiro tipo de saber, o do senso comum. 
Isto não significa, de modo nenhum,  que devamos menosprezar este saber 
ingênuo cuja superação necessária passa pelo respeito a ele. 
No fundo, a discussão sobre estes dois saberes implica o debate sobre prática e 
teoria que só podem ser compreendidos se  percebidas e captadas  em suas relações 
contraditórias. Nunca isoladas, cada uma em si mesma. Nem teoria só, nem prática só. 
Por isso é que estão erradas as posições de natureza político-ideológica, sectárias, que, 
em lugar de entendências em sua relação contraditória exclusivizam uma ou outra. O 
basismo, negando validade à teoria; o elitismo teoricista, negando validade à prática. A 
rigorosidade com que me aproximo dos objetos me proíbe de inclinar-me a qualquer 
destas posições: nem basismo nem elitismo, mas prática e teoria iluminando-se 
mutuamente. 
Pensemos agora um pouco sobre crescer. Tornemos crescer como objeto de nossa 
inquietação, de nossa curiosidade epistemológica. Mais do que sentir ou ser tocado pela 
experiência pessoal e social de crescer, procuremos a inteligência radical do conceito. 
Seus ingredientes. Emerjamos da cotidianeidade em que “cruzamos” com e vivemos a 
experiência de crescer, tal qual esperamos a luz verde para atravessar a rua, quer dizer, 
sem nada nos perguntar. Emerjamos da cotidianeidade e, com a mente curiosa, 
indaguemo-nos sobre o crescer. 
Em primeiro lugar, ao tomar o conceito como objeto de nosso saber, percebemos, 
num primeiro acercamento, que ele se revela a nós como um fenômeno vital, cuja 
experiência insere seus sujeitos num movimento dinâmico. A imobilidade no 
crescimento é enfermidade e morte. 
Crescer faz parte da experiência vital. Mas, exatamente porque mulheres e 
homens, ao longo de uma longa História,  terminamos por nos  tornar capazes de, 
aproveitando os materiais que a vida nos ofereceu, criar com eles a existência humana – 
a linguagem, o mundo simbólico da cultura, a História – crescer em nós ou entre nós, 
ganha uma significação que ultrapassa crescer na pura vida. Crescer entre nós é algo 
mais que crescer entre as árvores ou entre os animais, que, diferente-mente de nós, não 
podem tomar seu próprio crescimento como objeto de sua preocupação. Crescer entre 84
nós é um processo sobre o qual podemos intervir. O ponto de decisão do crescimento 
humano não se acha na espécie. Nós somos seres indiscutivelmente programados mas, 
de modo nenhum, determinados. E somos programados sobretudo para aprender, como 
salienta François Jacob. (1991) 
É o crescer entre nós a que se refere a proposta desta palestra. E não o crescer das 
árvores ou dos filhos recém-nascidos de Andra e de Jim, nosso casal de cães pastores 
alemães. 
É precisamente porque nos tornamos capazes de inventar nossa existência, algo 
mais do que a vida que ela implica mas suplanta, crescer entre nós se torna ou vem se 
tornando muito mais complexo e problemático, no sentido rigoroso deste adjetivo, do 
que crescer entre as árvores e os outros animais. 
Um dado importante, como ponto de partida para a compreensão crítica do 
crescer entre nós, existentes, é que, “programados para aprender”, vivemos ou 
experimentamos ou nos achamos abertos  a experimentar a relação entre o que 
herdamos e o que adquirimos. Tornamo-nos  seres gene-culturais. Não somos apenas 
natureza  nem tampouco somos apenas cultura,  educação, cognoscitividade. Por isso, 
crescer, entre nós, é uma experiência atravessada pela biologia, pela psicologia, pela 
cultura, pela História, pela educação, pela política, pela estética, pela ética. 
É ao crescer como totalidade que cada uma de nós e cada um de nós é, que se 
chama às vezes, em discursos adocicados,  “crescimento harmonioso cio ser”, sem, 
porém, a disposição da luta pelo crescimento harmonioso do ser, a que devemos 
aspirar. 
Crescer fisicamente, normalmente,  com o desenvolvimento orgânico 
indispensável; crescer emocionalmente equilibrado; crescer intelectualmente através da 
participação em práticas educativas quantitativa e qualitativamente asseguradas pelo 
Estado crescer no bom gosto diante do mundo; crescer no respeito mútuo, na superação 
de tactos os obstáculos que proíbem hoje o crescimento integral ele milhões de seres 
humanos espalhados pelos diferentes  mundos em que o mundo se divide, mas, 
sobretudo, no Terceiro. 
São impressionantes as estatísticas de órgãos insuspeitos como o Banco Mundial 
e o UNICEF que, em seus relatórios de  1990 e 1991, respectivamente, nos falam da 
miséria, da mortalidade infantil, da ausência de educação sistemática; do número 
alarmante – 160 milhões de crianças – que morrerão no Terceiro Mundo de sarampo, de 
coqueluche, de subnutrição. O relatório do  UNICEF refere-se a estudos já feitos no 
sentido de evitar uma total calamidade na década em que estamos. Dois bilhões e meio 
de dólares seriam suficientes. A mesma quantia, conclui o relatório de forma um tanto 
pasma, que empresas norte-americanas gastam por ano para vender mais cigarros. 
Que o saber tem tudo a ver com o crescer, tem. Mas é preciso, absolutamente 
preciso, que o saber de minorias dominantes não proíba,  não asfixie, não castre o 
crescer das imensas maiorias dominadas.